domingo, novembro 24, 2013

Diz o Borges de acordo com o Wikiquote:



  • Time is the substance from which I am made. Time is a river which carries me along, but I am the river; it is a tiger that devours me, but I am the tiger; it is a fire that consumes me, but I am the fire.

E o sacana está certo. Muito certo. Presente que não se importa com o Passado e está-se bem a cagar para o Futuro. Tudo o que se mistura, sem se tocar, num momento que dura dias e só pára para dormir. Percorre-se fio a pavio, sem dinamite mas com pequenas explosões que abanam o conceito de que o Tempo não volta para trás. Não há máquinas do tempo, mas existem as constantes que nos prendem ao chão e não nos deixam esquecer que apesar de o tempo não parar, encontra dentro de si pequenos quartos e salas onde o que foi não volta a ser, mas se pode transformar noutro tipo de serão. 

E onde posso aprender a ser melhor pessoa. Mesmo que seja para voltar, mais tarde, ao costume. No entanto, enquanto estás, eu estou também como agora. O que é o mesmo que dizer que existo um bocadinho mais.

domingo, novembro 17, 2013

Matriz de avaliação



Antes de começar a exposição, anuncio que acredito piamente na teoria das camadas da verdade do meu caro amigo Bruno de Figueiredo: as cabeças que vemos nas notícias têm cordelinhos agarrados, puxados por mãos que fazem parte de uma outra camada da verdade, e que por sua vez tem uma terceira a controlar tudo o que se passa. Por isso, perdoem-me a falta de ingenuidade, e não aprofundar a terceira camada, ou seja, o feiticeiro que por detrás de um biombo, tudo vê e controla. Annuit coeptis, o rei que tudo vê. Posto isto, comece a liça.

Já várias vezes exprimi por aqui a minha opinião sobre o estado da Educação em Portugal. Tenho uma posição mais privilegiada do que muitos (inclusive o próprio crasso que dirige a educação, e que chamando-se Crato, julga ser o Prior máximo de quem ensina). Chamar-lhe "Educação" é esticar a palavra até desaparecer, pois não é esse o objectivo das escolas em Portugal. O seu papel, na visão de anteriores governos, é ocupar o tempo das crianças enquanto os pais trabalham, com baixos salários e alimentando uma mecânica social e económica que usa as pessoas como instrumentos. A escola pública, acolhendo os filhos dessas pessoas de condição social mais baixa, tem o papel apenas e só ocupacional. É por isso que a escola privada tem sido mais protegida: é onde os filhos das pessoas com mais pessoas podem estudar confortavelmente longe do caos e do pânico. Por aqui se percebe que a falta de aposta no ensino público por parte da classe política não lhe causa problema: o plano é este, e quanto menos dinheiro se injectar mais se pode dar ao ensino privado, ou simplesmente guardar para outras acções. Não é que sirvam para equilibrar as contas: para isso, era necessário haver um plano orçamental e económico que justificasse cortes, e já se viu, em três anos de governação em PSD, que isso não existe. Há um guião, mas não reforma o Estado: serve de guia a um filme de terror sem fim, com facalhões a trabalhar. Corta-se nos gastos, e pelo meio uns membros em forma de pessoas. Para quem tem ilusões, é isto a Educação em Portugal.

Daí o meu espanto quando se sugeriu uma prova de avaliação de conhecimentos a ser realizada por professores; e não todos os professores: professores contratados. Há aqui um requinte que tem escapado a muita gente: esta prova não é dirigida a toda a classe docente, mas precisamente aos seus elementos mais novos, frágeis e que urge despachar. Nada que não mude, a política sindical dos últimos dez anos tem defendido aqueles que há mais tempo se encontram no ensino, a começar pelos moldes em que é realizado o Concurso Nacional de Professores. Por isso, quando me dizem que os professores são uma classe protegida, é preciso pôr travão no mito. "Alguns", não fazem todos, e colegas meus, da minha idade, que tiveram de cirandar de norte a sul nos últimos anos, a troco de um ordenado que servia para pagar alojamento, gastos mensais, viagens, e pouco mais, não são favorecidos por nada mais do que uma vontade de sofrer em prol de algo que gostam e, acredito, da única competência que aprenderam no seguimento da grande luta nacional do Ensino Superior. O saldo da luta é claro: derrota em toda a linha da esperança de emprego, e uma vitória retumbante da precariedade. Talvez o Ensino Superior se tenha tornando numa roleta Darwiniana onde os mais fortes sobrevivem, e os mais fracos se acumulam à entrada de Centros de Emprego. Tendo em conta a visão economicista dos nossos tempos, muitos considerarão isso a perfeita prova das teorias de Educação mais extremas. Batem palmas e parabenizam-se com o Estado do mundo. Logo, estende-se essa visão mais longe, e o passo mais lógico é escolher, de entre os mais fracos, aqueles que têm mais força de vontade e a coisa que mais se possa parecer com competência docente. Algo que, como disse, acredito ter muito pouco valor nos dias de hoje, naquilo que se pensa como "a Escola".

