quinta-feira, setembro 26, 2019

Fachinação 3: O olho que tudo vê


Kashgar é uma cidade com mais de dois mil anos. Ninguém sabe exactamente quando foi construída, mas é certo de que se situa num dos pontos mais importantes na História humana: a linha que separa a Ásia central dos antigos impérios que ajudaram a China a nascer. É aqui que se cruzam diferentes culturas e etnias, onde os tradicionais orientais de olhos em bico até têm uma importância menor. Aliás, a cidade é maioritariamente Uigur, um grupo étnico de maioria muçulmana e costumes ancestrais enraízados, cuja língua homónima teve origem no que é hoje o Médio Oriente. Dá para terem uma ideia do quão deslocado este povo se deve sentir num mundo de caracteres em mandarim. A cidade de Kashgar é conhecida por outro nome no resto do país, tendo sido adaptado para Kashi. É assim que se apresenta em estações de comboio, aeroportos, notícias da televisão; e apenas um dos vários sinais de extermínio cultural com que nos cruzaremos nos dias que aqui passamos. Os Uigures são o principal problema da política externa chinesa, circulando internacionalmente notícias de perseguições e raptos, campos de reeducação, destruição de património, tratamento destes cidadãos como seres humanos de segunda. É uma política que se estende a toda esta província, Xinjiang, a maior da China, um monstro geográfico maior do que a França e a Alemanha em conjunto. Montanhosa e desértica, não possui muitas cidades e estas são afastadas umas das outras. Pela sua distância em relação ao poder central de Pequim, Xinjiang é como que um familiar esquecido, lá longe, a quem são dadas garantias mínimas de sobrevivência, mas pouco mais. O preço em troca é a obediência e a conformidade e os cinco dias que aqui passaremos serão uma introdução ao que pode ser um totalitarismo disfarçado, bem educado, mas em última instância, fatal. Kashgar não é a capital da província; no entanto, é onde este processo é mais evidente.


Quando chegámos ao hotel onde ficaremos durante dois dias - um estabelecimento de cinco estrelas que na Europa se ficaria por três - as regras do jogo são óbvias de imediato. Apresentamo-nos na recepção e somos convidados e dar os passaportes. Nada de estranho. No entanto, pedem-nos que estaquemos num determinado ponto e olhemos um aparelhinho. Uma câmara. O bicho que mais rapidamente se reproduz nesta cidade. É pequenina e bem portátil, mas presente e um sinal de que sabem quem somos e onde estamos. "Chegaste a Kashgar", segreda-me enquanto me rouba a cara. Quando subo ao meu quarto, ainda venho a pensar no surreal que isto é. Mas deixará de ser surreal durante o resto da viagem. O meu companheiro de quarto é o Hélder, advogado no outro lado do mundo e que faz pela primeira vez uma viagem nestes moldes. Vai mostrando um espírito de um garoto a quem enviaram num campo de férias, um entusiasmo que só consigo reconhecer em mim numa memória distante. O quarto é um recreio, vasculha todos os cantos, mete conversa, faz perguntas sobre fotografia, conta como comprou a máquina antes da viagem e ainda está a tentar perceber como funciona, se lhe posso explicar, que lhe aconselharam aquela mas ele nem sabe muito bem se é melhor ou não. A Polícia Chinesa não poderá ajudá-lo, calculo. Ainda me sinto algo difuso, talvez por estar há mais de um dia sem dormir. Aqui, são quase seis horas. Fim de tarde. A ideia é darmos uma voltinha pela cidade e estranhamente, não me sinto mole nem com sono, apesar do abafado calor. O grupo reúne-se à entrada do hotel e antes de partirmos para visitar o centro de Kashgar, fazemos um pequeno desvio até um restaurante que não fica muito longe de onde estamos. Não é uma simples paragem de comezaina. Este edifício foi, até 1947,, um baluarte diplomático do Império Britânico na Ásia Central. Na altura, esta zona era um nada ainda maior do que é hoje. A única razão para a presença do Reino Unido na região devia-se ao chamado "Grande Jogo", um conjunto de manobras diplomáticas - e por vezes militares - que opunham a terra de Sua Majestade ao Império Russo, que na altura crescia em ambição e tamanho. O objectivo? O domínio da Ásia, principalmente do Médio Oriente. A História que aprendemos na escola, centrada no Europa, leva a que ignoremos que a importância que o maior continente do planeta teve na evolução dos povos. Mas nos finais do século XIX, quando o consulado foi fundado, ela era bem evidente. Na altura, qualquer cônsul nestas bandas devia ser desenrascado acima de tudo, pois tinha muito pouco apoio. Era como uma lança em África. Os cidadãos britânicos que por ele eram servidos encontravam-se espalhados por toda a província e muitas vezes, incapazes de dar notícias. Kashgar, se procurarem num mapa, fica a pouquíssima distância de quatro países; a partir daqui, chegavam informações de todo o lado, um local charneira do Oriente para o ainda mais Oriente. Apesar do humilde exterior, um alpendre verde com um branco, encimado por uma telhadinho pintado de várias cores com a indicação do nome do restaurante, Chini Bagh, saber todas estas informações torna o momento algo solene, imaginar as desventuras de espiões, as manobras diplomáticas, as revoltas que tiveram este edifício como alvo. No interior, ainda existem porções da arquitectura original, longos corredores brancos de traços arabescos, salas hoje de jantar com estuques e baixos-relevos de inspiração oriental, a interpretação britânica em modo kitsch da arte árabe. Faz-me sentir o que mais gosto quando visito locais ditos históricos: estar lá há anos atrás, sem máquinas do tempo, só a corrente cronológica a prender-me bem firme a anos que não são meus, nem nunca foram, nem podem ser. Mas por momentos, são-me emprestados.


