segunda-feira, agosto 24, 2015

Terra batida



Uma estrada existe, assim mesmo, está lá, e é serpente entre montes, passa junto de uma praia e termina num promontório que bate à porta do mar, entrando sem pedir licença. Só passa lá quem deseja, porque é impossível dar com esse caminho por acaso. Escolhe-se e pronto, a pé ou de carro, seja até em cima de um cavalo branco ou negro, cada um dá por si a fazer o caminho mesmo que nem sequer saiba qual o final. Em determinadas noites, o pavimento são luzes amarelas, reflexos da água que se espraia da chuva, ou mesmo do mar quando a maré engole todo o espaço até se chegar um pouco ao que deve ser a via de cada um. Nessas noites, o vento é mais forte, mas se o caminhante não estiver com pressa, ou outras ânsias, é possível que as suas faces se encham de salpicos de sal diluídos nas água que sopra do vasto oceano, quem nem sei qual é, ou sequer se está já mapeado. Cada salpico sabe a suspiros, e ninguém passa fome de desejos pequenos. Nenhum mapa mostra a estrada: ela apareceu com o prenúncio do mundo. É um agouro, é um adágio, é o que leva cada um a fazer dela casa temporária.

Não sei se alguém a terá percorrido de fio a pavio. Li uma vez sobre um celta chamado Dombrar que terá nascido na montanha onde a estrada deu por si já feita. Mesmo ele ouvia lendas sobre esse estrelado caminho como se fossem histórias mais antigas do que a própria rocha, anteriores a duas ou três glaciações, e cresceu com aquela ideia fixa de que não se questionada o rumo, nem sequer os pontos: aceitava-se, e por isso, quando cresceu e viu em si pernas capazes de suportá-lo para lá de tombos e trambolhões de atrapalhação, decidiu, e é sempre por aí que se começa o percurso na estrada, que iria fazer desta a sua tarefa diária: comer quilómetros, mas mastigando-os com prazer. Tolices da juventude são normalmente desvarios na velhice, Dombrar registou a sua aventura, mas algumas folhas perderam-se, a maior parte até, quando os da sua tribo emigraram para outros picos. O que sobrou é confuso, Dombrar repete a certa altura várias porções, escreve as mesmas descrições, parece sair da estrada para nela reentrar sem sequer se ver fora dela, como se estivesse condenado a repetições e ensaios contínuos dos mesmos passos. Como se a serpente da estrada comesse a própria cauda, se engolisse e voltasse a surgir igual, com as mesmas curvas, mas sem alguns buracos. Paisagens repetem-se, eventos desmultiplicam-se, mas Dombrar nunca é o mesmo, e quando chega ao final do caminho, deixa apenas uma frase: "Não ser eu, tornar-me nas curvas do caminho", e a seguir algumas reticências, e Dombrar assinou deixou o que conseguiu ainda guardar na sua bolsa. A minha avó contou-me que Dombrar fez muito, e que o caminho era esse tanto, e se algum dia, no promontório, dessem com uma sepultura de pedra, com serpentes esculpidas, e também um urso enorme e ameaçador a saltar da rocha como se fôssemos um salmão, era certamente a sua sepultura, pois só no caminho encontrava paz, e quando se parte, é a paz que se procura. Em nenhum outro local poderia o caminhante dormir senão ali,

Nunca encontrei a estrada, embora me tenham já dito que a calquei várias vezes. Já senti mar e vento, e já andei perdido nos mesmos locais uma e outra vez, mas não creio que tenha sido a estrada. Do que me contam, sempre me pareceu maior do que os passos, e as estradas por onde me estendi eram banais e quotidianas e passavam muito bem sem mim. Penso isso, mas sem certezas do caminho. Se a estrada existe, também é assim, incerta, e talvez então já a tenha visto, sentido o seu alcatrão luzente, visto o promontório que abre o meu mundo ao mar. Talvez em sonhos. Ou então, a estrada é mesmo um talvez bem esticado, com tanto de aleatório como de possível.

