tag:blogger.com,1999:blog-152353482024-03-23T19:10:18.067+01:00I'm a complex guy, sweetheartUnknownnoreply@blogger.comBlogger1525125tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-42883922778655828662023-09-09T21:25:00.000+02:002023-09-09T21:25:06.071+02:00THE X-FILES: o anti-poder<div class="separator" style="clear: both;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEisXmRDMvxK5UcoUY8TgazAJVLOOvmuNya5pl0FFcBYyExquOExsC870CapooUla6l99BV_HYxi1R-19H5oQK9k25C9HF0qRXYgzYFf8uSqvwNja9w5r2Vf8goOk-Zv2SGETYUrc0DSHdBfZqsO0g8zHDbPJwROLF9o8WmMmLlBvppf1A-e6Ylu/s667/c020be57e6926e16d838919def71263be20efc19f9455c5aa06fb66f604da2db._UY500_UX667_RI_TTW_.jpg" style="display: block; padding: 1em 0; text-align: center; "><img alt="" border="0" width="320" data-original-height="375" data-original-width="667" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEisXmRDMvxK5UcoUY8TgazAJVLOOvmuNya5pl0FFcBYyExquOExsC870CapooUla6l99BV_HYxi1R-19H5oQK9k25C9HF0qRXYgzYFf8uSqvwNja9w5r2Vf8goOk-Zv2SGETYUrc0DSHdBfZqsO0g8zHDbPJwROLF9o8WmMmLlBvppf1A-e6Ylu/s320/c020be57e6926e16d838919def71263be20efc19f9455c5aa06fb66f604da2db._UY500_UX667_RI_TTW_.jpg"/></a></div>
The X-Files é uma proposta absolutamente atentatória e uma bomba a ser largada sobre a ideia pública das acções governamentais. O seu criador, Chris Carter, sempre habituou os telespectadores norte-americanos a questionarem-se não só como cidadãos, mas também como seres humanos. Noutra série sua, Millennium, disseca o fenómeno da morte, dos homicídios e do impulso de matar, principalmente na América contemporânea, através das investigações de Frank Black. As fundações da sociedade norte-americana, bem como os seus valores base, são constantemente questionados, desde os excessos do fanatismo religioso, passando por delírios milenaristas e messiânicos, e acabando com referências directas a feriados tão americanos como o “Thanksgiving”, e a sua importância e real significado. Num episódios, “Roosters”, um dos personagens secundários, Peter Watts, explica longamente a Frank Black o significado simbólico da nota de um dólar, com a sua pirâmide encimada com um olho e a expressão “Annuit coeptis” Uma alusão explícita a um património maçónico presente na fundação da Nação.
É, no entanto, com The X-Files que Carter vai mais longe. Fox Mulder e Dana Scully são as duas personagens principais e duas pontas de uma mesmo lança decidida a penetrar numa densa intriga governamental, onde ninguém da elite política norte-americana fica bem visto. Contrariamente a 24, onde David Palmer é a nossa esperança no poder político norte-americano e suas justificações, não existe luz por aqui. As orquestrações que os dois agentes tentam desvendar são normalmente simbolizadas por uma espécie de sindicato, um governo dentro do Governo (ou, numa perspectiva de religião civil, um sacerdócio dentro de outro sacerdócio), composto por figuras sinistras, que dão a entender ligações a órgãos superiores, como o Senado, o Congresso ou mesmo a Presidência. Uma conspiração ao mais alto nível.
Mulder e Scully não podem ser mais diferentes: ele é abnegado, obcecado, sem vida privada e com uma crença incrível não só em conspirações e no paranormal (ou sejam em algo que há para além do real), mas também na justiça doa a quem doer. Scully quer construir uma vida pessoal, é céptica empedernida e crê que o Governo realmente existe para proteger os cidadãos. Mesmo quando as provas científicas, a sua religião pessoal, lhe indicam que há algo de errado no interior da política, ela recusa-se a acreditar. Mulder e Scully, apesar de tudo, tem aquilo que podemos designar como pedigree norte-americano. O primeiro é filho de um antigo membro de uma comissão do governo designada por Majestic 12, encarregada de lidar os segredos mais obscuros do país, como toda a verdade por detrás do fenómeno OVNI e mesmo projectos científicos administrados por cientistas nazis exilados; Scully tem como pai um militar, falecido durante a 1ª temporada, que lhe inculcou valores rígidos, conservadores e nacionalistas. No entanto, a diferença entre ambos, na forma de encarnar o poder, é notória.
Se quisermos escolher uma figura que represente o poder em The X-Files, a escolha terá de cair num homem sem nome na série, mas que é conhecido informalmente por Cigarrette Smoking Man (CSM). CSM é o típico cabecilha de conspirações, tal como nos é descrito pelos teóricos do género: veste de cores escuras e tem o controlo sobre aparentemente tudo. Este é o homem que afirma, no episódio “Talitha Cumi”, no final da terceira temporada, Don’t threaten me, Mulder. I’ve watched presidentes die. Todo o percurso biográfico de CSM, como mostrado em “The musings of a CSM”, na quarta temporada, envolve-o nos principais momentos que chocaram a nação norte-americana na segunda metade do século XX: ele assassinou John Kennedy, Martin Luther King, envolveu-se em Watergate e numa determinada cena, ele aparenta controlar mesmo os divertimentos do país, nomeadamente os vencedores dos Óscares e quem irá ganhar o campeonato de basebol. Um poder assim, todo dominador, acima de tudo e de todos, é contra os princípios enunciados na religião civil, de entendimento entre os governantes e os governados. CSM mostra-se totalmente contra a liberdade pessoal, quando diz, novamente em “Talitha Cumi”, Anyone who can appease a man’s conscience can take his freedom away from him. No entanto, no mesmo episódio, ele explica porque é, actualmente, os homens nunca poderão tomar conta do poder: Men can never be free, because they're weak, corrupt, worthless... and restless. The people believe in authority. They've grown tired of waiting for miracle or mystery. Science is their religion - no greater explanation exists for them! Indubitavelmente, um pragmático, não um crente. Pode-se argumentar que The X-Files defende que, em última instância, é preciso acreditar e lago que nos é superior, não necessariamente, como no caso de Mulder, numa divindade, para conseguir ser um bom norte-americano. Nesse sentido, puramente espiritual, The X-Files faz a defesa e legitima a religião civil, ou algo semelhante, como factor primordial no bem-estar norte-americana. CSM, como personagem, funciona como contraponto do que acontece quando não se acredita: tornamo-nos iníquos e jogamos com a nossa glória pessoa, nunca com o serviço prestado aos cidadãos.