Boa parte da cidade foi, à falta de melhor termo, achinesada. Uma sementeira de edifícios altos e sem identidade, misturados com imitações de arquitectura árabe. Longas avenidas atravessam-nas, rectas e direitas, percorridas por carros e pela maior praga que podem encontrar no país: aceleras eléctricas. Estão por todo o lado e na verdade, andam por todo o lado. Estradas e passeios, vias velocipédicas, eu arriscava-me até a teorizar que ajudam os seus donos a deslocar-se dentro de casa. São um bocadinho como o tubarão do "Jaws"- aproximam-se num silêncio que rumina e não se mostra até ao derradeiro momento, quando já estão a menos de um metro de nós e o condutor apita na subentendida atitude de que lhe saltamos fora da vista e ele nem tem de travar, São bandos de gafanhotos e é-lhes arrastado o segundo maior amigos dos chineses, o telemóvel. É frequente encontrar os condutores fazendo livefeed enquanto circula, sorrindo, falando, gestos grandiosos. Ninguém pestaneja, a circunspecta e dura Polícia chinesa nem chama a atenção. Tudo é válido, de videochamadas até aquela gravação que mais tarde cairá no Youtube. Enquanto circulam a quarenta à hora, sob póneis metálicos silenciosos. Ecológico, mas temível. Por vezes, a ecologia é levada ao extremo, quando em vez de uma ou duas pessoas, vemos bem assentadas no veículo quatro, cinco, até seis. Quase sempre crianças, quase sempre com menos de doze anos, rindo e cantando, como eu andava de bicicleta quando era garoto e me achava um radical e um fixe. Descobrir o que é realmente Kashgar implica abandonar as avenidas e entrar na cidade velha. Embora o governo chinês se esteja a entreter em fazê-a desaparecer, ainda sobram algumas partes. A entrada que tomamos está barricada com uma barreira de metal. De cada lado, soldados, metralhadoras bem visíveis. As mesmas armas que nos acompanharão nas voltas que daremos, a tiracolo de quem patrulha. É um cenário de guerra em modo light: aqui, a barreira impede potenciais atentados através de carros bomba. Nunca diria que existe no ar esse temor, essa ameaça de violência. Somos olhados por curiosidade por sermos ocidentais, penso que haverá nos uigures um espanto interior por ver ali pessoas tão diferentes e de tão longe. Esta terra não é para turistas. Mas são simpáticos, sorriem. Se queremos tirar fotos e formos gentis, tiram. Sozinhos e acompanhados. Saúdam-nos enquanto se enredam no seu quotidiano. Vejo talhantes partindo carne, vendedores de rua a grelhar comida, sapateiros e chapeleiros exibindo os seus produtos. Numa ruela, um velho vende antiguidades, guarda a porta do estabelecimentos ladeados por dois tapetes. Num deles, Lenine; no outro, o grande pai Mao. Olhando por becos, sou espreitado por crianças. Algumas brincam, outras escondem-se. À porta de uma casa de adobe, como quase todos os edifícios nesta zona, três miúdos abraçam-se depois de jogar à apanhada. Num primeiro andar, um jovem e bela mulher vigia-me por entre os cortinados de um quarto. Há cores vivas, risos, música parola no ar, pessoas normais de um lado para o outro em andanças próprias. Como no Quirguistão, os homens acocoram-se se quando querem descansar, impedindo os seus nadegueiros de tocar a sujidade do chão. Talvez preceitos de Alá, os mesmos costumes percorrendo a espinha da Ásia. Ainda que a fartura de agentes da lei torna a experiência menos autêntica, é inegável que mesmo na opressão, esta gente é gente. Como se ser gente fosse uma rebeldia interna, como se a normalidade, ou ficção da mesma, batesse o pé à força das mordaças e da vigilância. É bonito de se ver.


