segunda-feira, março 30, 2015

Ramos



Abre os olhos e sente-se uma bola de canhão, lenta, os minutos são atrito e cada um deles pesa no peito. É virar as noites do avesso quando acordar se sente como um choque frontal. Há um disparo algures na barriga que coloca o corpo em prisão, sem grades, suspenso na pena que tem de si mesmo. Já lhe chamaram dor de pensar, mas aparecia-lhe sempre na ponta da língua a anestesia de viver. Ou de ir fazendo de conta que a vida existe para lá de um rectângulo. Silêncio sepulcral no quarto, batalha campal para ficar com os pés para fora da cova, e morre-se quando não se vê para lá do dia em que se existe. Dormir é sempre mais apetecível quando os momentos magoam os dentes: Regressar para um útero com duas pernas, mas sem nascer: apenas sentir calor, por uma vez que seja. O frio dos lençóis convida à ilusão e a simplesmente desligar, não aparecer, poupar o corpo a mais uma jornada; e aninhado, encolhido, ele sabia-o e queria evitar o inevitável.

O inevitável é a vida, que demora a adormecer e a dar-se por vencida, não a pulsação ou a faísca, mas sim a luz que desperta e lança para o mundo olhares cobiçosos, mesmo que a fuga seja a razão pela qual se respiram bofes, se rouba o fôlego que se deita fora e se constroem cabanas sobre areia, ainda que nos convidemos ao estertor e e seja o desejo mais vivaz aquele de sumir no colchão, de render a guarda e guardar a renda que pagamos por cada salto sem rede e cada arremesso de nós sobre alguém que rebate para bem longe, mesmo com lágrimas nos olhos, porque nos fôlegos só conta o cansaço e nunca o exercício. Era isso. Se assim não fosse, o pé não seria periscópio de carne fora da manta, e não se daria ao risco de calcar os destroços de suspiros anteriores, espalhados por todo o quarto como um nevoeiro tóxico de respirar, mas doce embalo da noite. Quando afastou a campa e se viu de pé num calvário, atirou-se mais fundo do que os seus pensamentos: agarrou em mais um dia e deixou que se acomodasse no seu bolso, junto aos outros.

Um dia pegaria neles todos, faria um calendário, paginado, que faria dos tempos de outros um adiantar da hora de Verão. Um dia, ou dois, ou três. Quando sair da cama é uma surpresa, o tempo torna-se presente de aniversário para o futuro.

sexta-feira, março 20, 2015

Um dia são dias



Para nós, os que perdemos um pai, o 19 de Março é um pouco como arrancar um dente: tem de se viver, sabemos que vai doer e já está. A questão é que nunca está, e que continua a doer mesmo depois de o sol se ter posto e reerguido no dia seguinte. É algo que continua, enquanto nos lembrarmos. Tem de ser assim, e se for de outra maneira, algo está errado. Só dói porque se sente a falta, e a ausência só marca quando a presença contou de alguma maneira. Vive-se assim: enquanto houver memória, não há corações adormecidos. É uma gradação, mas chega um ponto onde não baixa mais: estabiliza. Nunca me consigo habituar a ir ao cemitério, as poucas vezes que agora visito, e não sentir nada; e nem me custa o passado. Arrelia-me muito mais o futuro, e tudo o que o meu pai não pode viver, principalmente o que lhe podia proporcionar. Gostava que tivesse orgulho naquilo que faço, em ter um trabalho e em construir alguma coisa de base, de algures no mundo haver alguém que tem dias melhores só porque eu dediquei a isso o meu tempo. Gostava que pudesse um dia pegar num bébé a que chamasse de neto. Gostava de lhe dar a oportunidade de não adiar e viver o que um dia deu por garantido e que um atalho da vida lhe roubou. Tudo isso me dói, e se calhar é também egoísta porque o prazer que teria em vê-lo partilhar de tudo isso é mais meu que dele. Alguns meses depois, descubro que uma parte minha morreu com ele, e não teve enterro. Paira sobre mim.

Não vou falar mais desta dor. Não a vivo sempre, há dias em que consigo que me passe ao lado, principalmente dias em forma eLíptica e dias de amigos que estão quando até nem quero que pessoas invadam o meu espaço. Mas há quase sempre um momento em que não ignoro. Dias do Pai? São praticamente todos, devo-lhos e quero pagá-los. A minha prenda é cada momento em que respiro e sigo. Espero que seja o suficiente, pai.

