sexta-feira, julho 24, 2015

Urbi et orbi



Arde-lhe a cidade na mente quando pensa no quanto ali ardeu com aquela cujo nome, não pronunciado, ainda assim parece um loop entre as fendas que na sua cabeça o rodeiam, o prendem e, chegado aquele momento em que se respira por fim de peito solto, o libertam. Prédios, vielas e pontes à vista são a desolação à margem da memória, e onde um dia dois sorrisos fizeram um céu, aparece um mal-estar de enxofre sulfuroso, que torna cada recanto numa suspeita e os passos na fuga que se arquitecta. Ser feliz tem momentos, poucos deles com futuro. Prometera nunca mais regressar, mas as promessas são como as coberturas de tartes: foram feitas para se partir e esmigalhar, alimentando ilusões e voraz sofreguidão na barriga, mas não no estômago, apenas naquele trilho algures entre o umbigo e as costelas onde parece desenrolar-se um tubo de corda para cima e para baixo, de cada vez que se lembra delas, de primeiros beijos, de últimos abraços, de lágrimas em forma de lápides. Ali, onde se enterraram, foi também onde uma vez nasceram um para o outro, como se nunca tivessem existido de outra maneira e como se jamais lhes passasse pela cabeça respirar sem que o outro pudesse partilhar os mesmos átomos de oxigénio. "A melhor coisa que nunca pensei acontecer-me", e ele sentira-se ganho na sua própria perda de independência. "És quem nunca julguei existir", e como é que dois nunca se tornam possíveis nenhum deles sabia, e jamais pensara sequer possível conhecer, com tanto pormenor, a pele do rosto de alguém, como a sola gasta traça um mapa das calçadas que toma para si como o único mundo que conhece, fora da vista, perto do sentimento, e totalmente colada a um coração multiplicado dentro de bocas, em toques de dedos e no resfolegar das roupas que procuram pretextos para serem segunda pele.

A cidade, no olhar, não fora fogo de vista. A cidade é um segredo que ela lhe murmurou várias vezes, um casaco que ela, simplesmente, lhe despiu para pendurar num cabide algures na alma. Pelas suas mãos, a cidade tornara-se morada gigante, onde se vive e se constrói aquilo que ergue a vida verdadeira. Sem isso, sem a sua presença e sem o seu dedo indicando e desenhando, a cidade era apenas um rasto de poeira acre na boca, uma sombra que paira e se esvai, um simples pretexto para alimentar um ganido que geme baixinho debaixo da língua. Simplesmente, era um autocarro que, sem paragens, vai do princípio ao fim sem recolher ninguém, sem se deter na estação terminal e destrambelhado, continua só, não se sabe bem para onde, nem com que objectivo. Segue apenas sem propósito. Ele senta-se, de vez em quando, e a cidade parece-lhe um vulcão, mas adormecido, e sente nas tábuas do banco todos os motivos para ser mais uma pedra da calçada, ou mais um tijolo simples  no que não vive. Depois levanta-se, tenta voltar, mas fica lá sempre. Não na cidade, mas no segredo murmurado. Recolhe-se então esticado e sonha com uma torre de rumores, muito ao longe, de princípios. Por fim, adormece.

terça-feira, julho 14, 2015

Pai II



Não sei se um ano cabe numa frase, ou sequer em várias num ocaso. Passou, e apercebo-me que não consigo capturar com palavras aquilo que foge delas, e que custa a articular, nem que seja para puxar o outro de locais onde só ele mesmo se pode arrancar. às vezes, ajuda a mão no ombro, o abraço fugidio, mas sentido, e até uma meia dúzia de palavras atabalhoadas, com a muleta dos clichés. No entanto, e no fim fim que gera este princípio da certeza de que nada voltará a ser como dantes, estamos apenas connosco, e assim vivemos. É das primeiras coisas que se aprende quando perdemos alguém sem retorno, e descobri isso dois dias depois de o meu pai ter morrido, quando articulei um texto em que tentei expressar o que não conseguia ter expressão. Várias pessoas chegaram a mim: comoveram-se, reviram-se, choraram, e naquela altura percebi que por muitos que todos passássemos pelo mesmo, eu estava ali, entregue a mim, e chegando aos outros, mas parado no meu próprio luto. Torna-se cada vez mais suportável, mas nunca passa totalmente, a não ser que fujamos do mundo, e essa é uma viagem que não quero fazer, mesmo que esse mundo seja dor a cada golfada de ar. Sentir é o contrário da morte, e se não o fizesse, seria ainda menos o homem que era o meu pai.