Onde este aspecto de CSM se torna mais evidente é, claro, na conspiração central que faz mexer a série. Esta envolve uma operação que rapta cidadãos norte-americanos de suas casas, através de um acordo entre extraterrestres e esse Sindicato atrás referido, de que CSM faz parte. À partida, isto é quase dormir com o Diabo, por parte do Sindicato; e por outro lado, desrespeita, em muitos, os direitos dos cidadãos norte-americanos. O abuso da confiança que os norte-americanos têm no seu governo é levada ao extremo, quando vimos a saber que os cidadãos têm sido marcados, como gado, através do programa de vacinação contra a varíola promovido pelo departamento de Saúde dos EUA. Para mais, este programa teve envolvimento, na mitologia da série, de antigos cientistas nazis fugidos da Alemanha e que colaboraram com os norte-americanos. Ora, é a mistura de dois epónimos contraditórios e a definitiva afirmação de que este Sindicato dorme com um Diabo. Se bem que, oficialmente, o Nazismo tenha sido minimizado nos EUA, em comparação com o Comunismo, a série de Chris Carter vem trazer novamente à pedra o nazismo como grande mal.
Inevitavelmente ligadas a estas conspirações estão as instituições militares, como o braço executante do Governo. Na verdade, algumas das características da religião civil norte-americana relacionadas com as suas forças militares estão presentes na série, e são desvirtuadas nalguns episódios. O exemplo mais cabal de análise do papel do exército na questão da memória contemporânea (e, mais directamente, ligado ao Memorial Day) é o episódio “Unrequitted”, da quarta temporada. Aqui, um soldado que se julgava morto, após ter desaparecido no Vietname, regressa, pois afinal fora deixado à sua sorte num campo de prisioneiros. Esta realidade, tantas vezes negada oficialmente, é o ponto de partida para a relação entre as entidades políticas e os seus heróis esquecidos, num retrato das relações entre os dois lados nada lisonjeiro para os primeiros. As instituições militares sabiam que este soldado, e outros mais, haviam sido abandonados, mas preferiram negar a sua morte a admitir isso. Assim, o objectivo deste soldado que volta é o de encontrar os responsáveis e matá-los. Numa leitura mais a fundo, o Exército criou o seu próprio inimigo. O mais simbólico é o facto de falarmos da guerra do Vietname, o único conflito armado em que os EUA foram derrotados (noutra perspectiva, falharam o seu “manifest destiny”). Uma cena mostra como as feridas dessa guerra nunca sararam: várias cenas são filmadas no Memorial aos combatentes mortos no Vietname e numa delas, o soldado regressado encontra uma viúva de um seu companheiro de esquadrão a chorar o marido enquanto olha o sue nome a dourado na pedra negra. Quando lhe entrega as chapas de identificação do marido, a reacção desta é chorar, duvidar e revoltar-se. O retrato de um soldado desiludido é elevado a uma raiva cega em “The walk”, passado num hospital de veteranos, onde um quádruplo amputado, zangado com a forma como o governo trata os seus veteranos, e também agastado com as decisões erradas de alguns dos seus superiores hierárquicos, arranja forma de se vingar deles, matando-lhes as famílias e destruindo-lhes a vida. Em The X-Files, há um respeito pelo militares, mas também uma repulsa pelos seus maus actos: um cancro que afecta Scully a partir da 4ª temporada é provocado por testes nela feitos pelo Exército. No entanto, a ideia que fica é sempre a da má utilização por parte da máquina política e do mau tratamento por eles dado às suas militares. Tendo em conta que a religião civil norte-americana dedica um respeito e admiração quase sagrados aos militares, não deixa de ser suficientemente contundente.
Se, no entanto, como atrás foi demonstrado, The X-Files é uma série que desacredita todo o modelo político e espírito de missão (pelo menos, uma missão positiva) americanos, na sua temática extra-conspiracional acaba por dar força à memória da verdadeira América, aquela que normalmente a Televisão deixa de fora: a América profunda. De facto, mencionámos anteriormente que esta série se debruçava sobre as investigações de fenómenos paranormais efectuadas pelos agentes Mulder e Scully. Se alguns desses fenómenos paranormais acabam por derivar de mutações genéticas e experiências científicas desconhecidas, outros entram num outro tipo de património mítico que não sendo directamente da religião civil, ajuda a consolidar o espírito nacional ao nível antropológico, psicológico e místico, entrando num folclore que chega a ir bem mais trás que 1776. Se por um lado estes fenómenos paranormais dão forma a crenças arreigadas na psique norte-americana, por outro lado vêm lembrar que a América já era habitada antes de haver cidadãos norte-americanos.
O episódio “Jersey devil”, da primeira temporada debruça-se, por exemplo, num mito recente, originário do século XIX, acerca de um monstro que vive área do estado de Nova Jersey. No entanto, foge à realidade do próprio mito existente, onde a criatura é representada como um híbrido entre um pássaro e um cavalo: em The X-Files, arranjou-se maneira de incorporar aqui um outro mito americano mais famoso, o do Bigfoot; e assim, este Diabo de Jersey surge-nos como um hominídeo aparentado com o Homem, na tradição do Bigfoot. O episódio, no entanto, relembra-nos outro dos mitos americanos: o da fronteira. Scully, a certa altura, pergunta a Mulder como é que uma tal criatura pode passar despercebida às pessoas das cidades de Jersey. Referindo os densos bosques perto das urbes, Mulder relembra como a América ainda não atingiu por completo a sua dimensão especial, ao dizer que há muitos segredos que as grandes florestas norte-americanas não revelaram; e dá como exemplo, no estado de Washington, a imensa floresta entre a Califórnia e Seattle. Assim, não é o espaço a última fronteira: é o próprio património mítico e territorial não explorado dos próprios Estados Unidos. Isto verifica-se igualmente em “Quagmire”, um episódio de traços classicamente paranormais abordando uma lenda índia acerca de um monstro pré-histórico que vive num lago norte-americano. Este tipo de fenómenos é reportado por todo o país, estando tão enraízado no imaginário norte-americano como o de Loch Ness se encontra no imaginário europeu. Em “Quagmire”, a possibilidade do desconhecido dentro de nós volta-se a apresentar com uma criatura desconhecida a viver debaixo dos próprios narizes da população e da comunidade científica em geral. Isto volta a levantar questões acerca de onde estabelecer afinal a fronteira do desconhecido na projecção norte-americana. Na série, os EUA são uma terra com muitos segredos ainda por desvendar.