Depois de abrir a ferida, o ministério adiciona-lhe sal: professores que fazem a prova (e cuja realização determina se podem participar no concurso de professores seguinte) são obrigados a pagar. Todos. Quer estejam a trabalhar ou não. Tenham ou não fundos para isso. Quem não tem, pede emprestado, e não há de mal com isso, pois segundo Nuno Crato "Vinte euros não é nada". Parece-me adequado que para uma prova que vale tudo, vinte euros não sejam nada. Também me parece adequado que uma prova que torna em "nada" toda a formação de um professor (sejam três ou quatro ou cinco anos), seja nada o valor que se paga. Num país onde a política de Educação é irrisória, vinte euros são risíveis, não é? Nuno Crato, que muitas esperanças suscitou quando agarrou num ponteiro laser desse quadro interactivo que é o sistema educativo português, tem mostrado que não é incompetente, ao contrário do que se apregoa: é bastante sagaz, dividindo para conquistar, traçando a propaganda com mestria, e fazendo crer que não só os docentes são parasitas que nada fazem, mas que é justificável tirar a superioridade científica dos professores perante os alunos para que seja mais fácil despedir os docentes. Numa profissão onde essa superioridade é tudo o que pode eventualmente garantir que um aluno acredita naquilo que sai da boca de um professor, vê-se que o interesse não é a estabilização ou a valorização do ensino: como em tudo que tem sido feito nesta legislatura, o interesse é o de ver números a diminuir.

O Ensino português tem muitos problemas, e entre todos os que se relacionam com as escolas, o maior está fora delas: a falta de organização política, e também uma retirada total de escrúpulos e paixão pela arte de educar e aprender. Interessa menos a aprendizagem, e mais a avaliação. Como se as duas coisas tivessem muito pouca relação entre si. Avaliar mal e porcamente professores não é diferente de avaliar mal e porcamente alunos, com programas demasiados extensos para as aulas que se têm, sobrecarregar docentes com tarefas que lhe tiram tempo de preparar aulas e o constante favorecimento de docentes mais velhos, e desinteressados, que se tornam numa esclerose militante, prejudicando alunos e colegas mais novos com genuíno gosto e vontade de tornar o Ensino em algo de atraente e positivo. A prova que querem fazer não avalia nada disto. É um soundbite, um estandarte de batalha que serve para um lado e outro se distraírem do que realmente interessa e de um ataque que nem sequer é encapotado à capacidade da Escola Pública. Sou fruto dela, e não me dei mal. Uma fraca Escola Pública é reflexo de um fraco Governo; e um fraco Governo nunca poderá avaliar o que seja, porque não tem capacidades ou competências para ser respeitado. Não tem a superioridade científica inerente ao cargo de professor.

Uma nação decente faria a única coisa que pode ser feita: entraria nas salas de avaliação no dia 18 de Dezembro e rasgaria as provas. Sem medo. Desautorizava todo um ministério que só está nisto para estragar; e num só dia ensinava aos seus alunos uma lição muito mais importante do que as que poderiam aprender nas restantes aulas: o bom uso do nosso direito natural à libertinagem.

terça-feira, novembro 12, 2013

F.


Doeste-me duas vezes. Uma quando partiste, a outra quando ficaste. Na primeira, a dor foi acamada pela certeza de que a história continuava a ser escrita; na segunda, o desgosto levedou com o fermento da nossa quebra, e durou até ao ponto onde não te conseguia distinguir do que era certo. Certamente que te diluíste no rio do tempo, mas sem nunca saíres da superfície dos seixos. De vez em quando, regresso às margens do rio e faço os seixos dançar sobre a superfície da água. Saltam pingos, tornam-se estilhaços, e a ironia está saber o quanto me dóis.  É tudo truque de prestidigitação, pois cria uma ilusão: a de que conseguiremos transformar a dor em prazer, pela simples vontade e desejo de confiar no coração. Mas a cabeça sabe o que o coração não reconhece, que os barcos partem rio acima e não regressam. Por muitas pedras que lancemos, por muito que esfomeemos, por muito que tracemos mapas. São viagens de ida, que nunca têm volta.