O nosso passeio é acompanhado constantemente pelos olhos que tudo vêem. De dez em dez metros, e não estou a exagerar, barras brancas atravessam a rua, levando ao pendurão quatro câmaras e microfones. São inescapáveis. Mais tarde, lerei que por aqui se ensaia um software de reconhecimento facial que permite reconhecer imediatamente as caras dos cidadãos que posam sem pedido para este olhar sem alma, sem chama. Xinjiang é a grande cobaia dos senhores que tudo sabem, tudo controlam, tudo asseguram. Quando as ruas abrem, conduzindo à praça mais velha da cidade, isso torna-se mais evidente. Esta praça tem 2000 anos, é atravessa pela Wustanbowie - rua mais velha da cidade - mas foi tomada completamente por vendilhões e comerciantes, afinal a actividade mais comum nestas partes. Abençoando a praça, a mesquita de Id Kah exibe a fachada amarela, mas fosca. O seu minarete é pequeno, mas destaca-se num edifício que pouco tem de grande. Encontra-se em obras. É a maior mesquita da China e boa parte das obras visam descaracterizá-la. Daí nem sequer lá colocar os pés. Tem espaço para vinte mil pessoas, mas é duvidoso que hoje em dia sequer um quarto lá ponha os pés regularmente. Ser abertamente muçulmano tem um preço na China. Normalmente, é a via mais rápida para um campo de reeducação. Tem mais de quinhentos anos e já viu nas suas escadas decapitações, perseguições a uigures e atentados. Quase sempre as vítimas são líderes religiosos e os agressores são de etnia Han, a mais numerosa da China. Mas hoje, dezenas de pessoas passeiam-se às sua frente com o sol a banhá-las e ninguém deve estar a pensar nisso. Vejo passar, a pouca distância, um coche que parece saído da Eurodisney e acredito com fervor na presença de Cinderela no seu interior, tal é o seu aspecto. Caminhamos por uma passagem subterrânea e damos por nós numa rua que é a zona de restauração da parte velha. Antes de entrarmos, nova barricada. A passagem de veículos é proibida, aceleras incluídas. Passamos por um parque improvisado que alberga centenas de motoretas. É impressionante. Em bancas viradas para quem passa, observo pães circulares, vegetais cortados com aspecto apetitoso, espetadas que são feitas a pedido. Há carne, principalmente de cordeiro, grelhando e tentando acorrentar corpos pelo olfacto. Volta e meia, e discretamente, somos fotografados e filmados com telemóveis. Podem ser curiosos, podem ser espiões. Na maior parte das vezes, estes últimos. Enquanto a minha atenção se prende em alguém que sem qualquer pudor me aponta uma câmara, uma face diferente cruza-se. É como a minha, sem traços árabes, sem olhos esguios. Vendo um grupo de ocidentais, pára também e apresenta-se: chama-se Michael, é norte-americano e aparentemente, o nosso guia conheceu-o na noite anterior num hostel. Está em Xinjiang há três anos, diz ele. É professor de inglês, diz ele. Decidiu viver cá uns tempos por gostar de aventura, diz ele. Tem saudades de casa, diz ele. Se precisarmos de qualquer coisa é dizer, diz ele. Que bom rever caras mais familiares, diz ele. E retira-se com mil desculpas, porque tem uma coisa combinada com amigos para o jantar e não pode ficar por ali; mas deseja.nos uma boa visita e quem sabe não nos voltaremos a cruzar, Kashgar não é tão grande assim.


 Vêem-se coisas curiosas nestes caminhos. São quase oito da noite e há um centro de saúde aberto virado para a rua. Ao fundo de um estreito beco, um velhote de cavas deita-se numa cama de armação amarela de ferro. Uma mulher bem mais nova vem trazer-lhe um chá e essa parece ser a única coisa que o convence a mexer-se de tão bem que está. Um garotinho encavalita-se numa estátua de bronze que homenageia os chapeleiros - coloca-se às cavalitas e finge que anda a galope. São ruas com vida. Mas a fome também ressuscita. Há a ideia de jantar num pequeno restaurante que fica na praça principal. Voltamos já em tons de fogo no céu, a noite tomba com vagar. Entramos num prédio e espera-nos um detector de metais e uma máquina de raio X. È procedimento padrão em todos os espaços públicos de Xinjiang. A minha mochila é observada e revistada, eu também. De braços no ar e inquirido por onde magnéticas. Somos todos iguais perante a lei. Subimos dois andares e o "Min'an" recebe-nos. O dono mostra-se hospitaleiro, junta várias mesas para totalizar os 13 lugares que ocuparemos. Espero que não seja a nossa Última Ceia. Os menus chegam e são em chinês. Os pratos têm imagens, o que ajuda. Nada que me surpreenda, este método. Enquanto escolhemos, uma banda entoa desgarradamente tons de beduínos. O deserto está perto, mas não tanto. Decidimos pedir vários pratos e partilhar. Enquanto não chegam, trocamos impressões e escutamos a música. Volta e meia, uma jovem de tule verde ensaia uns passos, sem que o ventre seja chamado muitas vezes à questão. Dança para os comensais, espectadores da sua expressão e mesmo sem grande brio ou chama, parece falar algo, apelar a algo que nunca atinjo verdadeiramente. A comida chega e descobrimos porque é que o Oriente é a terra das especiarias: há picante suficiente nestes pratos para criar uma crise nacional de hemorroidal. Bebidas são obrigatórias, alguns experimentam cerveja chinesa, que dizem não ser má. Há frango e cogumelos, tofu e carne de vaca, algum cordeiro, bastantes vegetais. Estamos esfomeados, o nosso estômago só conheceu comida de avião nas últimas horas - péssima, na minha opinião - e ainda que eu não vá nada à bola com gastronomia oriental, obrigo-me a ingerir algo para não fazer desfalecer o meu corpo. Não me dou mal.