Noutros casos, os fenómenos prendem-se mesmo com um património histórico que não é propriamente norte-americano, mas que com o tempo entrou no espírito dos norte-americanos. “Sanguinarium”, na quarta temporada, debruça-se sobre um aparente caso de bruxaria numa clínica de estética e operações plásticas. A subtileza de misturar a superstição e a ciência num mesmo caso sempre foi o apanágio desta série, mas aqui ganha outros contornos. De facto, o autor dos actos de bruxaria é um dos médicos, o que nos relembra que, na América, o passado e o presente não estão tão distantes assim e que uma nação tecnicamente evoluída pode, na verdade, ainda acreditar em coisas que fogem ao seu domínio. Para além disso, “Sanguinarium” relembra toda a mística pagã da bruxaria, e num determinado momento, isso é ligado directamente aos fundadores da nação norte-americana. Nada que a série já não tivesse feito: em “Syzygy”, na terceira temporada, uma aldeia parece estar sobre ameaça de cultos demoníacos. E rapidamente se cria um ambiente de histeria em massa, de ignorância para com provas científicas e de medo generalizado, o que conduz a casos de justiça popular. Primeiramente, este acto de tomar a justiça nas próprias mãos, apesar de considerarmos o contrato entre os cidadãos e o Estado de tradição Rousseauniana, é algo que a Constituição inclui. A lei que permite ao cidadão possuir arma vai neste sentido, e alude a que se o Estado protege o cidadão, tudo bem; agora, o cidadão não é obrigado a confiar cegamente. O que está aqui em jogo é a afirmação do indivíduo como elemento fundamental na América e do seu direito a garantir a sua própria sobrevivência; em segundo, esta ambiência relembra-nos, historicamente, o famoso julgamento das bruxas de Salém, o que introduziu no vocabulário popular a expressão caça às bruxas, tantas vezes usada no século passado durante o período em que o senador Joe McCarthy manteve a Comissão para as Actividades Não-Americanas.
O espectro do evento que precipitou o acesso de nacionalismo relacionado com a memória é também abordado numa perspectiva diferente, com interpretações distintas: “Home” da quarta temporada, ressuscita a memória daquela que é considerada a guerra fratricida da América. Em Home, a palavra fratricida não existe, no sentido de sangue, mas está lá no sentido da relação com o outro: o episódio descreve uma família de quatro irmãos e uma mãe que vivem numa casa que foi construída durante a Guerra Civil e desde então nunca mais foi alterada. Ou seja, temos uma metáfora de uma América que não conseguiu ultrapassar traumas, exponenciado pela estranheza que torna esta família assunto de um X-file: desde o século XIX que os membros da família têm sexo apenas entre si, não confiando em mais ninguém para entrar no círculo familiar. Aqui, há uma crítica muitíssimo subtil ao pressuposto tão norte-americano que é o de “nós e os outros”. Os descendentes de relações sexuais entre membros da mesma família nascem deformados; ou seja, se não nos conseguirmos dar com os “outros” e com eles alcançarmos um consenso, podemos ficar “deformados”. O episódio mostra ainda um brutal homicídio perpetrado pelos três irmãos, a um chefe de polícia de uma aldeia vizinha. O chefe de polícia (ou sheriff, nome que relembra as aventuras do Velho Oeste e dessa frontier, que aparentemente ainda o é nalguns pontos) é o símbolo do poder federal nos pequenos lugares, o que torna o acto dos deformados ainda mais atentatório aos princípios da religião civil de respeito pelo Estado e pelo outro. Como disse atrás, se há uma crítica aguda ao poder político governamental, há uma simpatia e um certo louvor pelo poder instalado na América profunda.
Esta especificidade da comunidade como elemento fundamental da coesão norte-americano surge abordado de maneira extrema em dois episódios. Na segunda temporada, “Our town” relata-nos um caso investigado por Mulder e Scully, onde um homem desaparece misteriosamente numa floresta no norte do país. Na fábrica onde trabalhava, todos parecem esconder alguma coisa e quando uma das trabalhadoras morre de Kreutzfeld-Jacob, uma condição médica raríssima, e outros habitantes da pequena cidade têm idêntica morte, algo de estranho parece mesmo passar-se. Vem-se a descobrir que toda a cidade pratica um canibalismo ritual, parecendo ter uma apetência estranha por gente de fora da cidade. O primeiro homem a desaparecer sofria, precisamente, da doença que ia matando os outros. No final, os habitantes acabam por se ver obrigados a comer um dos elementos da própria comunidade para garantir o seu silencio, o que conduz Mulder e Scully à descoberta deste esquema, seu desmontamento, e da fábrica, que era o sustento económico desta comunidade. O líder espiritual desta espécie de culto pagão fora um homem que combatera na Segunda Guerra Mundial, no Bornéu. De facto, há poucos personagens masculinos em The X-Files que não tenham tido uma presença no exército no seu passado. Nesta comunidade, a lição parece evidente: quebrar esse espírito de união que existe entre as pessoas de uma mesma comunidade é acabar com ela. A partir do momento em que nos atacamos uns aos outros, em vez de dirigirmos a nossa atenção a um inimigo exterior, é o fim. Decerto forma, aquela comunidade reflecte um certo espírito norte-americano, cujo apelo político é constante quando se trata de calar vozes discordantes. Mesmo que se dê em circunstâncias retorcidas, como é o caso de “Our town”. Já em Humbug, da terceira temporada, a estrela é uma comunidade de antigas atracções circenses, com particularidades físicas muito alternativas: há um homem que já foi parecido com um gorila, outro que come tudo e mais alguma coisa, outro ainda que tem um buraco no lado onde mora um irmão mais novo, outro imune à dor… Esta é uma comunidade muito específica: é a comunidade daqueles que não podem viver em cidades normais porque não seriam bem encarados pela vizinhança; mas aqui, todos juntos, criam a sua própria harmonia. Mesmo que essa harmonia seja quebrada por um conjunto do homicídios… A comunidade de freaks mostrada por Humbug mostra um certo carácter ideal da América como lugar para todos. Esta cidade é efectivamente oficial e sancionada pelo estado da Florida, onde ela existe. Portanto, numa certa perspectiva, esta é a América como terra prometida, mas com ressalvas: estes freaks apenas são aceites porque vivem fora das comunidades normais No entanto, é-lhes permitido viver como comunidade, porque isso é essencial ao espírito do país: porque isso responde ao grande ideal norte-americano.