Ou têm. Tu tens. Vais ter, pelo que me disseste. Eu nunca parti, de facto, da margem do rio, mesmo que tenha escrito a mim próprio uma longa missiva dizendo o contrário. Quando soube que regressarias, o fim transformou-se em entretanto, e o talvez num definitivamente perpétuo de viagens em torna da minha mente. O paradoxo é que me anulas a racionalidade. Se não confio no coração, nem posso seguir a cabeça, fico sem saber para onde me virar, ou se nasci torto sem hipótese de me endireitar. Não existe ter amado alguém: ama-se, e vai-se gerindo mesmo quando acaba a pulsão de revolver e correr e mudar tudo o que se move para mover quem amamos. Mesmo que não haja esperança ou solução, mesmo que não haja saída. Amar é saltar à corda com a realidade, e esperar não tropeçar, mesmo sabendo que as pernas se cansam e a corda passa debaixo de nós em modo perpétuo. Mas não nos cansamos de tropeçar, até que outro alguém pega na corda; e mesmo aí, o suor do outro continua lá, na ponta que apertou na mão.

Sei que quando te vir, vou sentir a energia de cem milhões de sóis. Sei que quando te abraçar, vou criar galáxias. Sei que quando começarmos a falar, ou haverá um Big Bang, ou uma Anã Vermelha. Sei que quando caminharmos lado a lado, terei sempre de me vigiar. Sei que me vou guardar, com a noção de que me arrobarás com um sorriso. Sei que me vou defender, porque, afinal, também contribuíste para que fosse assim. Sei que vou perceber o inglês que não sabes, mas nunca entenderei o que não falas quando olhas para o chão. Não sei se nos vamos reconhecer, porque oito anos são muito tempo. Temos ambos menos cabelo, talvez um pouco mais de sabedoria, mas acumulámos mais dor. Tu perdeste o teu pai, eu vejo o meu a trilhar um caminho numa floresta escura. A par e passo, as nossas vidas não andaram emparelhadas, mas houve sempre qualquer coisa que me fez voltar àquele momento em que chegaste e eu parti de mim em direcção ao que ainda não conhecia. Antes de me teres doído a primeira vez; e apesar da energia do reencontro, sei que me vais doer uma terceira vez, quando chegares. Um bocadinho, e uma boca de dor a engolir-me, e a cuspir-me. Mas contigo, a dor devora-me outra vez. Porque sempre me foste indigesta. É isso que acontece com refeições demasiado condimentadas e saborosas: custam a digerir.

sábado, novembro 09, 2013

O que está certo


A imagem que existe de mim é a de alguém meio desligado da realidade. Entendo como é que ela surge, e provavelmente está mais certa do que aquilo que gostaria de admitir. Defino-me sempre como um adulto não funcional, o que está dentro do limite da crença. Não estou bem equipado para lidar com as responsabilidades de ser crescido, mas já aprendi, pelo menos, que isto vai lá de tropeção em tropeção, construindo fisgas com erros para apedrejar os vidros que nos separam dos nossos objectivos. Os cortes ficam, mas cicatrizam e transformam-se em histórias para contar. Nunca é mau. Apenas quem não esteve na sala de espera de um centro de saúde não dá valor a ter-se memória e mundo interior. De preferência cheio de selvas para uma pessoa se perder e andar embrenhado para não ouvir problemas alheios.

Ora, tenho notado, neste último ano, que essa imagem tem mudado um pouco. Várias pessoas chegam à minha beira e cumprimentam-me com um certo esgar de orgulho. Há nos seus olhos um reconhecimento folclórico equivalente aos rituais de passagem e crescimento masai, na concordância de que estou numa nova etapa e de que agora posso ser olhado com respeito. Percebo com rapidez que tudo isto se deve a passar a ter sido babysitter e enfermeiro do meu pai, no seu caminho pedregoso de doença e frustração. Não quero que isto soe a queixa, porque a maior parte das pessoas que me interrogam sobre o estado do meu pai, e até sobre o meu próprio estado, são incrivelmente bem intencionadas. Posso não querer falar com boa parte delas, como já aqui escrevi, mas isso não significa que não reconheça o mínimo, e máximo, de preocupação nos seus rostos, e até mesmo aquele ligeiro ar de quem não sabe bem o que dizer. Eu reconheço-o tão bem, já dancei com esse ambiente sonoro, e é de um desconforto atroz, que partilha a mesma impotência de quem vê alguém a desintegrar-se atomicamente a cada pequena detonação tumoral. Ainda assim, não entendo esta congratulação e sentimento de que estou a fazer algo de louvável. Não vejo a coisa assim, nem poderia. O que estou a fazer é a única coisa possível.