Na noite já fixa, regressamos ao hotel pelo mesmo caminho que fizemos. Na praça central, crianças brincam à apanhada, há agora um pequeno carrossel, o calor convida a populaça a caminhar na rua. O regresso é assombrado pelas aceleras, que na escuridão passam de tubarões a panteras. O mesmo perigo, mas mais fosco . A Polícia continua na rua, as armas variam. De metralhadoras, passam a varas com laços na ponta. Como se fossem apanhar cães. Sinto-me mesmo cansado. As minhas pernas como rochas necessitam de se estender. Quando chego ao quarto, só penso nisso. Descanso em primeiro, banho depois. Ensaio aceder à Internet. Como a China controla a entrada em quase todos os sites ocidentais, sou obrigado a usar uma VPN; que é basicamente uma firewall que contorna as limitações chineses. As autoridades sabem, apenas permitem porque são simpáticas. Demoro a entrar, como é apanágio das VPN e a velocidade diminui drasticamente. Há certas coisas básicas que não consigo fazer, como aceder ao Gmail, mas as coisas fazem-se. Informo a minha família de que estou bem. Recebo fotos da minha sobrinha, d«os olhos da pequena Beatriz maiores do que Xinjiang. Aviso outras pessoas também. Amigos. Este mundo, e outro também. Escrevo o meu pequeno telegrama, como forma de me sentir normal na minha viagem, mas ainda não consigo o conforto que quero. Não conseguirei. Não ajuda que a minha maior bagagem nem sequer esteja no chão do quarto. Penso nos meus problemas e depois, nos destas pessoas que vi hoje, pessoas que mesmo quando não podem ser elas própria, não têm outro remédio pois é o que as faz viver. Apenas encontram disfarces, por vezes engraçados, por vezes arriscados. Penso em como os problemas são diferentes e de como as almas sofrem com igual intensidade, de como os corpos em dor se contorcem de maneira diferente conforme o que os aperta. Mesmo quando me passo por água, continuo a pensar. Nisto. Em mim. Nela. Ponho-me como para dormir e continuo a pensar; e sinto uma picada na nuca, que me diz que mesmo que sejam como o ar, os meus pensamentos são observados pelas câmaras. Sempre presentes, sempre perguntando, exigindo repostas a perguntas que não fazem. O olho que tudo vê

quarta-feira, setembro 18, 2019

Fachinação 2: Queimar fusos horários


Agosto foi o mês de Hong-Kong. Todos os dias, notícias dos protestos lutavam na televisão. De um lado, gente com cartazes e bastões num esforço cívico a pretexto da oposição a uma lei feita mesmo à medida de um outro país; do outro, a demonstração ainda incipiente do poder de um estado totalitário. A quinze de Agosto, Nossa Senhora abençoa os cidadãos do território autónomo com notícias de que o exército chinês se entrega a exercícios militares nas costas mesmo defronte da ilha. É um sinal óbvio, mas não só para eles. De certa forma, para mim também. Enquanto arrumo a mala, roupa cuidadosamente seleccionada, equipamento fotográfico pronto - não é muito nem particularmente especial, o que ajuda - as imagens das cargas policiais não me saem da cabeça. Parecia que até há um mês, aquela era uma das zonas melhor integradas no espaço chinês. Agora, a barafunda é total, fala-se abertamente de independência, pelo menos num canto deste centralismo que eu penso granítico - como estou enganado - reclama-se; e eu estou prestes a partir para uma zona geográfica onde o aperto é ainda maior, onde a opressão é descarada e o controlo tão próximo quando a marcação cerrada de Pepe às canelas alheias. Se eu tomasse boas opções de vida, não deprimia tanto, por isso.... espanta alguém? Dou por mim, no entanto, a escolher com muito cuidado as camisolas que carrego e principalmente, os livros de companhia. Deixo em casa, por exemplo, um livro de Murakami, por ser japonês; ou "A literatura nazi nas Américas", por pensar que a referência aos compinchas de Hitler me cause dissabores. Pode parecer ridículo, mas existem demasiados fantasmas na minha cabeça neste momento. Ainda estou a calcular como conseguirei manter um equilíbrio mental suficiente para suportar quinze dias de desconhecido, duvidando mesmo que a minha paciência me ajude a suportar desconhecidos. Não preciso que um rígido polícia oriental, remexendo na minha mochila, me chame a uma sala à parte por conta de um gajo que anda para ganhar um Nobel há anos e não conseguiu. Se ficar preso por lá, ao menos que seja por um Coetzee desta vida. E garanto-vos que não estou a exagerar: um amigo meu viu retida na fronteira, ao transitar do Quirguistão, uma edição do guia da Lonely Planet para o território chinês. Motivo? O mapa do país mostrava Taiwan como país independente. Algo que é aceite pela maior parte do mundo como facto. Mas o senhor Xi faz figura de urso e colocou como dogma que a nossa Formosa é um crime contra o que ele considera ser a verdadeira China. Que a sua independência é um logro; e como tal, esse meu amigo, guia desta expedição na qual embarco, apenas conseguiu safar um mapa de Pequim. Sim, é este ponto de picuinhice.

O avião parte às 8.20 da manhã seguinte. A minha família leva-me até Lisboa pela madrugada, eu iludo-me fazendo uma directa. Digo-me que dormirei no avião, embora saiba que isso não costuma ser hábito. Não faço as contas na alturas, mas  entre atravessar fusos horários, viagens longas, esperas em aeroportos e não pregar olho, estarei praticamente 48 horas a pé. Porque nada ajuda mais à saúde mental como um cérebro carcomido pelo cansaço. No aeroporto de Lisboa, ainda é noite, cinco da manhã. Despeço-me da minha mãe e do meu irmão e gracejo que se não voltar, peço à Polícia Chinesa que envie as minhas prendas por Correio Azul. A minha mãe não acha grande piada, mas a minha mãe não acha grande piada a qualquer coisa que eu diga que possa prenunciar uma catástrofe. O Humberto Delgado já fervilha. O meu voo ainda não tem balcão de check-in e portanto, alapo-me. Ainda que tenha passado algum tempo neles nos últimos anos, acho os aeroportos estas entidades estranhas onde as pessoas não existem bem. São apenas carregadas. Somos carga na verdade. Daqui para ali e depois para acolá até nos meterem numa coisa com asas. É o único local onde alguém como eu, cuja única vez que tive ambições de transgredir a lei foi desejando a morte instantânea de uma pessoa - só aconteceu por uma vez, mas foi realmente sincero e virulento, teve sorte de eu não ser telepata - se sente bandido a sério: obrigam-me a mostrar documentos, sou revistado, os meus pertences vigiados. Em simultâneo, é a versão cosmopolita de uma Loja do Cidadão, onde os papéis errados trancam portas e as senhas correctas permitem atendimento. Fascinam-me também as coisas tolas do utente de aeroporto, desde a clássica implicância que a segurança tem com as garrafas de água até ao esquema de extorsão visível e legal que ocorre na área duty free, onde podemos comprar um igual recipiente de água e levá-lo para o avião sem que sejamos acusados de terrorismo caseiro. Todo o processo de espera é como o mais longo e aborrecido recreio escolar. Finalmente, o voo para Frankfurt das 8.20 surge. Quando tento fazer o check-in das malas, há um problema com os bilhetes. Aparentemente, só na Alemanha posso pedir o meu lugar para Pequim. Ele existe, dizem-me, garantem-me, prometem-me, mas a partir de Portugal nada podem fazer. Começo a especular se o Humberto Delgado não é uma simulação virtual da União Europeia.