Em “The X-Files”, o que é americano vê-se amiúdes vezes obrigado a confrontar o que é dos outros. Quando as mitologias e místicas específicas dos imigrantes são abordadas, entramos num outro tipo de análise completamente diferente. Embora se tenha falado que o Deus norte-americano era uma entidade abstracta que não mexia com outras religiões e crenças, a sua tradução legal obriga-o, na série, e através do FBI, uma agência federal, a entrar em choque com crenças diferentes da norte-americana. No episódio “The Calusari”, da segunda temporada, uma família romena é vítima da assombração de um dos seus elementos e não demora muito para que, entre as investigações de Mulder e Scully, surja uma equipa de exorcistas romenos para tratar da questão. Os agentes vêem-se obrigados a prendê-los e questioná-los, embora sem sucesso. Quando no final a intervenção destes exorcistas se mostra fundamental para a resolução do caso, perguntamo-nos qual será o “Deus” mais poderoso e mais resoluto: o norte-americano ou o romeno. De facto, Mulder ajuda ao exorcismo final, o que dá um ar ainda mais ambíguo à questão. Para mais, o inimigo aqui em questão é o Diabo, ou seja, o Mal (Evil), elemento fundamental também na religião civil norte-americana como contraponto ao Deus bom. Noutro episódio, “Hell money”, somos confrontados com o drama de uma família chinesa envolvida no tráfico de órgãos, com fantasmas chineses pelo meio. Todo o caso se desenrola em Chinatown, a comunidade de emigrantes chineses em Nova Iorque. Existe aqui, novamente, aquela especificidade comunitária que abordámos anteriormente. Quando Mulder e Scully intervêm, perturbam o equilíbrio existente numa comunidade que transforma o tráfico de órgãos num jogo de sorte e de azar, mas aceite por todos. As penas por fugir às suas consequências são de índole sobrenatural, e por isso o temor apossa-se de todos, mesmo daqueles para quem a extracção de órgãos significa a morte. No entanto, aqui, a presença de Mulder e Scully revela-se benéfica: a sua pressão leva à descoberta de que o jogo de sorte afinal estava viciado pelos seus organizadores, levando à revolta dos envolvidos, de forma violenta e anárquica. Ao contrário do caso romeno, a mística norte-americana leva aqui a melhor, não atrapalhando a resolução dos problemas das comunidades, mas antes ajudando a resolvê-los. Em “Hell money”, a América leva a melhor.
Por fim, e porque o espaço não é muito, The X-Files aborda também algo directamente ligado à religião civil norte-americana e, por conseguinte, a ser-se americano: a espiritualidade messiânica. A história do episódio “Revelations”, da terceira temporada, contém em si os traços deste paradigma: um rapaz, verdadeiramente estigmatizado, é perseguido por um homem que se acredita ser um enviado do Demónio à Terra para matar doze portadores de estigmas, para assim permitir a vinda do seu Mestre. Mulder e Scully tentam proteger o rapaz, e Scully leva esta missão muito a peito: segundo o rapaz, ela está destinada a ser a sua protectora. Sendo Scully não só do FBI, mas, como vimos atrás, filha de um militar de alta patente, várias extrapolações podem ser daqui retiradas. Não é Mulder o focado nesta missão. Mulder, aliás, nem é crente, tem um vertente agnóstica bastante acentuada. Scully, apesar do seu cepticismo relativamente ao paranormal, é católica e tem fé. Logo, alguém com fé e que acredita é a única pessoa capaz de realmente lidar com o divino. Para mais, tendo antecedentes ligados a instituições quasi-religiosas, numa perspectiva norte-americana, é a mulher indicada para a tarefa em causa. O título do episódio é sugestivo: “Revelations”. Revelations é a palavra inglesa que designa o Livro do Apocalipse, que é, indubitavelmente, a parte mais profética da Bíblia; e é de messianismo, com toda a trama de um ser humano que simboliza a salvação, que aqui se fala. Um messianismo que só pode ser concretizado com a intervenção do FBI. Mais uma vez, embora tente desmontar a religião civil num ponto de vista puramente político e governamental, é nas pequenas coisas, míticas, que a série revela respirar o mesmo espírito que alimenta a alma norte-americana. A negação formal e prática dessa religião é emendada com um interesse genuíno numa América do Passado, uma América escondida e transcendente
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-9763633188997628662021-09-02T21:33:00.001+02:002021-09-02T21:33:10.663+02:00Georgia on my blog: Um banho de História<p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj9t4xUbgUZhlbmvD3yjJzL_sZnNX5ZDa7Opi5QHpAaiFsjewPfq3K3cUCiz3SxrXAWlQM2rW9q4PCBrkwLqG029lSZOwuv8TU3FLxCj5obxGJ5MEPEGxIEbiWmFHWGr8ILmNxR/s2048/DSCF5641+-+PB.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj9t4xUbgUZhlbmvD3yjJzL_sZnNX5ZDa7Opi5QHpAaiFsjewPfq3K3cUCiz3SxrXAWlQM2rW9q4PCBrkwLqG029lSZOwuv8TU3FLxCj5obxGJ5MEPEGxIEbiWmFHWGr8ILmNxR/s320/DSCF5641+-+PB.jpg" width="320" /></a></div><br /><p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Não recolhe longe das minhas
ideias que atravessei a Europa apenas para passear naquela que foi um dia a
capital da Iberia. Tbilisi desabrocha como cidade algures no século V, quando o
rei Vakhtang I precisava de uma capital para o seu reino com nome latino. A
região de Tbilisi fora habitada desde a Idade do Ferro, devido à sua
localização geográfica e segundo a lenda da fundação da cidade, foi esse o
principal chamariz para o malogrado rei fundador. Estava o senhor numa caçada a
faisões numa floresta quando se aleijou. Algures por entre o arvoredo,
encontrou uma fontezinha de água sulfurosa que lhe curou as chagas com
assinalável rapidez e o o monarca, fascinado, decidiu logo ali desbastar as
árvores para erguer um povoado. Porque nada diz “obrigado” como a destruição
completa de uma zona natural que contribuiu para o nosso bem estar. O sucessor
de Vakhtang, Dachi I, completou a mudança da capital do reino para esta cidade
onde passeio e o seu crescimento nos séculos seguintes deveu-se à proximidade
com a Rota da Seda e à benesse de ficar praticamente a meio caminho entre três