quinta-feira, agosto 13, 2015

Mero ar



Um sopro de palavras, porque ele não falava: lançava para o mundos letras de mãos dadas, e quem ouvisse que tomasse conta. Sentia-se assim e na propriedade de quem determina o que diz, era a pessoa menos responsável. Perde-se o controlo do pensamento, das ideias e da sua expressão, e perde-se tudo, de facto. É-se um mono simples, hirto como uma estátua, menos expressiva, mas suja do que lhe cai em cima, não de aves, mas sim da própria rotina de cada dia, do despertar/adormecer que abre e encerra as aventuras de 24 horas em tédio. Se saber o que diz, sem saber o que exprime, desconhecendo tantas vezes o que é. Num momento, senta-se e quer dividir toda esta dor em partes, mas quando dá pela sua tribuna, é um buraco voraz dentro de si, que lhe puxa tudo e lhe devolve ainda mais o que já estava acamado no leito subterrâneo de um oceano em forma de planície rochosa. As ondas não batem nas rochas: as ondas são rochas ainda maiores do que as pedras, e cada uma devolve-lhe o que recusa. Como se te dessem o par de meias mais foleiro de todos os Natais passados e futuros, mas em oferta diária. Por isso sopra palavras, por medo. Se as disser com intenção podem quebrar-se na sua língua, estalar e rebentar-lhe a boca em aftas. Proíbe-se de dizer o que quer, abestém-se de eleger o que deseja, e abdica de uma ditadura do seu próprio querer, da vontade, do fogo que lhe estoura todos os tecidos do corpo cosidos em pauta musical.

É ténue, a palavra, e mais ténue ainda cada olhar vazio na parede. Mas pelo menos, ainda está de pé, pelo menos por fora. Porque quando sopra palavras, é estendido na horizontal, sem ar que o eleve, sem levitação ou planador: assim mesmo, horizontal como uma frase, mas sem nunca amontoar a um texto.

segunda-feira, agosto 03, 2015

Palavras num tempo sem tempos verbais (que se arrastam e tentam ser algo)



As gotas de chuva são ponteiros do meu tempo. Cada uma delas um segundo mais que penso em ti, do lado de fora da janela. Na distância atrás da linha das casas, há muito espaço, mas sei que, na tua cadeira, és coberta por um véu de morrinha quando as nuvens te negam um sorriso. Imagino cada gotacomo um pouco de ti, e que esta pequenina morte que me enterra às vezes pode ser evitada por um analgésico visual, ou simplesmente fantasminhas brincalhões da minha cabeça, formados pela gotas de chuva que te trazem. Tic tac, splish, splosh, e a tua face reflectida na penumbra dos dias, contornando tudo o mais que torna as sextas em longas segundas. A chuva hoje é o meu caminho até ti: por entre a água que cai, a minha mão passa seca e encontra a tua, sem hora marcada, mas com tempo infinito. Não é feliz, não é triste, mas é o que mereces e o que quero dar. Oferecer-te, em cinco dedos, muitos mais do que números e dígitos digitais. Quero oferecer o meu coração para que haja espaço suficiente para esse negrume se espalhar e poder assim diluir-se e desaparecer mais rápido. Quero ser um segundo tu, quero ser mais espaço para que te sintas bem, te sintas em casa, para que atravesses esta chuvada impermeável e entres no sábado como quem chega e se senta a uma lareira, aconchegada, quente, protegida. Num sofá que é o teu mundo, numa manta que são os teus livros, a música e tudo o mais que te habita.


E depois, a minha mão pode voltar a mim e nada importa mais, desde que te saiba bem. A tua felicidade é um farol para o mundo em redor, e não quero que se apague. Tudo o mais é água que escorre, na verdade, e que a terra faz sua. Tu acima de tudo, e o céu é apenas uma comichão de miragem.