terça-feira, junho 30, 2015

Luz vasta



Deitou-se num rumor, e quando acordou, certas neblinas projectaram nos seus olhos uma impressão de alvorada. Longe de ser vaporosas, eram escuras, e claras ou qualquer coisa de permeio, uma fronteira que se ultrapassa no gotejar de minutos, quando a noite pica o ponto de saída e decide que por agora chegou, que até mesmo a Natureza não aguenta o breu por tempo demasiado, que de vez em quando, contra tudo o que a vida ensina, a luz tem um lugar cativo, sem regras, sem condições, apenas esperando que numa curvatura rotativa, a Terra dê licença a si mesma para voltar à visibilidade. O vento não se compadece com o Tempo, e soprava-o para o dia que ainda só agora gatinhava. No cimo do rochedo, no topo de todo e apenas com o céu como barrete, o vento é a companhia que lhe dizia estar num outro mundo, e que embora com o corpo bem assente no chão, estendido, na verdade voava bem agarrado, uma fuga que não o era, e daí talvez fosse, porque na altitude, o mundo parece distante, e é como se estivessemos cada vez mais longe dos dias e mais perto das noites, mesmo que desaparecessem também. À noite, chega o sono, e vão-se os problemas. No cimo do rochedo, o mesmo era válido. Tudo se vai, fica o que vale a pena.

Não lhe custou desembaraçar-se do saco-cama. Não lhe custou vestir-se de rajadas, e até por dentro as tempestades amainavam. Não lhe custou ver outros deitados ainda enquanto o céu já se em guaches espirrados talvez de um canto escondido das montanhas que se alinham como um exército cuja única função é proteger a sanidade daqueles que, acossados pelas bestas do quotidiano, percebem que só o topo de tudo é solução e escapatória. Não lhe custou perceber que a hora ainda não se apresentara em conformidade, e que a excitação não tem etiqueta e pode até surgir em gestos simples, como andar descalço no granito, esquecer sapatilhas e não pular, até mesmo contar o que não se vê no horizonte e imaginar se não haverá mesmo uma grande máquina de engrenagens oleadas que esconde os espectáculos. Não lhe custou a pedra fira, nem o blusão dois tamanhos abaixo, nem o conforto e certeza de estar vivo do frio, nem lhe custou companhia de estranhos, nem o mundo a dois terços ou mais, nem sequer o silêncio turbulento de surpresa, nem lhe custou faltar a mão dela agarrada à sua, dois sorrisos que compreendem o universo, um outro tipo de mundo fora deste, um planeta lá longe com pés fincados neste, e nem lhe custou perceber que o topo do rochedo estavam bem fora de ambos os mundos.

O que restou foi o Sol. Pinchou como se projectado por uma mão invisível, no regresso em que após todas as rotações abençoa tudo o que se vê, e até o que se desconhece. A diferença foi que desta vez lhe persignara a cara de luz, e tudo o que não lhe custava e custava deixaram de importar. Apenas aquela imagem de que tudo era possível, até mesmo o desaparecimento das trevas, só porque uma grande bola de pedra faz o favor de girar sobre si mesma, e tudo muda, tudo é diferente, todos se sentem mágicos e especiais. Apenas e só; e teve ali a certeza de que o apenas e só é a vida mesmo, sem as distracções das grandes coisas. Apenas e só. Tal como apenas e só, e quanto tempo decorrera desde a última vez, o sorriso apareceu de guerrilha na sua boca, por segundos, aparição mitológica e certeza folcórica. Um ponto pequeno, uma grande vitória. A Terra não parou, o Sol não se apagou, mas lá dentro de si, o Universo expandira.

quarta-feira, junho 24, 2015

Presente envenenado



Sou  especialista em proclamar votos que nunca cumprirei. É isso que me torna num dos mais paradoxais críticos do político português. Quem me segue deve lembrar-se, ou então nem isso que não foi nada de assim tão importante, que há uns meses prometi a mim próprio, e aos próprios que a mim me lêem, que escreveria um livro no prazo de dois anos. Depois de algum tempo a marinar todo aquele caldinho de troviscal interior que gera os dramas que nos predispõem a carpir perante um vasto auditório de egocentrismo, gostava de anunciar que o processo começou e que por ora, a promessa será cumprida. A história está urdida, começa o processo de escrita. Gostava assim de partilhar convosco um pequeno excerto do que já está produzido. Mesmo que não comentem, mesmo que as vossas palavras não me cheguem, saber-vos aí foi uma das cordas que me levou a tratar a escrita como um amigo pessoal, um motivo para viver e uma maneira de me aperfeiçoar, desse por onde desse. Todos os dias em que escrevo são de desilusão pela imperfeição das imagens, o aquém das frases; mas são também um momento onde comungo do vosso apoio, do vosso gosto, do vosso entusiasmo. Considerem isto uma tentativa ténue de agradecer.

