terça-feira, setembro 08, 2015

O vosso refúgio



Quem me segue desde o início deve ter notado algo de bastante flagrante no conteúdo deste blog. Não têm aparecido por aqui, vai para alguns  anos, qualquer tipo de artigo de opinião sobre problemas reais. Escrevo sobre mim, directo ao coração ou enviesado em metáforas, e isso são sarilhos pessoais empolados. Não valem de grande coisa nas voltas do mundo, nem comparados com assuntos sérios ou crises bem reais, e isto vem de quem deu a mão a alguém que foi morrendo e sabe, por isso, o que um impedimento ao normal funcionamento dos sentidos. Devem ter estranhado que uma pessoa com a minha reputação, de opinativo truculento, se tenha abstido de falar sobre tanta coisinha que por aí andou a moer a população. Ora, tal não foi esquecimento: deixei-me apenas de incendiar um território chamado Internet onde raras vezes um debate sólido é impossível, e de certa forma, adoptei uma atitude a que a minha mãe me chama tantas ocasiões à pedra, para não dizer o que penso só porque sim e porque me apetece. Acredito em opiniões diversas, e em certos casos, elas são obrigatórias: uma discussão sobre o valor de um filme, de um livro ou de um álbum pode fazer correr muita palavra, mas será sempre isso, uma discussão, onde ambos saem com razão e ninguém se melindra a sério por isso.

Outras situações, no entanto, pedem que se deixe o politicamente correcto de lado e, à vergasta, se comece a chamar as coisas pelos nomes e a colocar as situações como elas são. Há campos onde a subjectividade não entra, e se todos têm direito a ter uma opinião, aqueles cuja visão de mundo está eivada de estupidez rija têm de assumir as consequências da maneira como vêem o mundo e as pessoas. Os "Podem chamar-me o que quiserem" ou "Não sou má pessoa, longe disso" ou "Estou apenas a dar a minha opinião" são bordões de perdões que não mitigam o facto de se estar a dizer uma barbaridade e, de caminho, se revelar que no fundo, há ali qualquer coisa que não bate certo. A situação dos refugiados, que tem incendiado murais de Facebook, chats vários e foruns afins forçou-me a voltar a chatear-me com pessoas e a dar opiniões que ninguém pediu e quase ninguém gosta. Aguentei até onde pude, mas o facto é que já vi tantas situações destas ao longo da História, estudando-as e analisando-as, que o "deja vu" dá cabo de mim: percorrer o nosso caminho como Humanidade e concluir que os mesmos instintos de há milhares de anos se mantêm hoje, sob uma capa de civilização e elevação moral, é algo que me dói no profundo de mim, me baralha o pensamento e me impede de ter qualquer tipo de esperança nos seres humanos como colectivo.

Podia aqui traçar um grande retrato histórico acerca de migrações e deslocações em massa de culturas. De como, até no século XX e por razões semelhantes a estas de hoje, milhares de pessoas de uma mesma cultura entraram na Europa sem que isso significasse a perda daquilo que alguns palhaços chamam de "nossos valores"; podia até dizer que entre a emigração de um português que se vê no limiar da pobreza e a de um sírio que simplesmente quer evitar que lhe caia uma bomba em cima está exactamente o mesmo princípio de sobrevivência e direito de esperança; que a livre circulação de pessoas não é apenas uma comodidade para usarmos quando vamos de férias para a pândega nas Baleares e visitar Londres e Paris que são tão lindas; que o que obriga esta gente toda a fugir são os mesmos movimentos sociais e económicos que permitem que todos os fins de semana nos desloquemos ao centro comercial para umas compras, e mantermos o nosso modo de vida assente num capitalismo que sacrifica a estabilidade de outros países, inclusive estes; que foram os Governos ocidentais quem criaram indirectamente este polvo chamado ISIS de que temos medo; que a maior parte destes refugiados são pessoas normais, sem ligações terroristas; que há décadas vivem pessoas de outras culturas em Portugal e não foi por isso que o país implodiu; que "os nossos valores" são tão lindos que há coisa de um mês ninguém se preocupava com eles, e no fundo significam que quem tem cu tem medo, e ai deles que vêm roubar-me aquilo e aqueloutro; que "Muçulmanos" designa um universo de milhões de pessoas que englobam regimes ditatoriais brutais como a Arábia Saudita (de quem ninguém se importa de receber combustível para meter no carro), mas também países como o Irão que por detrás de um retrato de maldade e infâmia escondem um estado a meio caminho entre o Oriente e o Ocidente; que em muitos países muçulmanos, Síria inclusivé, a liberdade religiosa é real; que estes emigrantes e refugiados são sim pessoas com aspirações e não coisas ou bactérias que vêm contaminar tudo. Que tudo isto não é idealismo ou "paleio do CES", como um idiota chapado já me disse: quando é que o sofrimento humano virou uma questão de opinião ou de escolha? Se qualquer uma destas pessoas estivesse na posição de cônsul em Bordéus, no ano de 1942, tinha sido lindo.