O primeiro voo corre bem. Não prego olho, tento ler e despacho uma edição do Courrier Internacional que tinha em atraso. Fala do aquecimento global. Basicamente, vamos todos morrer, a Greta Thunberg sofre de Asperger e isso é giro/demoníaco (conforme a pessoa que opina), Trump é um idiota e ainda temos tempo, mas afinal parece que não. Ah, e existem problemas no Gabão e casos de corrupção graves na Indonésia. É por isso que adoro ler esta revista: não só me informa como me permite entender que o ser humano, mesmo com as diferenças culturas, é um traste em qualquer lado. Confirma as minhas boas impressões do mundo. Também gosto dela porque me faz passar por cosmopolita e intelectual por saber coisas de países que habitualmente não surgem na TV. Há quem julgue que perco horas a informar-me, que tenho consciência cívica, quando basicamente adquiro esta informação por quatro euros. No fundo, o problema geral das pessoas é a falta de curiosidade. Sorte a minha, porque assim, pelo menos, são-me permitidas qualidades. Em Frankfurt, acabo por conhecer os membros do meu grupo. Não é complicado encontrá-los, somos os únicos a reconhecer o idioma português. Alguns já conheço, outros não. Nenhum deles se assemelha à Natalie Portman, o que é sempre um ponto negativo. A espera pelo voo é curta e o aeroporto de Frankfurt um tédio. Hospedeiras da Air China sorriem largamente, mas como se conhecessem algo que me está vedado. O meu lugar fica a meio do avião, mas tenho espaço à frente das pernas. Pela segunda vez na viagem, passo pelo processo de descolar, que por muito que o repita, sempre me parecerá estranho. Os rebites tremem, placas de metal tentam vencer o atrito e a pressão e penso sempre na magnífica cena de desastre aéreo de "Fight Club", quando um avião vomita os passageiros em pleno voo. Lembro-me que li algures que estatisticamente, os momentos de maior perigo numa viagem aérea são a descolagem e a aterragem. Sou a mente demasiado racional do Jack. Há alguma turbulência, sinto toda a minha biologia ainda mais apertada e espremida. Quando chega a acalmia, verifico o entretenimento de bordo. É pobre, a maior parte dos filmes são chineses. No entanto, ainda há espaço para a curiosidade. Decido verificar se de facto, os voos para a China obrigam a cortes e alterações nos filmes ocidentais. Cobaia: "Avengers: Endgame". Bastam alguns minutos para confirmá-lo, referências a alguns personagens são obliteradas para as versões disponíveis nos aviões. O longo tentáculo da sino-censura é longo e chega a todo o lado. Até à atmosfera.

Algures nas quase onze horas de viagem até Pequim, devo ter adormecido. Não fiz por isso. Alturas há em que o corpo é velhaco e nos rapta. Levou-me para longe, de volta a Portugal. Num descapotável azul, o sol beijava-me a cara como quem quer. Como já fui beijado um dia. Não queria levar-me consigo, porque o mar mesmo ao lado jogava ao macaquinho de chinês comigo e nada mais se passava, era só isto, uma delícia que se prolongava, um momento repetindo-se numa eternidade digna de Moebius, azul e luz, comigo seduzido. Não sei bem por que estava a ser dominado por tal imagem. Nunca tinha visto sequer o carro do sonho e o cenário em si fora fabricado completamente pela minha mente. Talvez o meu cérebro, melhor amigo e pior dos facínoras em revezamento, me estivesse a dar um recado. Que não estava sozinho nesta longa demanda, que me protegia e que cuidaria de mim sempre que pudesse, sempre que eu, na minha infinita complicação, não decidisse de livre vontade esticar-lhe os limites da resistência. Uma palmadinha no ombro occipital. Mantemos uma relação complicada. Umas vezes complico eu, noutras ele. Mas se mais ninguém se preocupa comigo, ele sempre por lá esteve no refúgio. Dentro da caverna da minha inconsciência, para onde me escapo sempre que o mundo se arma num breu incompreensível, cria uma ficção de sossego. Sabe do que padeço, o que me inquieta; e dentro de tudo isso, armou um cenário livre de mácula, livre de pecado. Puro nas intenções. Quando acordo, estou sobre a Mongólia - cuja capital, Ulan Bator, é um dos meus topónimos preferidos, pois parece o nome de um vilão de "Star Trek". Não deve faltar muito para aterrar. Vou sentindo a pressão da descida gradual do avião rumo a Pequim. Fecho os olhos novamente, mas não consigo regressar ao sonho. O carro azul partiu e a luz solar deu lugar a um amanhecer lento. São quase cinco horas locais. Lá em baixo, fábricas, telhados atropelando, sinais de que vive aqui uma multitude de gente à qual não estou habituado. A área metropolitana da capital chinesa é gargantuana. Ainda não cheguei, mas já lá estou uma hora antes; e quando dou por mim lá, não sei se estou de todo.