segunda-feira, março 16, 2015

Um fragmento



O céu era o seu dono, mas o cardume de mar alugava-o em dias de tempestade: o farol, no topo da falésia, embalava o sono dos aldeões quando estavam acordados, e só os despertava no sono, quando se corre onde se quer porque se está seguro. Segundo se lê num livro quase carcomido na gaveta da casa paroquial, os Celtiberos mantinham uma fogueira naquele preciso local, quando se tornava obrigatório estender a mão a quem guardavam dentro dentro de si, mesmo que os braços fossem pequenos. A luz ajudava os barcos a contornar o perigoso promontório, e desde então que a falésia tomava para si os medos das pessoas, apenas para dissipá-los. O rei D. Sancho I ali mandara erguer uma pequenina torre, um ensaio do farol, e como os séculos nunca levam consigo os temores, deixando-os apenas mais reforçados para o tempo que se segue, cada pessoa que vivia na aldeia sentia o súbito apelo de ver a figura entrecortada de um pilar luminoso, quase em contacto com a esfera que servia de tecto às suas cabeças, como uma antena que reúne os desejos íntimos e os põe em contacto com o que de mais externo existe. O farol era uma necessidade, e de riste em riste, o século XIX cravou aquele empilhamento de tijolos ordenado que resistia a praticamente tudo, exceptuando uma tempestade em 1949, quando as lâmpadas estilhaçaram, vítimas da cirurgia brincalhona de um relâmpago. No entanto, a estrutura manteve-se com a seriedade devida aos garantes da estabilidade mental de toda uma aldeia, e se todos tremem, nunca o farol pode sequer abanar. Não abanou, não caiu e apenas se despenteou.

Tiago olhava-o todos os dias, antes de dar o mundo aos seus pés. O seu olhar, numa tentativa de fazer do mundo um esboço de casa, tentavam trazer a Tiago algum conforto que aquele assertivo pilar com alma parecia encerrar no seu silêncio. Há muito que na aldeia se perdera a mística dos tempos antigos, mas em Tiago, reverberava ainda um lampejo do que não se descreve porque não se sabe, mas que se sente, pois nunca se esquece. Já só aqueles que tratam o tempo como um expoente elevado ao cubo erguiam, pelo menos, um reflexo gesto de saudação a quem lhes protegera os sonhos de criança. Tiago imitava-os, já adulto, mas tudo tinha um sentido: afinal, ele guardava em si ainda o que sonhara em criança.




domingo, março 08, 2015

Bloco


Consegues senti-lo? O giroscópio da tempestade a abanar na tua barriga, chamando pelo movimento  penumbra de todas as cavernas que te deixam oco? O esmorecimento, o desânimo, o descalabro que martelam com mais fulgor do que qualquer outra música ou ruído? És capaz de inquietar a tua mão em ti, e perceber como um redemoinho te absorve afunilado para o teu interior, espirrando-te numa confusão de peças para que nem sequer tenhas veleidade de te reconstruir? Sentes, não sentes? Está lá, e depois de se dar aos ventos, é incapaz de parar. Roda sobre si mesmo, faz de ti rotação e às voltas tantas, percebes que nem sequer te mexes, e que nem pretendes fazê-lo. Por dentro, o bulício; por fora, a inércia. Colocar o teu peso sob as pernas custa quase tanto como dar pernas ao peso do tempo que te preenche. Sentes sim. Até demais. Quando estar junto a outros te transforma os olhos em lagos, quando simples palavras alheias são agressões ao teu bem-estar, quando cada palavra de incentivo é uma úlcera por dentro da carne. Tudo gira, nada te parece giro. Nada te parece sequer: apenas está ali, a boiar, a rotação desacelera a gravidade e flutuas sem atrito e realidade, todos os resultados possíveis e aleatórios te são indiferentes. Não alternativas, porque não as escolhes. Cada desvio e cada atalho têm o mesmo destino, e tu sabes qual é: o giroscópio é também bússola e o rumo encravou.

És curto demais, e encolhes-te na cama. Lençóis por cima, todo o mundo uma muralha que te recusas a ultrapassar, porque não há razões. É aí que finalmente sentes a falta de sentido.

terça-feira, março 03, 2015

MicroMacros



Sem ela, o tempo é uma colecção de estilhaços. Carlos, de pé no centro do seu próprio mundo, perguntava-se se um dia era dia sem que a voz dela fizesse nascer o sol, mas o mundo gira em redor dos astros mesmo que agora o tempo fosse menos particípio e mais passado. Carregava em si o peso das partículas, dos pós que se amontoam aos poucos nos tecidos e nas articulações e fazem os segundos em que que nos desintegramos, apodrecemos e, consequência final, carregamos o nosso próprio fim. Cada passo é mais um bocadinho de nada, e por isso estava parado. Se não se mexesse, talvez sossegasse, na ladina paz do respirar que parece prolongar a vida quando traz a pequena morte ao corpo, e um funeral florido ao espírito. Carlos carregava o seu próprio andor sob duas pernas, e no momento, a imobilidade pareceu mais amiga do que os gestos. Quando nos dói, a acção assume figura inimiga, e há sempre a ideia de que um passo equivale a peças partidas. A dor transforma a pele em porcelana, cada movimento uma fisga pronta a rachar o que aparenta estar inteiro, mas sabemos, numa pequena nuance do ar, que quebrámos sem apelo. Era isso, Carlos partiu-se, e o peso era tudo o que nele estava contido e agora perseguia o vazio com a mesma voracidade com que digeriu Carlos.

Como tudo o que se parte, Carlos foi ao chão. No pó acumulado, talvez um casulo, e mesmo na verdura que o tapa, uma caverna. Em tudo o mais, vassoura que acumula na caverna tudo o que escapou. Voltar a ser inteiro ou refazer-se com o que se tinha: tudo o que Carlos pode procurar é simplesmente saber se está a tempo de se desfazer do que não pode.