mundos: o Romano, através de Bizâncio; o Eslavo, através do Cáucaso; e o Persa,
numa ligação com as terras longínquas do Oriente Chinês. Portanto, estar em Tbilisi
acaba por ter uma certa sonoridade consoante com os meus anteriores roteiros de
viagem. Nunca aqui estive, mas as pistas de outros passeios estão no ar. Quando
atravesso a ponte Metekhi, sobre o rio Mtkvari – um escorrega de água castanha,
sinal de que o degelo está no seu final, que risca em serpentina esta urbe
georgiana – estou a sair de um presente que a Geórgia ocidentalizada constrói
para si e embrulho-me no passado histórico deste povo. A cidade está dividida e
a ponte, no fundo, é um de deLorean com grades. Permite-me viajar no tempo.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi6GQhhCOtBi4yU-liN7N8aRTOZQw7m0AZ95i_xwmoLf5kq4aF4nRvhsxFg3XjJGvDaQHDUjGrtQRrt9Mvv__dA7y5ar9Tu3QiL3UmtPtimK8-CGV17EsfSJ9QWYqZwEgHCs4TZ/s2048/DSCF5644.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi6GQhhCOtBi4yU-liN7N8aRTOZQw7m0AZ95i_xwmoLf5kq4aF4nRvhsxFg3XjJGvDaQHDUjGrtQRrt9Mvv__dA7y5ar9Tu3QiL3UmtPtimK8-CGV17EsfSJ9QWYqZwEgHCs4TZ/s320/DSCF5644.jpg" width="320" /></a></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">O turismo domina-a e a caça ao
turista também. Ainda nem cheguei à outra margem e já fui abordado por umas
cinco pessoas a oferecer-me passeios turísticos pelo país. Recuso educadamente
e mesmo por entre o calor abafado que já criou um mar Cáspio nas minhas costas,
tento fazer sentido do desenho da cidade. Do meu lado direito, noto brotado os
exemplares de arquitectura contemporânea do Rike; mas do lado esquerdo, entre
igrejas e a afastada muralha da fortaleza de Narikala, a verdadeira Tbilisi,
pelo menos a mais próxima da original, assume-se. Partilhando o nome com a
ponte, a igreja da Virgem Sagrada de Metekhi assume a sua contra-luz, vigiada
por uma estátua do rei fundador. A igreja foi aqui construída, num pequeno
monte onde supostamente um mártir ortodoxo chamado Habo foi executado no século
VIII. No entanto, pouco resta da igreja original. Várias destruições
decorrentes de catástrofes naturais e eventos militares levam a que apenas
vejamos uma sombra do passado. Como acontecerá, aliás, ao longo dos dias em que
aqui passamos. Percorrer a cronologia de Tbilisi é a pretensão de registar um
mapa de convulsões. Entre ocupações à força, terramotos e mudanças de dono
imperial, há muitas oportunidades de perder a identidade; mas algures, entre
reconstruções e genuína vontade de glorificar o passado através do esplendor da
arquitectura (o melhor exemplo é a renovação que a cidade atravessou no final
do século XIX e início do século XX) marca mais o carácter rugoso de um magote
de pessoas com uma identidade comum, orgulhosas dessa identidade, recusando o
seu desaparecimento por entre as brumas da História. Ocasionalmente, no
entanto, o apelo do vil metal chama com um trompete e a identidade comum
senta-se no lugar de passageiro em sono que ronca. Foi o que aconteceu no
primeiro local que visito na zona histórico, o Bazar de Meidani. Outrora, foi o
mais importante dos postos comerciais que se localizavam na praça que lhe dá o
nome, o grande centro de compra e venda da velha Tbilisi. Hoje, mantém o local,
um túnel subterrâneo por onde se distribuem pontos de venda; mas atravessá-lo,
seduzido por música local que acredito passar numa versão do “Oceano Pacífico”
autóctone – que tomará aqui porventura o nome de “Mar Negro” – e o aspecto
impecável de quem vendeu a alma ao Diabo via Loja do Gato Preto, com um toque
de tijoleira a fingir o antigo e mobiliário a pedir designação de Vintage, não é
de todo o que já encontrei de genuíno por outros pontos da Ásia onde o comércio
continental ainda se faz sentir com uma força que treme. Começo a temer que
afinal, para lá de fantasmas do genuíno, vá encontrar demónios do consumismo. <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgWh8T1qlbKqZ62WlxeNxpodB6t5w3v2TMhukwpL0lOiZQUWtNglZ490pc2wzgVaA8Vphj-Pd3UwsZlrLhPkrQHBJlnrsbTxWT9dKekA57zmh11qnIlixLgitBre10DOon-qiv1/s2048/DSCF5651.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgWh8T1qlbKqZ62WlxeNxpodB6t5w3v2TMhukwpL0lOiZQUWtNglZ490pc2wzgVaA8Vphj-Pd3UwsZlrLhPkrQHBJlnrsbTxWT9dKekA57zmh11qnIlixLgitBre10DOon-qiv1/s320/DSCF5651.jpg" width="320" /></a></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">No entanto, nem sempre o que é
antigo salva a alma de um local. Noto que, espalhadas pelas paredes e muros, um
artista local chamado Goshaart tirou umas tardes e noites do seu tempo para
enfeitar as ruas e becos com pinturas, muitas delas alusivas a clássicos da
Sétima Arte. Noto uma obsessão com a saga “Alien”, o que só lhe dá crédito na
minha caderneta bancária. Misturando xenomorfos e gatos, esta pessoa lava-me um
bocadinho o mau gosto deixado pela visitar a Meidani e os meus passos não se
perde, mas encontram-se de súbito na zona das termas de Tbilisi. O papel
lendário destas águas já foi referido, mas é apenas quando se visita esta zona
da cidade que se entende o quanto o acto de alapar num tanque de água quente
está enraizado em quem vive e sobrevive na cidade. É tão georgiano quanto um
kachapuri, vender efígies de Estaline ou conduzir sem qualquer respeito pelo
código da estrada (<i>spoiler alert</i>). O nome da capital significa, aliás, “o lugar
quente”. Vir aos banhos é um pouco como apertar a mão à cidade e fazer conversa
de ocasião para não desapontar um anfitrião. É essencial. Quase todas as termas
ficam na mesma zona, o bairro de Abanotubani, colado ao rio e distinguível de
imeditado pelo traço dos seus edifícios termas, casas de tijolo basso encimadas
por uma cúpula onde uma chaminé revela segredos através de fumo. Preenchidas
por buracos que deixam passar a luz, já que tradicionalmente o interior não
possui iluminação artificial, é debaixo de terra que a acção acontece. As águas
vêm de uma fonte que origina num pequeno ribeiro que ladeia o complexo termal,
inserido no meio de outros edifícios locais, e a temperatura ronda os 40 graus.