Lembrou-se de uma história que o pai lhe contara havia anos, era ele uma criança de olhos abertos, com uma lista de perguntas do tamanho do fémur de um mamute na ponta da língua. Não lhe era difícil recordá-la, pois fora um evento único este, não porque o pai fosse avesso a contar histórias, pois era alguém de quem as tretas brotavam da boca como o suor assoma à pele, mas sim porque fora uma das poucas que lhe contara, e afinal é difícil trocar palavras com o filho quando de repente se some e este, com oito anos e agora de olhos bem fechados, com forte possibilidade de aguaceiros, lança ciclones de dúvidas a uma mãe  presa para sempre numa frente fria. De qualquer forma, e onde ia, ia na história, era sobre Mitologia Grega, algo que Paulo aprendeu a adorar, e depois desaprendeu de todo: a mitologia organiza a vida numa estrutura bela e clara e linear, e Paulo chegara aos 30 anos com uma certeza assinada por baixo a sangue de que a caminhada respiratória do ponto A do paro ao ponto B do cadáver era tudo menos isso. O Pai contou-lhe que Cronos, deus do Tempo, era um filho da mãe paranóico, mesmo sendo o mais poderoso dos Titãs, cheio de força e poder. Mas Urano e Gaia, deuses do Céu e da Terra, revelaram-lhe que estava destinado a ser substituído pelos seus filhos. Cronos decidiu então enveredar pelo negócio do homicídio canibalista. De cada vez que sua mulher Rhea dava à luz um filho, Cronos devorava-o sem se deter: o tipo de divindade clássica a quem o clássico Hannibal Lecter dedicaria um altar feito de dedos. Todavia, Rhea fartou-se, e ao sexto filho, sabendo do apetite e loucura do marido, embrulhou uma pedra num cobertor e enganou-o, tendo o titã engolido a rochosa oferenda, e daí talvez fosse forte mas pouco inteligente, porque qual paladar confunde o sabor da carne com a rocha? Bem, mas este sexto filho seria Zeus, futuro deus dos deuses, que cresceu e passou anos a planear uma vingança daquelas contra o pai. Na altura certa, já adulto, Zeus tomou o assunto nas mãos, sob a forma de uma foice e abriu a barriga de Cronos como quem escancara as portas da prisão, fazendo sair de lá Demeter, Hestia, Hera, Poseidon e Hades, seus irmãos e futuros compinchas de Selecção Olímpica. Ficara sempre em Paulo a imagem irreal de homens e mulheres feitos saídos de um abdómen como árvores que rompem por necessidade tão essencial de viver que tudo o mais é paisagem. A vingativa prole armou então uma guerra contra o pai e seus companheiros, e acabou por matá-los ou bani-los ou prendê-los, e Cronos acabou os seus dias acorrentado numa gruta profunda, longe da luz do mundo e de tudo o mais. Com o tempo, percebeu que os Gregos davam voltas às rotundas da linguagem e da narrativa para dar lições de moral e descrever o mundo, e o que aquela historieta contava era que o Tempo, ou seja Cronos, é a força criadora e destruidora, que sem obstáculo devorará tudo aquilo que insufla de vida, Senhor Supremo, põe e dispõe e pega na nossas vidas num baralho para voltar a dar sem ordem, e só divindades conseguem domá-lo. Compreendeu que os Antigos veneravam os deuses gregos não por serem mais inteligentes, mais fortes, mais belos ou mais artilhados, mas porque num assomo tão humano como é a retribuição, conseguiram descerrar o antro que tudo sorve num redemoinho indiscriminado. Várias vezes, em noites como aquela, Paulo se vira como o Zeus que chega sorrateiramente, empunhando uma lâmina de agoiro, e que o Pai deixara de ser tempo comum por ter medo de si, de ser substituído e ultrapassado, sufocado de morte pela sua presença. Na sua mente, era um inimigo, uma nódoa, e por isso ele se fora embora da sua vida. Várias noites podem ser vários, e tudo isto uma vida inteira de uma terceira mão a misturar o caldeirão que dentro de nós remexe cordas para cima e para baixo no estômago.

sexta-feira, junho 19, 2015

Lírica



Se calhar fora tudo o produto de um livro de rimas do qual se tentam retirar poemas perfeitos à pressão. Sentado no banco de madeira, a noite a puxá-lo para espaços ainda mais desconfortáveis e a ideia de que, se virasse a esquina, encontraria apenas outra curvatura, ele acumulava estrofes sem destino e também um soneto que nunca sequer obedeceria a uma outra métrica que não a do caos e de uma ausência de tudo, simbolizada por uma pequena partícula com a forma dupla de alguém que não tem nome, mas na sua presença, concentra todas as razões pelas quais os pés se colocam à frente um do outro sem tossir ou arrastar.