Estas alarvidades que leio todos os dias não são novas, e portanto, se as dizem, incorrem numa tradição milenar que vem desde as antigas civilizações e atingiu o seu apogeu durante a Segunda Guerra Mundial, com a Solução Final. Se a Alemanha a planeou, outros países colaboraram não permitindo que os Judeus se refugiassem no seu território, usando argumentos muito semelhantes aos que vocês usam. A sério, sem tirar nem pôr: eles vêm destruir a nossa cultura, temos de tratar da nossa casa, vamos ficar orgulhosamente sós; e lembram-se quem queria ficar orgulhosamente só? Sim, aquele senhor que deu nome a uma ponte em Lisboa. Pertencem todos à sua escola, dentro do vosso discurso a favor de democracia e contra a opressão, de celebração de uma cultura global, de heróis multi-culturais que aplaudem e de uma soberba moral que arrepia, de se colocarem como guardiões de um castelo feita de merda e que esboroa ao mínimo abano. São herdeiros da normalização cultural do Klu Klux Klan, afirmando que os negros eram todos maus por igual, sob o disfarce de que uns são piores do que outros, e claro que não estamos a falar de toda a gente. São herdeiros de todos aqueles que, durante a guerra dos Balcãs, ficaram de braços cruzados enquanto ocorria uma chacina étnica, falando "Não queremos agravar o conflito", mas com subtexto declarado de "São outros, não nos interessam. Podem matar-se", e estranham depois porque é que o mundo está em dormência permanente e já tão pouca gente se dispõe a ajudar o outro dando-lhe a mão, seja dos "nossos" ou não. Tudo está ligado, não somos ilhas isoladas e quanto mais depressa se perceber isso melhor. Querem resolver estes problemas ou os do país? Nada mais fácil: comecem por votar, ou melhor, comecem por exigir pessoas cuja visão das coisas não se limita a uma semana de avanço, que percebam como o mundo funciona e evitem que conflitos em terras alheias se agravem só porque não são cá, não tendo a clarividência de entender que cá é todo o lado onde os pés podem calcar terra. Tentem-se informar, perceber o mundo, descobrir o que há para lá da vossa casca e perceber que os "maus" não têm raça ou cultura: os incendiários que colocaram o país a arder são portugueses. Os que matam polícias, esbofeteiam as mulheres, agridem os filhos são também portugueses. Têm desculpa por isso?

Assumam de uma vez por todas que são intolerantes e não se escondam. Ao menos isso. Todos nós que temos empatia com aqueles que querem simplesmente sobreviver não somos profetas ou amantes de mártires: somos gente com coração e que quando olha, vêm alguém como nós, e não um "outro" indefinível. Isso de dizeres que gostas mais do teu cão do que destas pessoas não é só trollar: é ser de uma estupidez sociopata a toda a prova. A partir de hoje, qualquer um seja idiota o suficiente para escrever este género de coisas desaparecerá do meu feed. O mundo é um lugar vasto, com muitas ideias e muitas batalhas ideológicas a travar, mas a estupidez é a maior dessas guerras e não terá fim. A prova é esta: quando a dor das massas desesperadas gera um encolher de ombros, isso é normal; mas se provoca raiva, asco e ódio, revela que há ainda entre nós gente pequena, pessoas que valem zero e que pode detrás da afabilidade de um aperto de mão, de clichés em murais próprios e de um copo no bar e "pago eu!", são o que de mais rasteiro existe entre nós. Ninguém é má pessoa por se preocupar com o futuro; mas quando tal implica acabar com o mesmo futuro de tantos milhares apenas porque se tem medo e se desconhece o que existe para lá do nosso ecrã de computador (que poderia servir como canal de informação, mas é bem mais lindo para ver fotos de gatos), isso é uma prova de desumanidade. É isto. Livres de exprimir uma opinião, mas assumindo as consequências da mesma.