É um bocadinho como ter Beja durante o Verão a escorrer pelas costas. Embora as
águas tenham propriedades medicinais, uma boa parte dos visitantes actuais
fazem-no pela experiência e pelo ambiente. Mas o seu papel na cultura georgiana,
e costumes, é inegável. Ir às termas é o pretexto de vários romances e poemas
da literatura nacional e até asiática. Estão abertos durante todo o ano, mas é
no Inverno, logicamente, que a procura aumenta. Ao contrário dos banhos mais icónicos
de cidades como Budapeste e Istambul, os de Tbilisi não são spas. As pessoas
não vêm aqui para ser apaparicadas, mas sim por questões de saúde e higiene. A
pessoa em questão despoja-se do vestuário e instala-se ao natural numa sala que
pode ou não se partilhada. A actividade termal tem divisão sexual por questões
de decoro, excepto se optarmos por uma sala privada, onde cada um pode aquecer
com a cara metade sem que ninguém tenha alguma coisa a ver com isso. Se te
sentires um conde abaronado, podes pedir um tratamentozinho medicinal mais
relaxado, proporcionado por um ou uma Mekise. Esta pessoa, especializada em
manusear o teu corpo da mesma forma que eu trato os lençóis da minha cama
quando tenho de enfiá-los na máquina de lavar, uma massagem vigorosa para remover
a pele morta e assim contribuir para a saúde da tua epiderme, que se fores bem
a ver, merece plenamente, pois tem de te aturar durante o dia inteiro. <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi3QlB0sJMz8HnQt_6_-aYkLfK9_brYy7ouwsC7ukcLJfXZTKD5tOTaLldbuKbPRIAQ5CcG5UGNoTCqhaRtyD6LNg17a0umLIJcD-gPSSMHpWiT_SrdDsLZtPpSPUErbXKEQetn/s2048/DSCF5653.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi3QlB0sJMz8HnQt_6_-aYkLfK9_brYy7ouwsC7ukcLJfXZTKD5tOTaLldbuKbPRIAQ5CcG5UGNoTCqhaRtyD6LNg17a0umLIJcD-gPSSMHpWiT_SrdDsLZtPpSPUErbXKEQetn/s320/DSCF5653.jpg" width="320" /></a></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Não as experimentamos, mas do que
leio de experiências alheias posteriormente, fico arrependido. Observo-as do
exterior e tomamos um caminho que passa por entre os vários complexos de
banhos. Encostada ao espaço, a mesquita de Jumah não toma conta da estranheza
da sua presença, espaço muçulmano em terra de fortes crenças cristãs. É o único
espaço de culto islâmico em Tbilisi, herança sunita do tempo dos Otomanos.
Sofrendo do mesmo processo de construção e reconstrução que marcou todos os
edifícios da cidade, deve a sua sobrevivência à devoção de um milionário azeri
que financiou a sua reconstrução. Misturando arquitectura árabe e neogótica, a
sua fachada em grande arco, cobertas de pequenos azulejos de azul do mar,
combinando com o ribeiro que a separa das termas, convida à entrada. É também
um símbolo de união numa cidade multi-cultural. Que eu saiba, é a única
mesquita no mundo que recebe Sunitas e Xiitas, dois ramos da religião muçulmana
tantas vezes em conflito e recusando entendimentos. Quando a mesquita xiita foi
destruída aquando a construção da ponte Metekhi, estes ficaram sem lugar de
oração. Os Sunitas abriram Jumah aos seus adversários doutrinários e desde
então, ambos os grupos partilham o espaço sem conflito aparente. O caminho
segue o curso de água para longe do rio. Está acimentado e tem claramente um
destino. É aqui que o leviatã do turismo de plástico assoma de novo, entre
gente com vestes tradicionais à procura de um cobre mais através da sua
presença ou de folclore bacoco e ponde carregadas de cadeados, celebrando o
amor e também as falhas de engenharia que um dia provocarão lesões graves a alguém
no leito do ribeiro. Fica evidente qual é o destino desta via sacra penitencial
do vil metal. A alguns metros, vejo uma bonita cascata e como já aprendi
noutras andanças, não há beleza natural que não possa ser estragada por gente
sem outra sensibilidade que não seja o vazio. Um par de jovens espera o turista
com bicharada, um falcão e um macaquinho. Já vi disto no Peru, mas aí usavam
lamas e vicunhas. Fazem-nos sempre sinal a indicar a oportunidade fotográfica.
Damos uma notinha, tiramos uma foto com o bicho, ficamos ambos contentes. Só
que não. Na minha cara, veem um cruzamento estranho entre o doutor House e o
Wolverine e a minha máquina fotográfica vira-se para a água que cai pela rocha.
Três polícias vigiam o espaço, aos quais se junta um quarto. Fico com a ideia
de que este ponto é o perfeito local de ócio para as forças de autoridade
locais e que algures noutros pontos da cidade, criminosos marcam os horários da
sua actividade pelo trânsito dos senhores agentes junto à cascata. Se o fazem,
são espertos. Olho para esta garganta de pedra e imagino, algures em séculos
passados, mulheres lavando aqui a roupa à mão. Do que li na minha pesquisa
prévia, mães de família costumavam passear por aqui como olheiras de futuras
esposas para os seus filhos, numa versão sentimental do jogo Championship
Manager aplicada à actividade matrimonial. Procuravam porventura qualidades
úteis a uma esposa, como a destreza na aplicação de sabão ou a assertividade
quando se curtem lençóis contra calhaus para tirar as nódoas mais rapidamente.