Perdi muito neste ano que passou. Perdi uma pessoa que conheço desde que me soube eu, e perdi-a na roleta das células. Com ele, perdi o pouco de esperança que tinha no sentido do mundo, aquele faz de conta que nos anima os olhos quando ainda não descobrimos que não há grande sentido, nem qualquer tipo de organização. A poesia existe, mas na caneta do acaso, e nunca se escreve a tinta permanente. Percebe-se que em tudo o que se quer ganhar com os outros, aposta-se o que se vai perder, e quando mais se aposta mais se perde, e quando se joga, é preciso saber se estamos dispostos a perder-nos para nos ganhar. Quando via o meu pai a definhar aos poucos, a deixar de ser Vitinho para se tornar só num -inho, pensava nisso, de como, se é para ir assim, se é para explodir num estertor silencioso, numa jaula chamada corpo onde o cativeiro nunca chega aos olhos que estão de atalaia para dizer aos outros que se vive, sim, mas vive-se mal, e que nós ali somos ao mesmo tempo a vergonha da morte, e o consolo do tempo que se arrepia de frio quando a carne arrefece, se é para ir assim, mais vale a pena torcer a pele e arrepiar tudo o que nos pode arrasar, de colocar o pé na porta do metro que se fecha para reabri-la e entrar na viagem, mesmo que o túnel seja escuro, se é isso que nos deixa mais próximos do resto. Um ano depois, perdi muita coisa, no meio dessa perda maior que uma pedra e um monte de conchas guardam; mas ganhei algo que foi um casulo de arroz doce quente. Não foi ele que mo deu, mas a dor de alguém só serve quando aduba e fertiliza árvores nos outros, e nesse sentido, um ano depois, o meu pai conseguiu criar em mim um pequenino pomar apenas e só por ter sido, uma vez na vida, fraco perante um brutal verdugo contra o qual ninguém é forte o suficiente.

Sempre que visito o meu pai, pergunto-me perguntando-lhe: sou digno de carregar o teu nome? O teu espírito, aquilo que vêem em ti? Sou digno de seguir as tuas passadas e fazer uma vida? Sou digno de poder transmitir um dia a quem me vale mais do que eu a tua memória, o teu nome, a tua figura, a única coisa que afinal conhecerão de ti? Sou digno de estar aqui no que é teu, de proteger e guardar os teus, de ser eu, de me olharem como alguém que merece ser, pelo menos, respeitado, de alguém através do qual te poderão ver, mesmo nas tuas imperfeições maiores e pequeno coração de actos gigantes?  Nunca obtive resposta, e a culpa não é tua, mas sempre minha. Um ano passou, mas eu não cheguei a lado algum, transito nem sei bem de onde para onde, nem de que maneira. Estar em frente a esse rectângulo onde agora te tratam como hóspede perpétuo é um pouco como trocar de estação no metro, procurando nova linha e nova cor para o rumo que se quer. Passou um ano e não sei para onde vou. Mas por dentro, descubro que continuo a pensar-te, de quando em vez, e a desejar que me aprovasses, e que me visses como um homem que na sua estranheza, apenas queria que lhe desses o mundo em meia dúzia de palavras e um sorriso retorcido. Que não há semana em que não gostasse de chegar a casa de cabeça erguida por estar num emprego onde constrói algo com os dons esquisitos que nunca lhe suprimiste. Gostava que pudesses ver esse homem que é uma criança ainda, por ser teu filho.

Passou um ano, e uma vida consegue lá caber dentro. Várias até, e sobra espaço para aquelas que podias ter vivido. Imagino-as, escrevo-as e nessas nunca morreste sequer. Apenas continuaste por aqui, e ser imortal é isso, mesmo que toque a finados e alguém chore quando o tempo passa. Estás, bem presente, e há quem viva sem sentir isso uma única vez.

segunda-feira, julho 06, 2015

Tens piada privada



Posso existir em muitos lados, mas vivo em poucos, rarefeitos, esparsos. Todos somos em corpo no mundo, abanando e tremendo no gozo e sacrifício do que é. Mas viver mesmo, ser mais do que os contornos da carne e explodir faíscante na vida, isso já acontece pouco, em em esporádicos lugares. Aqui, a escrever, existo de sobremaneira e naqueles momentos em que as palavras desenham a fina linha com que quero traçar o que penso, talvez me aproxime de viver. No entanto, a plenitude do mundo está no espaço entre os nossos olhos, horizontal ou vertical, seja quando nos deitamos em paralelo da nossa respiração, e no como torres que se defendem de uma guerra invisível, ou quando numa perpendicular entre o meu tronco sentado e o teu deitado, tomamos a amnésia do mundo com voracidade, e entregamo-nos a nós, aos segredos que podem acontecer entre um par que dança no mundo sem mexer os pés, e faz de todos os seus sons e cheiros papel de parede, só na atenção dos pormenores que são as pupilas e que se tornam, assim sem querermos, a respiração numa oração permanente, numa dádiva para ser gozada porque a cada viagem de ida e volta do ar, posso mirar-te e até mesmo tomar os teus cabelos como um lençol de seda nos meus dedos adormecidos, calmos, porque descansam num leito regalado de comedimento, de simplesmente ceder-me um pouco do que pode ser, do que não se tem, e afinal até se possui. O mundo que existe quando te olho, e tu tens o amável reflexo de me devolver o olhar, e de segurar a minha mão não agarrando, mas com mais cinco dedos invisíveis que me prendem em liberdade.

Viver quando nos encontramos é imediato: sem demoras, sem tempo, só com as medidas de lábios e pontas da língua a pedir meças um ao outro. És-me auto-suficiente.