sexta-feira, março 04, 2016

Escolhas



Lembro-me de ser mais novo, criança no recreio da escola entre toques de campainha, e em qualquer canto a hipótese de encontrar minúsculos dedos a tocar o acordeão de um "Quantos queres" cresciam à medida dos meus passos. Quem inventou esse jogo certamente se fartou de jogar à lotaria, entre tantos milhões de hipóteses e possibilidades, e numa qualquer inocência que já sabe muito bem do que a vida joga, reduziu tudo a oito, e sabendo também, que a vida não só é roleta, como também póquer de cartas escondidas e bluff, atribui um algarismo a cada escolha: escolhes o número, calha-te o desconhecido. pode ser maçã ou banana, pode ser vermelho ou amarelo (e só quer amarelo quem ainda não percebeu que na magia das cores, o amarelo é demasiado revelador e tem tanto mistério quando um banco de madeira acabadinho de pintar. Não um carcomido: os carcomidos já apalparam tantos rabos que imaginar um exército de pessoas sentadas é um pedido para nos sentarmos), pode ser carro ou foguetão. Quando te pedem, não sabes, e não saber faz parte do jogo e da piada, do riso que se segue ao aleatório, de uma certa roleta de amigos que gira e giros que são, só riem porque também eles já quiseram quantos, e quandos.

Cresce-se e de um jogo de oito hipóteses aprendi vários mais, com múltiplas escolhas de escolha múltipla. O meu preferido, no entanto, tem uma só: abro a porta do quarto e se estiveres lá dentro, um ponto apenas pode levar a vários caminhos, maiores até do que o quarto (e nalguns momentos, maiores até do que é maior, para ser sincero). Atravessar a fronteira entre o mundo e essas quatro paredes é tão arriscado quanto seguir para lá dos Urais, e tão perigoso. Adoro encontrar-te estendida na cama, a ler só. Esse caminho, por si, puxa perguntas sobre o livro e recriminações que não se falam e só se olham. Se não estás a ler, simplesmente olhas o tecto, e perguntas são também estorvos, pois estás a olhar bem para lá de tudo, desenhando um outro mundo onde te confortas de poltrona. Dizes-me várias vezes "Vou acolá, onde não me prendem, e não és tu quem me agarra, mas sim, este ar podre do quotidiano, onde se respira secura se queremos viver e passar de um dia para o outro sem medo do sacrifício", e esse olhar que me repreende é viagem e trilho. Enquanto olhas o tecto, mais vale a pena deitar-me no chão e nem sequer tocar na cama. Quando entro na casa de banho, não demora mais do que a passagem de um pente até que estejas também, olhando por cima do meu ombro. Perguntas-me o que faz um homem quando percebe que, no espelho, é outro que não aquele que viu pela última vez. O mesmo que a mulher, provoco eu: sobressalta-se, habitua-se, regozija-se e a melancolia do amanhã em que tudo se repete estende-se e eleva-se sobre nós. Uma vez, quando te respondi algo do género, simplesmente agarraste na minha cabeça como quem segura um ovo para parti-lo, e por momentos julguei mesmo que ias fazê-lo, mas só fechaste os olhos. Segundos que para mim foram fotografias tuas, e quando me largaste, um sorriso e um beijo na testa. Senti-me melhor.

São muitas as histórias deste quarto, impressas por nós, impressas em nós e sobre nós também. As tuas preferidas são aquelas que acabam num sumiço; as minhas, habitualmente, começam por uma brincadeira e terminam na mais séria das coisas, séria porque me muda e transforma, porque quando termina sou outro. Na verdade, são a mesma, e é um "Quantos queres?" diferente, entre risos, ou simplesmente sem barulho, simplesmente uma cadência de pingos de corpos, das quatro dimensões da língua (que, saibam vocês, só se podem ver com bocas a três dimensões: a que sobra, a quarta, ninguém sabe bem como apanhar, mas o certo é que todos a sentem e desejam), de elementos puros, do cheiro a tempestade que se define pelo movimento e também pela paz depois do movimento, de uma série de escolhas e de coisas que começaram bem antes de fazermos de um quarto algo de parecido com um quinto dos Infernos. 

As escolhas, os caminhos e tanto que pode acontecer ali pelo meio. Nós incluídos, e quanto termina, não é bem um fim, mas outro começo, outra história.Um sem número delas.