Imagino-as a registar nomes num bloco de notas e a comparar as melhores
contratações possíveis umas com as outras. Tendo em conta os costumes
religiosos locais, duvido que as jogadoras pudessem ser contratadas com opção
de empréstimo.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZYLDe1ofmLz7FZfoDkd9Atml2rEHMQ5QOyYzvjVsnc9y4pW0wVdtZ94sG07Bl5nYCDFVi2CAmdZvQ5wxB2DXve8cT5HEzLTt5di5x-WsztAupZkXukrhyphenhyphen02Q51XuuT_V-t0fw/s2048/DSCF5659.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZYLDe1ofmLz7FZfoDkd9Atml2rEHMQ5QOyYzvjVsnc9y4pW0wVdtZ94sG07Bl5nYCDFVi2CAmdZvQ5wxB2DXve8cT5HEzLTt5di5x-WsztAupZkXukrhyphenhyphen02Q51XuuT_V-t0fw/s320/DSCF5659.jpg" width="320" /></a></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Depois de passarmos pela sinagoga
de Tbilisi, não muito distante da mesquita a cuja porta estivemos – provando
que estas duas religiões do livro não se largam nem por um bocadinho – a ideia
é batermos à porta de um curioso museu: o das Relações Acabadas. Apropriadamente,
dá-nos uma tampa. Está fechado. O motivo tem menos a ver com o nosso desamor e
mais pela arquitectura do próprio edifício, que conserva muitos traços das
casas civis soviéticas. O uso da madeira, a varanda que sai para o exterior
suportada por vigas, duas assoalhadas com divisões encabeçadas umas por sobre
as outras. Mas depois de a Georgia acabar a sua relação com a URSS, é
apropriado. O projecto foi iniciado por um casal croata, Olinka e Drazen, e é
um dos poucos, talvez único, núcleo museológico cujo espólio reunido depende
totalmente de crowdfunding. Os objectos em exposição são enviados por quem
quiser, se onde quiser, e dizem respeito a esse momento sempre mágico e
inesquecível que é o fim de um relacionamento amoroso. Do exterior, não consigo
vislumbrar qualquer bulldozer, mas acredito que exista por lá um. Pelo menos, é
assim que me costumo sentir quando me partem o coração. As pessoas enviam os
objectos para se livrar da sua presença ou então porque têm um valor
sentimental profundo que sobrevive ao trauma da separação. O amor e o seu fim
são ecuménicos, afinal, um pouco como Tbilisi. Atravessam origens geográficas e
crenças no Além, atravessam diferenças de carácter e disposição, atravessam
barreiras sociais e culturais. Algures, alguém já foi atropelado por esse TGV
que é a decepção emocional. As relações não são apenas amorosas. Podem ser
familiares ou de amizade. O Amor tem muitas formas de se exprimir. Apesar de o
conceito ter começado na Croácia, rapidamente se alargou pelo mundo. Existem
sucursais em São Francisco, Singapura, Istambul, Cidade do Cabo ou Buenos
Aires, para dar alguns exemplos. Descubro mais tarde que o mais recente abriu
em Portugal, na cidade de Aveiro. Talvez porque é fácil afogar a tristeza com
uma caixa de ovos moles; ou porque certos amores e desamores são um pouco como
um moliceiro esburacado, prontinho a repousar no fundo da ria local. <o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhtB-bkQNKFeTR_9r2Wk3K84wTQyDmSsS52bevrO13A_GOKKLyVGQ1B8imz3qUEVbIEJlVz4DlSvIkC8lfpovuKTMMPilF2u8h6h1GhuhyphenhyphenmRFVQP3LaKCC8yGaCVvG6qU5h0LEs/s2048/DSCF5679.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhtB-bkQNKFeTR_9r2Wk3K84wTQyDmSsS52bevrO13A_GOKKLyVGQ1B8imz3qUEVbIEJlVz4DlSvIkC8lfpovuKTMMPilF2u8h6h1GhuhyphenhyphenmRFVQP3LaKCC8yGaCVvG6qU5h0LEs/s320/DSCF5679.jpg" width="320" /></a></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Por entre ruas estreitas e becos
desavindos, onde vários estilos e almas se dardejam e gotejam em trocas de
séculos comuns, andamos um pouco sem rumo. A zona histórica de Tbilisi é de uma
decadência com classe e personalidade, onde até mesmo as ruínas, num orgulho
muito próprio, como quem cai pelas escadas abaixo de fraque e cartola, têm
muito para ver e para reter. A cidade parece desaparecer e morrer, mas com o
sentido de humor de Oscar Wilde que no seu último fôlego, topando o papel de
parede do seu quarto, proclamou: “Bem, um de nós tem de ir embora”. Noutras
cidades, esta morte seria real; mas porque o Turismo é hoje um importante
factor monetário, alguém algures elaborou um projecto que não está isolado: a
certa altura, reparamos que há um extenso conjunto de obras públicas que visa
recuperar alguns edifícios antigos e abandonados. Nalgumas zonas até já se
observam os seus efeitos. O resultado, por uma vez, satisfaz. O respeito pelo
desenho original é notório, a réplica dos elementos decorativos total, o charme
do século XIX não está presente, mas ainda assim faz uma aparição especial. Há
uma limpeza que se deve claramente à modernidade, mas o desenho neo-gótico e os
elementos arabescos e até soviéticos reconhecíveis. Novamente, Tbilisi parece
uma cidade deLorean, viajando no tempo, uma cabine telefónica azul na qual
esperamos encontrar um Doctor Who falando um idioma que ninguém reconhece e
cuja escrita se nos escapa. Há urbes dominadas por monumentos de espanto ou por
uma vida cultural intransigente na sua dinâmica. Outras atraem-nos pelo seu
esmagador tamanho; mas Tbilisi é fascinante nessa sanfona existencial que
propele para o futuro com um motor do passado. O presente não parece bem
existir, é um estado temporário por definição, mas também necessidade. A
capital quer-se bem lá à frente, mas deixar o que a fez para trás. Reconhece o
que a faz forte, mantém o que o visitante procura e os habitantes de
acostumaram a ter e a chamar de seu. Se a ligação às tradições e o
conservadorismo por criar por vezes um ambiente hostil à diferença, por outro
lado mantém este vínculo que vemos nas casas de muitas cores, verdes amarelas e
azuis, que vão surgindo numa das ruas mais antigas da cidade e que desemboca na
Abesadze, uma via que desce quase directamente para a principal rotunda de
Tbilisi.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhiKwqcM6qtgyAEBkgTmo6-53HQB7SUyhaUUthyphenhyphen7Rmtu1lYG3uN4YtBSasBgOewfX6d0mclxurf5sJk1hOrn7Y8VvFBsBvI0bljNFgEcEG7qtlPD0G0yTzV4oGD1yCKyMyCYwFp/s2048/DSCF5680.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1365" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhiKwqcM6qtgyAEBkgTmo6-53HQB7SUyhaUUthyphenhyphen7Rmtu1lYG3uN4YtBSasBgOewfX6d0mclxurf5sJk1hOrn7Y8VvFBsBvI0bljNFgEcEG7qtlPD0G0yTzV4oGD1yCKyMyCYwFp/s320/DSCF5680.jpg" width="213" /></a></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Não é só o tempo a dar horas,
também a barriga. Descemos a Abesadze, abstraída de trânsito, procurando um
espaço agradável para o nosso primeiro almoço na Georgia. No trajecto, passamos
por uma igreja reconhecidamente católico. Posso ser agnóstico, mas 18 anos de
educação católica não se atiram assim à rua. É o maior templo local desta
confissão religiosa, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção., mas a zona onde
nos encontramos tem sido historicamente o bairro católico. Já aqui existiu um
mosteiro dominicano e também uma outra catedral, a da Anunciação, bastião
católico numa terra dominada por muçulmanos. Esta versão foi construída apenas
no século XIX e durou apenas algumas décadas, porque quando a URSS engoliu o
país, o culto foi proibido e a igreja fechada. Apenas em 1993 houve a
reabertura e desde então que vai funcionando. Entramos, apenas com alguma curiosidade.