Uma coisa que se descobre de imediato sobre os Chineses é o seu amor profundo à falta de tradução. Quando a fazem, é em inglês macarrónico e necessito de perguntar a mim mesmo: como terá soado esta frase na cabeça de quem a escreveu? É necessário encontrar um voo interno que nos levará a Kashgar, mas demoro a perceber para onde ir e o que fazer. De um lado para o outro, sou iludido por um balcão que anuncia, saxonicamente, que é o check-in de estrangeiros. Trabalham lá duas senhoras de meia idade. Uma faz zero, a outra sabe fazer zero. Gastam meia hora a atender dois tailandeses, sem que lhes consigam resolver o problema. Não me surpreendo, visto que uma delas está ainda a tentar perceber o que é um computador, porque tem teclas e até que raio pode ser um quadrado luminoso com imagens e letras. Windows, em chinês, claramente se traduz por Windah! Com isto, um outro funcionário cruza-se connosco e talvez espantado por ver doze ocidentais agrupados num mesmo local - não sei se desconfiado de sermos roadies dos Fleetwood Mac - olha-nos. Mas diz zero. Contempla apenas. Um de nós lá ganha coragem para lhe perguntar se estamos no local certo. Um olhar vítreo, vazio, como se a nossa comunicação se desenrolasse em marciano. Com alguns gestos e a ajuda dos nossos bilhetes de avião, o jovem lá entende que estamos confusos, ou que somos perfeitos idiotas. Encaminha-nos até uns guichets onde preenchemos papelada que informa o divino Estado chinês de quem somos, de onde viemos, para onde vamos e até planos para jantar - esta última é inventada, mas não parece. São uns papeluchos amarelos, rectangulares, com os mesmos caracteres estranhos que vemos espalhados por todas as placas e também traduções mal amanhadas em baixo. Um novo balcão aguarda-me. Elevado, como para me mostrar o meu lugar. Do outro lado, uma mulher polícia com a cara mais séria que possam imaginar. Ordem para avançar, dá-me um outro polícia, que controla as filas, gesticula-me com ardor para que siga. Papel e passaporte do outro lado. Chega-te mais perto, vês esta câmara? Olha-a. Agora, põe a mãozinha neste sensor, tal como se explica. A foto do passaporte é minimamente parecida comigo? Óbvio, ambos temos cara de susto e calvície precoce. A minha imagem ficou agora registada no sistema chinês: onde quer que vá, saberão onde estou. Passaporte carimbado na minha mão, papelinho recolhido, posso avançar: estou oficialmente na China e travei o primeiro conhecimento com a sua máquina de controlo.

Um comboio interno liga os vários terminais e conduz-me ao três, a partir de onde seguimos num voo de seis horas para Kashgar. É a viagem interminável. Toma-me uma sensação de fraqueza, não física, mas espiritual talvez, numa mudança radical de culturas, numa sensação de ter queimado fusos horários sem sequer me terem pedido licença. Somos novamente controlados e revistados, implicam com as baterias da minha máquina e uma powerbank. Aparentemente, existe aqui um pânico do lítio. Que a China se mantenha longe do Gerês então. Quando um pequeno avião abandona a pista, estou preparado para apenas me reerguer no meu destino final. Mas não. Aparentemente, aqui a aviação funciona como a Rede Expressos. Mais ou menos a meio do caminho, aterramos. Problema técnico? Não. É apenas uma escala. De 45 minutos. Em Urumqi, capital desta província. Somos forçados a sair do aparelho e esperar meia hora neste pequenino aeroporto enquanto não nos dão ordem de reentrada. É quase ridículo. É novamente passar pelo pânico de levantar e descer. É tolo, é muita coisa que me ocorre e que se acumula quando tenho tantas horas sem dormir e uma enormidade de tempo em suspenso, literal. Regressamos e volto a sentir-me deslocado enquanto se ganha altitude. Ainda mal pisei a China - na verdade, quase nem pisei de todo - e isto já me parece quase uma subversão da ordem. Mais valia estar calado, porque me esperavam rodopios bem maiores. Vou escutando podcasts acerca de serial-killers e pessoas muito más, talvez na esperança de projectar nos sons as vontades que me acometem. Mas quando percebo que ainda mal partimos e já estamos para chegar, entendo que é melhor não dar muita bandeira, porque é complicado matar centena e tal de gente em dez minutos. Para além disso, sou incapaz de transformar uma bateria de lítio numa arma de destruição maciça. Não vi episódios de "Macgyver" suficientes.

