quinta-feira, fevereiro 18, 2016

Quantos queres?



Se o fumo da memória se pudesse agarrar, de maneiras quem nem eu entendo nem a Física permite e nem a Química gera, as minhas mãos seriam uma caverna. Não sei se alguma vez observaram de perto uma pintura rupestre. Não é exactamente uma pintura: na verdade, é feita tão em braille, com entalhes e depressões, que se pensarem que os nossos antepassados eram cegos ou viam com as mãos não se tornaram alienados de repente. Figuras e desenhos são, na verdade, a expressão física de alguém que quer deixar marca, que se recusa a simplesmente vaguear no sopro de vida que lhe foi concedido e não se importa que o que tem à frente seja rocha, ou que esteja frio medonho e incapacitante e só exista, à entrada da caverna, uma pequena fogueira, ou que de repente um urso entre e o apanhe desprevenido. O importante é o prolongamento de si para o mundo que conheço, para o real que faz parte dos seus dias. Ele vai, mas ao mesmo tempo, há-de ficar.

As memórias são assim. A inevitabilidade do seu sumiço é certa em quase todos os casos, mas enquanto existem são marca do que já não é, e o que não é pode ser um momento fugaz, uma longa história que se estica ao ponto da transparência ou a pessoa que quando esteve era tudo, e mesmo não estando é um bocadinho mais do que devia ser. Não sei em qual destas categorias coloque a Olívia, que passou em mim como um pincel pré-histórico. Eu, superfície rugosa; ela uma palha de aço encarniçada. Juntos só podíamos criar faísca e daí ao fogo é uma baforada. Tudo o que me lembro é de ter desaparecido, porque eu caibo aqui e nesse passado fui tanto que a minha existência passou de certeza por um estado da matéria desconhecido, no meio ponto entre acontecer e simplesmente apagar-se, onde quando nos sentamos explodimos em trezentas e setenta mil partículas, cada uma delas um ponto que a Olívia beijou, e por isso não pode ter durado meses, nem sequer o meu tempo de vida.

Não me consigo lembrar, sabem, é o maior problema das memórias, é que nunca nos lembramos delas, nem quando as temos presentes. Por natureza, não se pode confiar na memória, nem para consolar. Nunca é bem o que se viveu, mas pode ser até bem mais do que houve. São tudo o que temos, mas são nada ao mesmo tempo. A Olívia simplesmente seguiu o seu trilho de amnésia, ou não, nem siei, nunca lhe perguntei nem posso e fiquei com este saco de memórias que é também um saco de nada, cheio de ar, que virado do avesso deixar cair precisamente o que já existe no chão. Criar este palácio de lembranças dói na destruição, porque até que ponto não ficámos só nós com a fotografia mental da sua construção? Quando se cria algo, quer-se ser lembrado, deseja-se que mesmo ao longe, mesmo quando um regressa ao estado binário, o palácio continue a existir de certa forma, de uma maneira que ambos partilham, que em noites quando sopra o vento e eu me aperto na dúvida de que o meu corpo ainda exista por completo quando sinto tanto a tua falta, desmembrado e espalhado pelos cantos da cama, também a Olívia, também tu te desfaças um pouco e nas fendas refulja um brilho de mim, que ainda me guardas e só na ruína da noite permitas que espreite e saia de ti e também me abraças na mágoa de que não me tens de facto nos teus braços. Revives, como eu, outros enlaces de sacos no chão e mãos livres para nos sustermos, mas não nos sustínhamos de todo pois a roupa caía mais rapidamente do que nós na realidade do reencontro. Minutos depois, a queda era uma falha tectónica, e tremo ainda hoje quando o revejo.

No entanto, pode apenas ser memória, ainda que a tua pele tenha existido na realidade das minhas cavernas com dedos; e agora, que relembro, sou os teus olhos. Vejo-me através deles e não sei se é a adoração do passado ou a ignorância do presente. Não sei se esse olhar chega ao futuro, se me vês também lá, e o truque derradeiro da memória é a viagem no tempo, de julgar que o futuro acontecerá exactamente da maneira como o vejo, e que é passado e que a Olívia foi-se e não volta sequer para me dizer que tudo estará como eu penso, que pelo menos me posso recrear novamente nos espaços em aberto de um sorriso genuíno que mentia aos recantos escuros da vida da mesma maneira que a memória me engana nas manhas do que me lembro, ou penso que lembro, pois recordar é o coração a fantasia e a realidade em negação.


Mas a Olívia é, em totalidade. É tudo isto, é tudo o que nela projecto; e é também o que sempre me deu e tirou. Ela é eu e é ela; e um dia, seremos ambos qualquer coisa, quanto mais não seja uma memória.

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

Colectâneas 3


Quando acordo, duas marcas espalham-se pela minha cama: a minha e a do sonho que tenho contigo. À noite parece que ressonas, mas é apenas o meu coração a saltar batidas que devia fazer. Chamo-lhe a apneia do suspiro.

Dou-me liberdade para te amar, sempre, sem me prender ao que seja. De te ver sempre que quero, de te beijar quando o desejo, de te ouvir rir quando bebo a tua alegria como alguém que preciso para que o mundo faça sentido. Dentro de mim, pelo menos, és livre de ser quem és, de fazeres o que desejas, de me abraçares quando te queres atirar contra o meu peito. Neste momento, para mim, liberdade é ser teu. Não é uma prisão: é espaço amplo onde consigo finalmente ser eu todo.

O teu nome percorre as minhas veias em maglev e agarra-se a todas as minhas células sanguíneas, ao ponto de sangrar ser o maior pecado que posso cometer.

Se a relva dos campos crescesse com os meus suspiros, o mundo era todo ele um pulmão de clorofila.

Vive em mim um ectoplasma bem definido, toma a tua forma quando, sem esforço, me recordo do ar em suspensão à tua passagem. As partículas assentam e fazem fila pelo rasto que deixas, desintegram-se por não terem a energia que sustenta o que deixas para trás, as sementes, a luz. O ectoplasma tenta ser tu, mas é apenas uma imagem. O ectoplasma quer ser tu. Deixas?

Quero dar-te todos os meus amanhãs, para que não acorde uma única vez na blasfémia de não te pertencer e ao teu mundinho. Para isso, gostava de embrulhá-los, com laçarote, e deixá-los à tua porta. Numa manhã fria, mas de calor tendencial, sais à rua, e antes de tudo o mais tens a caixa. A tua curiosidade desembrulha-a e o apartamento onde vives é de repente um canto, algures no mar do Tempo, e dás por ti no melhor dos mundo possíveis. Escolhes. Gostava de aparecer. Mas só se me invocares, pensando que mais do que tudo, gostavas de ouvir um "psiu". É a fórmula mágica do meu encantamento, está escrita na parte inferior da caixa. Os amanhãs são nossos, de uma maneira ou de outra, enquanto não desaprender a respirar.

Ela deixa-se levar, ele, levado da breca, deixa-se ser tótó, no cimo de uma torre. Felizmente, salvas-me, Rapunzel, e fica selado um conto de fadas onde vivem felizes para sempre, porque não interessa a duração do momento, mas a sua intensidade: aqui, está a eternidade.


Quando a cama é pormenor, tudo o mais biologia  do destino, e nos teus olhos encontro finalmente o que procurava desde que me ensinei a deprimir: o sentido de tudo, o caos organizado, a vida finalmente dar uma resposta ao porquê. É isto, és tu.