Se calhar, nada rimava, e o que existia era simplesmente um jogo de engano, doce e divertido, onde todos contávamos a história de que éramos felizes, só porque o seu contrário significava o fim do mundo, ou pelo menos um mundo sem fins comuns. Escutava a noite, mas nem o dia lhe poderia sequer decifrar um código que todos viram, mas ninguém decifrara uma vez que fosse. Todas as desencriptações caíam pela base por se sentarem simplesmente num banco, e nem poesia ou filosofia traziam ordem a uma inquietação em moto perpétuo que pintava o seu sono de espertina e os acordares em tons de pontilhistas, pois cada dia era uma reticência.

Se calhar, respirar é uma figura de estilo: hipérbole de expectativas, pleonasmo de dores, a personificação do objecto que somos quando aceitamos as regras do jogo e na ausência de sentido, um oxímoro onde carpe diem e tempus fugit se abraçam, para se extinguirem em contradições.

Se calhar é tudo isto. Se calhar vale, ou não. Se calhar aguarda-se pelo que vem depois, ou antecipa-se aquilo de que se tem a certeza. Quando em dúvida, beija. Mesmo que não escrevas um poema, pelo menos cantaste um verso.

terça-feira, junho 16, 2015

Descobrindo as diferenças


Nas mãos, uma pedra, imperfeita e áspera, centeninhas de recantos não burilados, inacabados. A pele preenchia-os com a energia própria do calor do corpo, e num momento ele conseguia sentir tudo, até a ventania lenta que, uma vez por festa, faz festinhas no topo das árvores. Sentiu-se em contacto com tudo o resto, e num olhar, pensou encontrar o sentido não da vida, mas pelo menos de como a vida se desmonta, e baralhando volta a dar-se em peças inteiras bem diferentes. Na plenitude, pensou: porque nos escolhem e porque escolhemos? Porque é aquela mais do que a outra, e qual a diferença entre as mesmas dez pessoas que gostam do mesmo, que fazem o mesmo? O que nos leva a, sentados na vida, nos agarrarmos a uma e deixarmos as outras nove? Se os átomos são os mesmos, se a carne é igual em todos, se os beijos que guardamos no intervalo entre cada poro recebem o mesmo calor, a mesma intensidade, o mesmo resguardo, que impulso diabólico leva o pulsar de gigante vermelha a fixar-se em órbita daquele buraco negro especial que nos suga tudo, e não nos deixa nada a não ser a impressão de que somos maiores do que o Universo na pequenez do mundo frágil e indefeso que recebemos de herança? Aquela pedra, ali à sua mercê, era ele, nas digitais posses dos caprichos incompreensíveis do corpo e da mente, de tudo o que de misterioso há entre ambos, e ainda de outros primos afastados consanguíneos.

Nem todos são iguais, e se não era esperto para entendê-lo, algures em si um posto de decisão, pouco fiável mas tirânico, escolhia e sabia bem dos motivos. Há peles mais confortáveis do que outras, e lábios que são berços que embalam e não camas de pedras. Olhos feitos aparições que ordenam tudo, perfilam o mundo e trazem a uma cama as dimensões do planeta, aos cabelos o aspecto de um avião que percorre infinitas viagens enquanto as pupilas se colam na retina, e para lá disso, e abandonam os corpos que afinal são posse e consentimento, e prendem de tal forma que se pode viajar não parado como constrangido, e ser livre ainda assim. Para lá do que é comum, e das mesmas proteínas e substâncias que nos tornam filtros de um deus menor, há uma centelha minúscula que ardendo, é mais do que fogaréu. Na pedra, viu tudo isso, tentou entender o que existe, e não foi bem sucedido, mas algures em si, sentiu que se procurasse, encontraria então quem fizesse do andar um lençol de algodão, e dobrá-lo-ia para não se amarrotar. Talvez, num dia qualquer, numa altura das outras, e como se, por outro lado, conhecendo a vida lhe tirara não só matrícula como as matizes da íris, lançou a pedra para longe e fez dela um estafeta mensageiro, com esperança de que voltasse não na volúpia da brisa, mas talvez na constância dos regatos, e quis ter vontade de se sentar junto ao rio lá em baixo, esperando por boas novas, por camas e olhos e pele, por um riso que lhe atravessasse os ouvidos com a missão de lhe bater palmas por ter nascido, e dar-lhe finalmente uma razão para se levantar de manhã e poder olhar o mundo com a altivez do que se sentem desejados e com um propósito,

Não o fez. Ganhou na mesma. Duas semanas depois, encontrou uma outra pedra, mas festa estátua, insuflada de vida, espantosa como lhe criava múltiplos atalhos para ser ele, e ainda assim se reinventar sói pelo prazer de lhe dar 40 homens para amar encerrados num. Mas esse catavento é para ser virado numa outra nortada.