Em Kashgar, a temperatura alta e o ar abafado são a primeira impressão que tenho. Na manga que nos conduz do avião ao aeroporto, uma carpete vermelha recebe-me e pelas paredes, videiras de plástico querem levar-me ao Alto Douro vinhateiro da candonga. Ouvi histórias do comportamento da Polícia neste aeroporto e sinceramente, estou preparado para tudo. Na mala, levo sete latas de atum e receio que impliquem com elas. Não demora muito até que a bagagem me chega às mãos. Mas, estranheza, a maior parte dos oficiais sorri ou joga no telemóvel. Há um que me pede o passaporte, mas nada mais. Faz sinal para que me encaminhe até à saída e possa, por fim, voltar a habitar o solo, que é o meu local de pertença. Sinto o meu ectoplasma ainda a regressar ao meu corpo e ainda não chegou todo. Espero que não tenha sido obrigado a dar explicações sobre mim ainda em Pequim, teria muito que explicar e faria certamente rir até a senhora mal encarada que me carimbou o passaporte. Mais do que partir, interessou foi Kashgar. Perceberam? Kashgar. A piada é má, eu sei, mas prometi a mim próprio que a faria numa crónica. Se a acharam de mau gosto, então parabéns: bem vindos à China. Faz parte da mobília.


quinta-feira, setembro 12, 2019

Fachinação 1: Um pequeno prólogo em forma de bico de obra


Não contava voltar à Ásia este ano. Fiz para mim próprio um regulamento de viagem e na lista impreterível de regras, sublinhei visitar um continente diferente por ano. Olhei para África, mas confesso que nada me puxou. A Oceânia no Inverno pode não ser exactamente a melhor hipótese e para mais, ainda que pertença a essa abastada classe da função pública que são os professores, decerto que gastei demasiado dinheiro na manutenção do meu iate. Não consigo explicar as minhas escolhas de viagem. Talvez no dia em que apresentar a mim mesmo argumentos racionais, deixe de viajar porque acabou o mistério. Bem sei que a razão e a ponderação são celebradas com purpurina e carpete vermelha, mas para mim, a vida ou tem um pouco de magia ou não vale a pena. Aprecio o toque do inexplicável nas costas, como quem chama a atenção e me diz "Estás lixado, vais decidir exactamente por aquilo que não deves e ainda por cima, vai-te parecer a ideia mais incrível e arrasadora dos tempos eternos e imemoriais". Sou um otário, basicamente, e até por mim próprio me deixo ser enganado. Necessito do indizível. Acho que é por esse motivo que tão facilmente deprimo; e também que quando dou por mim a pagar por uma aventura, penso trezentas vezes se não estarei a fazer asneira. Cada viagem uma asneira - é o lema que tenho e que carrego debruado a ouro no peito. Pois a asneira deste ano é a China. Sim, podem pasmar-se: pela segunda vez consecutiva, trago histórias de um país que vocês conhecem e cujo nome pronunciam sem se babar. Nada de Quirguistões, nada de ilhas perdidas no Círculo Polar Árctico: é a boa velha China, o Império do Meio, a cornucópia de bebés, os futuros senhores das trevas deste mundo. Esta asneira, no entanto, tem uma história. Daqueles estranhas e que por uns segundos vos farão questionar a minha bússola moral, e que começa com esta afirmação: vivo fascinado com ditaduras.


Aliás, as discussões das últimas semanas em torno de um museu dedicado a Salazar trazem-me delícia. Não porque seja particular fã dessa esclerose múltipla em forma humana, mas porque toca em algo que parecia ser, até há uns anos, um desses últimos redutos morais de nós como pessoas: ditaduras são más; e como são más, qualquer coisa que lhes esteja associada é para cuspir. Estudá-las é apenas um pretexto para lutos sobre a dignidade humana e oportunidades de afirmarmos, num pedestal, que somos muitos bons e que jamais regressaremos a esse tempo. Nunca esquecer. Mas também, nunca recordar muito, que somos gente de bem e não há cá lugares para muitas palavras sobre o assunto. O que é uma balela. Há uma análise histórica a ser feita sobre o tema, mas não cabe aqui. Digo apenas que esconder o pó debaixo da carpete não deixa uma sala limpa. Que por mais que queiramos guardar o pote de mel, há ursos que querem comê-lo e que talvez o melhor seja exibir o pote, mas explicar porque é que o mel está envenenado. Há qualquer coisa em mim que se deixa atrair pelos abismos da crueldade, não só de quem manda, mas também de quem obedece. Que questiona acerca dos motivos pelos quais, contra todos os nossos instintos - pelo menos, aparentemente - aceitamos um poder absoluto. De perguntar o que incomoda também quem se insurge: porque é que existe tanta gente que só encontra força para obedecer? De que maneira um tirano se transforma num pai que uma maioria aceita ou pelo menos não questiona? Em que ponto é que o ocaso da escolha passa a ser confortável? Na verdade, há já algum tempo que concluí que estas perguntas não se respondem apenas com os achados que se descobrem entre as linhas de um livro. A única maneira é experimentar e prestar atenção. Viajar até um país autocrático onde pudesse observar, qual Attenborough do totalitarismo, como raio pode alguém sequer construir um quotidiano quando to condicionam todos os dias. Há mais ditaduras no mundo do que se calhar pensam. Desde Cuba até à Coreia do Norte, passando pelas menos conhecidas como a Eritreia, o Turquemenistão ou a Bielorrússia. Ao todo, mais de dois biliões e meio de pessoas acordam sob este tipo de regime, a maior parte delas na China. Pareceu-me portanto que esta seria uma hipótese óbvia. Os Chineses nem conhecem o seu país por esse nome. Chamam-lhe Zhongguo, que significa qualquer coisa como o "Estado Central". Ou Império do Meio, na sua versão mais popular. Segundo país do mundo em área, primeiro em população, um sétimo do total mundial; e a ideia é corrê-lo de uma ponta à outra, mais de oito mil quilómetros em duas semanas. Há aqui cidades tão grandes que são governadas de forma praticamente autónoma. A história chinesa tem várias fases e grandes reviravoltas, como perceberão. A sua área de influência e população garantem sempre recordes. Para terem uma ideia vaga, a guerra civil que levou ao fim da dinastia Ming registou 25 MILHÕES de mortos. Vir à China não é apenas uma questão de exotismo. É entrar numa outra dimensão, em diversos sentidos da palavra.