Sois todos tacanhos. Todos. Isso, afinal, não é tão português assim: existe também na cultura muçulmana, por exemplo. E não é tão lindo como"nós" e "os outros" somos tão iguais, afinal?

terça-feira, setembro 01, 2015

O justo dos sonos



Há algum tempo que estou louco. Melhor, em intermitências de loucura. Não liguem ao velho adágio de que o louco é o o último a sabê-lo. Louco que se preze tem a inteira e perfeita noção de que a sua cabecinha se prepara para zarpar algures para lá do que controla, e nesse momento de lucidez improvável, o louco é quem reconhece humildemente que não se pertence por completo, e que nada do que decide é confiável ou sequer benéfico por definição. O reconhecimento do desvario é um golpe por estar confirmado que perdemos o nosso derradeiro amigo: nós mesmos, em imperfeições nas feições da cara e da alma, mas cujo instinto de auto-protecção é a defesa que temos contra tudo o mais.

O instante preciso tombou ontem em dominó, quando dentro desse mundo de espelhos que é a minha mente me apercebi que recuperara um velho hábito, matreiro, de montar uma megalomania para todo o restante corpo ver. mostra quem manda, dominar instintos, baralhar a natureza, e numa demonstração de soberba esmagadora, pelo momento em que a atenção se esvai, e a carne aceita o repouso do sono como mudança de turno dos desafios. Imaginem bem nisto, chegar a um ponto onde se quer quebrar o que se  estabeleceu desde o momento em que a espécie humana, ou qualquer outra, se animou de electricidade estática em movimento e recebeu em troca de todo esse arcaboiço de dias as horas em que, remetendo-se à quietude, por vezes inquieta na pele e até mais fundo do que esta, simplesmente prescinde do tempo e descobre ao desvelo os segredos que se escondem para lá da Morte. Acordar é nascer cada dia, e o sono a viagem mais próxima, de cabotagem, que podemos fazer em redor do fim que se crava algures numa curva sem espera. Eu, feito um despenteado mental, proponho ter um controlo tal da minha atenção que desespero por saber quando se dá esse clic, em que o interruptor descai e tudo o mais só regressa noutro momento de consciência que é como vir à tona depois de uma prova de apneia.

Não é a minha estreia neste absurdo. Noutras aventuras iguais me meti, em todas elas perdido de tudo o mais, descrente, até sem objectivo e agora, quando me deito, reconheço isso na minha vida. Decisões certas que são ao mesmo tempo erradas, permanências na casa de partida, a decisão como raiz mirrada e que nunca aparece, deixando ao mundo um silveiral indeciso a morder o interior, a rodear o que se construiu e incapaz de parar. É loucura, tudo, até mesmo aquilo que não decido. A demência é tamanha que até o inexistente se presta a colocar uma vida em balanço constante na ponta dos dedos que tremem. Quando já nem dormir é consolo ou bálsamo, mas sim um outro incêndio em permanente rescaldo, nunca se apagando. Sinto a falta de coisas, sinto muito a falta de pessoas, mas começo principalmente a ter saudades de mim mesmo, e nem sei bem onde ando, o que faço ou se, enlouquecendo, estou mais perto de me recuperar, ou pelo contrário, afundar no bolso da camisa de forças. Tremo de todas as vezes que me deito agora, porque não sei se, despertando, não estarei bem para lá do que posso recuperar, se na minha solidão permanente, tendo-me como companhia, não ganhei como melhor amigo a pior das pessoas.

Chama-se estado de vigília, mas como pode ser se deixou entrar com esta facilidade tamanho inimigo?