quarta-feira, abril 15, 2015

Abraço de breu



Há quem não perceba a diferença entre estar triste e estar deprimido. É muito óbvia para quem sofre, mas pouco evidente para os que estando de fora, assistem a alguém que parece estar apenas ligeiramente indisposto. Não se está. Pesa por dentro, como a mó de um moinho, colada ao estômago. O esforço de quem se encontra mergulhado nessa dor de nada dar prazer, de tudo ter um sabor desfeito a cinzas, é precisamente não se tornar num vírus que contamina os outros que ainda se preocupam o suficiente para estender a mão e tentar ajudar, quando não o conseguem. Não porque não gostem ou porque não queiram: simplesmente porque não compreendem.

Tenho vivido em períodos de depressão desde os meus 15, 16 anos talvez. Na altura, começou por me parecer uma tendência para a tristeza ou um estado de menor alegria, mas à medida que esse estado se prolonga durante dias que são uma longa colecção de instantâneos perpétuos de se achar que não se tem nada, começa a surgir uma certeza meio vaga de que não é tristeza. Quando desaparece, a depressão é apenas a recordação de uma fase menos boa (outro nome que também lhe dão, quando querem fazer crer que é tudo parte da vida normal), mas o seu regresso, com uma força dupla e ainda maior, deixa a certeza de que não é normal, não é passageiro, não é leve: é a lei da gravidade da alma, fazendo-a cair em impacto no chão da nossa mente. É nesta porta giratória que tem circulado a minha vida. Quando digo às pessoas que já experimentei de tudo, e todas as sugestões que me deram, não minto. Estar com a mente ocupada, sair de casa, procurar estar com pessoas, tentar ser positivo, arriscar, fazer as coisas ao contrário do que faria normalmente... Tudo. Nada resolve. Os períodos podem durar semanas ou, como já me aconteceu, meses seguidos. Acontece aí que queres fugir da realidade, principalmente; e não é da realidade da dor, é da realidade total: não contactar ninguém, não ver mais nada do que as quatro paredes de uma divisão fechada. Aconteceu-me já simplesmente deitar-me na cama e passar o dia todo, porque o simples som de alguém a falar me faz chorar. Ser frágil assim, quase de forma irracional e inacreditável; ou simplesmente, não conseguir suportar a presença de alguém no trabalho. Dares por ti com dificuldade em respirar, sem qualquer motivo físico. Ou deixares-te só estar, desistir de quase tudo o que podes fazer, e sentires perder, no processo rápido, o gosto por tudo o que antes te fazia começar o dia. É pouco isto. A espaços, foi metade da minha vida.

Porque não procuro ajuda? Já o fiz. Não resultou. Podia tentar algo mais forte? Sim. Mas na mente de quem está deprimido, a pergunta é óbvia: porquê? E essa pergunta faz a diferença. Porque estar assim é confortável, de certa forma, mas também a garantia de que não piora. Não nos faz sentido erguer com a certeza de se cair, e saber que se cai ainda mais profundamente. Novamente, quando se explica isto, ninguém percebe; e não é mania de nos sentirmos especiais enquanto habitantes do negrume (eu não me sinto, pelo menos): é mesmo o que se explica e se tenta. De todas as vezes que voltou, foi mais longo, mais forte, mais intenso e mais desesperante. Não quero descrever aqui o tipo de ideias que já me passaram pela cabeça, ou até o que habita dentro de mim. Sinto, de certa forma, que ando a viver um período desolador há quase ano e meio, com pequenos espaços para respirar pelo meio, um período que me fez perguntar, várias vezes: de que vale a pena? Eu juro que tentei responder à pergunta de várias maneiras. Mas em todas as respostas, não consegui encontrar na vida um motivo sequer de prazer permanente que me faça querer estar vivo. De certa forma, mantenho-me por uma sensação de dever, um martírio não religioso de quem suporta dor mental impossível porque sabe que ceder ao que é fácil é destruidor para alguém específico e uma falta de respeito para com quem não está, e de bom grado eu daria neste momento os anos de vida que me sobram para ter essa pessoa de volta, porque não sei que mais farei com o tempo que tenho de percorrer de arrasto.

A diferença entre estar triste e deprimido é um pouco esta: quem está triste faz contas de somar com o amanhã; quem está deprimido quer simplesmente dividir subtracções de tempo, e arranjar um atalho para não estar consciente, ou sequer sensível.  Sentir é o que sabemos mais, e por mais alto ou largo que se seja, nunca se é suficiente para aguentar a dor. Vivo na vontade de rebentar e no esforço de não fazê-lo, de fazer dos meus dedos ganchos, quando aqui e ali me oferecem um ponto onde me agarre.

Mas já faltou mais para desaparecer no vácuo do espaço.

quinta-feira, abril 02, 2015

Mentiras



Abri a caixa de correio e no fundo, dois envelopes inclinavam-se. Num deles, a escrita apressada e empilhada de uma caneta azul atirara-me aos olhos o nome do meu pai. Não é uma novidade que ele espreite ocasionalmente para fora daquela caixa. Nos serviços públicos e privados, nomes são números, e como a Matemática do luto, os números são imortais: existem sempre, porque prestam um dever. Mas ver assim na caligrafia personalizada de alguém que, pegando num envelope, tomou o meu pai como vivo e se demorou a enviar uma mensagem, abanou-me um pouco. Por alguns segundos, deixei-me levar pela ilusão e tentei-me a regressar para o interior de casa, chamando o meu pai do seu silêncio habitual para lhe entregar a carta. Durante esse pequenino espaço de tempo, onde couberam vários desejos, ele estava vivo. Menti a mim mesmo no 1 de Abril, e foi a única mentira que poderia tolerar: a de que o mundo não é mundo, mas sim uma construção, e que de quando em vez, os blocos tombam para se reorganizarem e termos a ilusão de que o tecido da realidade se vira do avesso, e que Julho foi apenas uma saída que não se tomou, e afinal o caminho correcto é mais à frente.

Contei então outras mentiras que queria ouvir. A dor que se vem acumulando no último ano não é afinal dor, mas sucesso;  o afogamento de um adeus é afinal esbracejar livre em águas cristalinas; todos os choros de revolta são sorrisos de satisfação; a raiva permanente é comichão passageira; a derrota está rota e deixa passar todas as vitórias que mereço; cada dia ímpar encontra-se quando somos par um do outro; a minha boca na tua é a verdade que procuro, e tudo o resto leves rumores que me levantam a pele para soprarem tudo o que partilhamos num olhar. Deixo que a carta me minta, e crio também uma ilusão da realidade, porque sem ilusão e sem as mentiras que podemos contar, não existe sequer a esperança de que tudo não passou de uma possibilidade, e existem múltiplas possibilidades. Até conseguir sorrir é uma mentira, mas escolho, nesses segundos, não falar com a realidade, sermos mudos, cada um no seu canto.

Vítor Manuel Paiva Cristóvão Simões. Assim mesmo, no azul de uma BIC, cravado na carta entre o recorte do papel. Ali, na mão de alguém, o meu pai voltou a estar comigo, vivo; e por momentos, também eu voltei à vida, aquela que queria e não a que tenho. Uma mentira. No sopro dos teus lábios, mesmo que na minha mente, também não me importo de ser enganado; e voltar a abraçar o meu pai é real, e isso basta-me.