A razão pela qual escrevo este preâmbulo tão longo onde refiro zero linhas acerca do que me aconteceu tem a ver com a complexidade da situação chinesa. Se nunca visitaram um país ditatorial, algumas das coisas que escreverei surpreenderão. A China é um mundo, com o quádruplo elevado ao cubo de culturas diferentes, histórias diferentes: há dezasseis línguas oficias e nem vou entrar pelos dialectos regionais aceites. Na tômbola que é a História, muitos povos tiveram aqui assento e por muito que o Partido Comunista Chinês esteja a tentar corrigir isso, os seus sinais ainda surgem, com maior ou menor força, por todo o país. Por muito que nos tentem convencer na escola de que o centro da História é a Europa, na verdade ele passa por aqui e pisar terras chinesas é quase voltar a um tempo antes do tempo. Vão entender que a China é uma construção dos Chineses, mas não da maneira que pensam; que regimes e pessoas podem ser duas coisas bem separadas; que há um custo inerente a viajar num país tão extenso; e que a não ser que tenhamos mais de cinquenta anos, não sabemos, de todo, o que é ser oprimido. Existe uma diferença muito grande entre aquilo que lemos nos jornais sobre o que é comportamento ditatorial e as formas que este assume de facto. Insidioso, por vezes muito mais subtil do que se espera. Que altera o nosso comportamento. Num certo sentido. estas serão as crónicas mais políticas que escrevi, porque é impossível vir aqui e ficar indiferente. A não ser que optemos por nos escondermos do mundo. Há quem me tenha dito que talvez veja mais mundo do que a maior parte das pessoas que conhecem e embora eu nunca me possa classificar de cosmopolita ou muito viajado, entendo que o nosso olhar é um professor muito útil e podemos aprender muito se pararmos um pouco para entender o que passa por nós de frosques de fresquinho. O que tento trazer da China é essa experiência, até porque visitei zonas muito pouco turísticas, locais onde muitas vezes era quase o único ocidental em dezenas de quilómetros. Se nada mais trago, que vos dê isto.


Um outro pormenor é importante de saber antes de mergulharmos na Ásia. O meu estado de espírito para esta viagem não era o melhor. Não me sentia preparado para fazê-la e lamento que esta história não tenha uma reviravolta feliz: quando cheguei ao fim, reforcei a minha ideia de que quem viajou não fui eu, mas uma espécie de carcassa com parte da minha centelha. Há momentos, raríssimos, onde consegui ser eu, mas na maior parte, foi como se estivesse a viver tudo através de interposta pessoa que nem pessoa era. Se alguém, antes de ter partido, me oferecesse o dinheiro que gastei e trocasse de lugar comigo, teria trocado sem hesitação ou dúvida. Mas tal não é possível. O tempo que demorei a convencer-me e a motivar-me é capaz de ter sido o mesmo que gastei na travessia da China. Não tinha outra solução que não fosse fingir que tudo ia correr bem, quando claramente não ia. A minha cabeça é tantas vezes uma casa assombrada. Os fantasmas não entram de férias como eu e não pagam taxa de bagagem extra. Simplesmente vão e aqui, em primeira classe. Não me vou demorar aqui a explicar o que se passa, que motivos me tiram essa alegria da exploração, o que me atormenta, o que me preocupa. É fundo e eu sei-o. Condiciona-me a vida e também me apercebo disso. Não pode ser resolvido em semanas e vai comigo para todo o lado, até aos cantos mais longínquos do mundo. Numa promessa a mim mesmo, um sussurro: dê por onde der, arranjando forças onde não podes, e frinchas que não tens, vais armar pelo menos um amostra de ti e aproveitar o que existe, ou pelo menos fingir tão bem que quando fizeres o sumário da matéria dada, quando te sentares para alinhavar em letras aquele fumo que viveste e chamas memória, vais acreditar piamente que tudo te encheu e transformou. De que esta é uma história feliz, de um ponta à outra. Não consigo acreditar, mas vou tentar fazer a melhor coisa a seguir: convencer-vos de que sim, e convencer-vos de que podem sorrir ou pelo menos crepitar no final de cada um destes capítulos. Se a minha vida real não é de consolo, que a realidade criada pelo que descrevo, a ficção real em fiação na vossa mente vos transporte e leve algum tipo de luz. A maior barragem do mundo é chinesa, logo faz todo o sentido.

Como podem ler, estou e sinto-me perdido. Na vida e na maneira como descreverei tudo, o desastre em cadeia que é este gigantesco país, o que lá vi e senti. Prometo-vos longas viagens de comboio, muitas histórias com polícias, objectos quotidianos que me tornam num terrorista, atum, Einaudi, montanhas e também um episódio hilariante que envolve esse símbolo de sapiência e bonomia que é um monge tibetano, desmontando mitos. E a certa altura, alguém quase cairá de uma cadeira perante a visão de uma mulher completamente nua. Mas só quando chegarmos a Turpan. E neste momento, nenhum de vocês sabe sequer que Turpan existe.