segunda-feira, julho 18, 2016

Linguagem



Encontrei-a na conferência, mas ela a mim uns dois meses depois, se a memória não foi atropelada pelo sangue. Sem palavras estava, com uma pequena comunicação sobre filosofias e linguagens, cuja origem nem me interessa gora, mas apenas que nas minhas mãos meio texto se alinhava enquanto que a restante metade esperava criação instantânea no momento em que após "Senhoras e senhores, o doutor Rodrigo Melo" fosse esperado da minha boca iluminar uma plateia inteira com ideias e conceitos, alguns prosápia, uma dose de verborreia, mas tu nem assististe. Soube eu depois, claro, tal como depois soube que ver-te naquele dia não foi tão inofensivo como pareceu. O nosso cumprimento, mãos uma na outra, fora um falso negativo e o cruzamento no coffee break mais grávido de oportunidade do que parecia. Claro que só o soube quando me conheceste então, dois meses depois, e no entretanto nem pensei mais em ti. Mas também não me lembrava de mais nada desse dia: conferências são todas iguais. A minha vida de académico é uma câmara lenta de deja vu, só mudam as estantes.

"Posso perguntar-lhe algo?", e voltei a reparar em ti. Uma lembrança finalmente colocada no lugar, no passado vestias azul, naquele momento qualquer coisa semelhante ao vermelho, e essa cor assentava-te muito melhor como descobri mais tarde, principalmente quando nada vestias para ocultá-la. "Claro", e nos teus olhos de pupilas perspicazes a pergunta que só não podia ser calada por quem ou é maldoso ou então acha uma piada tão grande à vida que lhe descobriu o sentido: que é escrita por um comediante: "Você inventou aquela conferência toda, não foi?". Tremi e entaramelei um pouco, meio chocado meio zangado, todo eu mais vermelho do que a tua roupa. "Só metade", e nem escondi o meu pequeno crime. "Até gostei, e digo-lhe que preferi assim: conferências costumam ser habitualmente instalações artísticas mal montadas, e eu gosto mesmo é de thrillers". Ela era da corrente comediante, portanto, e falámos logo dos nossos altos e baixos de conversas em público, de como imaginar a plateia nua nem acalma, só enerva, porque existe sempre alguém com ar de quem tomou banho pela última vez no século XIX e sem roupa, então, que pivete. Concordámos que a falta de desodorizante não combina com o excesso de sapiência, que a pluralidade dos mundos habitados de Giordano Bruno pode ser contraposta ao minimalismo das mentes ocupadas de tantas e tantas universidades, e que o truque infalível para o relaxamento antes de falar era uma ida prévia à casa de banho. Ela preferia kiwis, mas comigo geleia de morango quente nunca falhava. Hábitos nossos, que eram de cada um, mas na conversa se foram tornando num património que podíamos tornar comum e transformar em amizade. Trocámos cartões.

Nunca nos ligámos no entanto. Sei bem que esta história teria sido bem mais engraçada com posteriores encontros, a rapidez de um beijo escondido, depois de horas de rica conversa sobre o mundo, a vida, as correntes do conhecimentos e todos os demais termos que nós, professores, usamos para passarmos por gente esperta. Na verdade, passaram-se três anos até que nos voltássemos a reencontrar e apenas para dizer um rápido olá entre voos no aeroporto de São Petersburgo. Ela falara sobre Dostoievski e a cidade (a que eu assistira, apesar de nada ter a ver com a minha área) e eu fora apenas com a minha ex-mulher de dois anos como apoio moral. Ex-mulher, não ex-amiga (foi sempre, aliás, e mesmo quando morreu, vinte e três anos depois, continuava a ser talvez o mais feliz divórcio dissonante da lógica que encontrei). Mandámos umas piadas, recordámos aquela longa conversa uns tempos anteriores e seguimos cada um a sua vida. O cartão que me entregou ficou guardado, numa gavetinha, mas bem trancada, porque como na vida, e como nas comunicações de conferências, a minha especialidade era deixar a coisa a meio: abrir em grande de depois ir improvisando, e ela notara o meu improviso, desmontara-o e sempre pensei que, se um dia a convidasse para um bar, se nos escondêssemos num recanto mais afastado de todos, sorrindo, acariciando o tampo da mesa como metadona da pele, ela descobriria que Rodrigo Melo é um daqueles que aparece mas não fica, que surge mas nem urge e que se rasgar convicto um papel, é para mais tarde recolá-lo. Estava aqui alguém demasiado bom a ser mecânico da observação para que de repente lhe abrisse o meu capot. Preferia que o meu motor tossisse. O meu telemóvel nunca apitou o seu interesse, portanto deixei-me ficar estacionado.

Penso nisto enquanto espero falar sobre mecânica da pontuação e a filosofia de Popper. Bem chato para vós, bem interessante para um conjunto de ressequidos na plateia. Esta está toda escrita e revista, nem eu sonharia improvisar sobre Popper. Seria Impropper (desculpem a piada, garanto que costuma resultar em certas salas mais filosóficas). Faltam uns segundos para entrar. Então, um rapaz, cópia de imitação de classe, entrega-me um bilhete. "Vem da plateia", e espreito um pouco pela cortina vendo apenas sonolenta gente esperando soporífero. No papel, "Acabou a espera", e não entendo, nem a filosofia, nem a linguagem. Quando entro, ela sobe ao palco, agarra na comunicação, rasga-a e eu nem quero saber dos papéis, só consigo forçar uma miragem que me racionalize tudo aquilo, e quando ela, que nem o nome quero pronunciar com medo que suma em fanicos, cruza os braços, seio que quer que improvise. Que desta vez faça tudo por inteiro, mas da maneira mais difícil. Improppério (outra piada de salão), e o microfone ligado recebe-me: "Desconstrução para reerguer o mundo, e recuperar a linguagem", um silêncio absoluto, algumas palmas, estardalhaço receptivo, todos contentes por poderem« sair mais cedo, e tendo aprendido tanto sobre Popper como se me tivessem escutado por inteiro.

Ela devolveu-me o cartão. "Demorei, mas cheguei, e onde estava não digo; mas sempre vim a teu caminho" e perguntou-me logo se havia algum bar para onde nos pudessemos escapulir. Claro, disse, conheço um com recantos distantes. e onde as mesas são mágicas e seriam as únicas onde me atreveria a imaginar todo um mundo de palavras arfadas que faria brotar da sua pele.