Ele é meu pai. Quando eu não tinha sequer capacidade de juntar letras para escrever "Pai", vigiou-me e conduziu-me e levou-me a que estivesse aqui, sem saber o que quero fazer da vida, mas com a certeza de que a vida dele é algo de que vou fazer parte até que ele deixe de ser parte da Vida. É aquilo que tem de ser feito, é o que está certo e tanto como a memória, é a maneira que ele tem de se perpetuar e garantir que o construiu não foi apenas uma casa ou uma vida, mas sim pessoas que sabem o que deve ser feito, porque deve ser feito e acima de tudo, que o maior feito é ser pessoa completa e atenta, procurando estar lá com a simples intenção de se querer bem. Para mim, não é mais do que isto. É o meu dever, é aquilo que sinto e o que me dá alguma paz interior, no meio desta turbulência. Talvez ele não saiba, mas faz-me crescer: não funciono como adulto, mas vou-me sentindo, um bocadinho mais, como tal. Como sempre, o meu pai a conduzir-me.

quarta-feira, novembro 06, 2013

O primeiro em Novembro



O blog é meu, por isso permitam-me uma pequena aulinha de História: o 1 de Novembro foi instaurado no século VIII e celebrava, inicialmente todos os santos e mártires que tinham morrido em nome da Igreja. No entanto, o feriado em si é mais antigo e data do quarto centénio, quando por uma questão prática de juntou num só dia (por ocasião do 13 de Maio, curiosamente) todas as celebrações dos mártires da Cristandade, visto que o ano tinha 365 dias e os Romanos eram particularmente bons a matar cristãos, com uma eficácia superior à quantidades de números disponíveis no calendário. Podemos recuar ainda mais para encontrar o sagrado neste dia. O "Samhain" celta celebrava-se por esta altura (entre 31 de Outubro e 1 de Novembro) e embroa não tenhamos a certeza de que envolvia a crença de que os mortos regressariam a este mundo para se aquecer na lareira, é certa de que representava não só a questão prática da passagem do ano e mudança de colheitas, mas também o período em que Sidhe, divindade máxima dos Celtas, como que abria a cortina entre este mundo e o outro, permitindo que os humanos e os não-humanos (como os duendes ou os elfos) pudessem comunicar e observar mutuamente. Pode parecer algo muito distante, mas vem daqui, por exemplo, a tradição do Magusto, e na zona galaico-portuguesa, estas tradições têm sido recolhidas e consideradas parte fundamental do folclore local. Ainda hoje marca o Solstício de Inverno (nas marcações de certos monumentos megalíticos) e passagem do Verão para o Inverno.

Este feriado não é religioso: é anterior a nós todos, e aos que estão para trás, representando o que somos cá dentro, as nossas crenças extra racionalidade e a mundividência que o Ser Humano criou e herdou na passagem das gerações. É ontológico, e o que não é lógico é que se acabe em nome de uma coisa tão passageira quanto é o dinheiro. A nossa relação com o Passado e com os mortos, aquilo em que transformámos esta celebração de Vida, é importante. Mas uma sociedade sem Memória é uma sociedade de pessoas e não de gentes. A eliminação do primeiro de Novembro é culpa nossa também, que não sabemos respeitar a sua importante na ordem da existência.

sábado, novembro 02, 2013

O estado das coisas


HENRIQUE
 Quer saber o que é Portugal, realmente? Fora desses livros bonitos que andou a ler, de tudo o que há para trás e o orgulha tanto? Portugal não é muito diferente de Alcácer Quibir. Lembra-se de quando viu aqueles cadáveres, a confusão? Aquele silêncio que sucede aos grandes desastres? Esse silêncio é Portugal. No entanto, o grande desastre ainda não acabou, e o silêncio continua, rebentando-nos os ouvidos.

D. SEBASTIÃO
Alcácer-Quibir foi uma ruína particular…

HENRIQUE
 E hoje, Portugal é uma ruína geral. Ninguém sabe o que o aguarda. Não é que não queiram saber, mas como isto anda, até se tem medo de saber. Todos os dias, há uma nova má notícia para nos deixar em pânico. O dinheiro falta porque ninguém tem onde trabalhar. Quem trabalha, recebe uma miséria. Não somos pessoas deste país: somos coisas deste país, problemas para quem brinca à governação. Dessa maneira, cá andamos, devagar, devagarinho, também em guerra, mas connosco e com aquilo que éramos há dez anos e não pensávamos ser agora. Temos de conviver com um Alcácer-Quibir todos os dias. 

in "Uma merda qualquer que escrevi há uns tempos"