A decoração é relativamente simples, com alguns candelabros dourados e uma
estátua da Virgem segurando o Menino Jesus e denunciando o orago do templo. Nas
paredes laterais, encontram-se alguns baixo-relevos. Parte do grupo indaga
sobre o que significam. O meu tempo no lado crístico da Força leva-me a
identificar de imediato as estações da Via Sacra. À entrada, Cristo é criança;
mas como em quase tudo o que envolve o Cristianismo, a Morte é o tema central e
forte. Depois de termos caminhado durante toda a manhã, sentamo-nos em
descanso, no silêncio. Contemplo um pouco e respiro mais pausadamente. Penso no
Tempo, no Espaço e nas dimensões de Tbilisi, outras e de outrem. Quero
filosofar e reflectir, quero rasgar o cosmos com grandes conclusões, mas a
minha cabeça é sempre trazida ao seu verdadeiro e derradeiro valor pelo órgão
que verdadeiramente manda nas minhas vontades: o meu estômago. Vai ressonando
ausências. Uma relação acabada com a comida. É necessário procurar um poiso
para acalmá-lo. De outra forma, passarei a tarde a caminhar torto em
desfalecimento.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Apropriadamente, o restaurante
que encontramos é a perfeita reflexão de um desfalecimento. Mas isso é uma
história para a próxima semana.<o:p></o:p></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-1933022614890768332021-08-23T18:45:00.001+02:002021-08-23T18:45:07.262+02:00Georgia on my blog 2: Penitência<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgx1GgvZeOiK3eYmkckSlohKGYnntYKvMz6Wmt_FJytRW0JKIGO0MlMz1Qi4-7xNQNQV9Gqt0hRGBfD9eN-Da5zK7zodTuv0ZMx5lBkhDhtWn6MHsY1iRJ2LNf0Jz8RFfT9J9-u/s2048/DSCF5594.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgx1GgvZeOiK3eYmkckSlohKGYnntYKvMz6Wmt_FJytRW0JKIGO0MlMz1Qi4-7xNQNQV9Gqt0hRGBfD9eN-Da5zK7zodTuv0ZMx5lBkhDhtWn6MHsY1iRJ2LNf0Jz8RFfT9J9-u/s320/DSCF5594.jpg" width="320" /></a></div><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br /></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Para alguém a quem é regularmente
requisitado um relato das viagens que faz, sou um péssimo viajante. Digo-o
várias vezes e praticamente ninguém acredita. Mas é verdade. Os grandes
viajantes, pelo menos aqueles que leio e que conheço e que sigo, têm um grande
sentido de aventuras e disponibilidade. Alinham em tudo e arriscam, são
arrojados, estão lá para disfrutar das diferenças. Eu pertenço a um clube
diferente, que não tem todas as modalidades; e uma delas é a da alimentação.
Dizem que a comida é uma óptima maneira de percorrer um novo país, mas aí sou
turista de sofá. Tenho vários problemas de gosto e desgosto, desgosto na
maioria, que me cortam a iniciativa no que à culinária concerne. Petisco aqui e
ali, mas com o cuidado de um celíaco deixado numa feira de francesinhas. Mas
gosto de saber o que é o quê, os ingredientes, a alma de um país nos excessos e
ascetismos alimentares; e até mais do que ns restaurantes ou bancas de rua, um
bom método de conhecê-los é através dos pequenos-almoços nos hotéis onde durmo.
Invariavelmente, há um buffet onde o hóspede pode livremente escolher o que
mete na pança. Em quantidade e género. O “Brim”, o nosso primeiro hotel na
Geórgia, oferece uma vasta gama de panificação, desde o universal pão de forma
até outros de sementes ou mistos. Há também panquecas para gulosos. O queijo
abunda, juntamente com os enchidos, mas há também pratos com quadrados de
manteiga e vários potes de doce. A fruta faz-se representar pela família dos
melões, em três géneros. Para beber, há café, chás vários e noto que existe o
hábito de beber o leite frio, não quente, e se o quisermos, temos mesmo de
pedir, não está disponível para consumo imediato. Presumo que não seja parte
tão integral dos pequenos-almoços caucasianos como dos nossos. Há alguns bolos
e tartes também, que considero sábio afastar-me logo na minha estreia. Um
contacto medido, calculado. O suficiente para alimentar o corpo para um dia
longo, cansativo, de tonificação das pernas. Sento-me algures juntos dos meus
companheiros e viagem. Optei por pão de sementes com manteiga e uma caneca de
leite. A simplicidade que Buda tão bem apregoava. Talvez Buda fosse um
cobardolas alimentar como eu. Os historiadores deviam pesquisar sobre isso.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">À saída do hotel, é visível o
Palácio da Presidência da Georgia e uma rua que desce em direcção ao centro da
cidade. Mas a opção é subir. A uma certa distância, avisto uma cruz no topo de
um texto triangular muito angulado. É a pontinha da Igreja da Santíssima
Trindade de Tbilisi, conhecida popularmente por Sabema. Os georgianos são uma
população profundamente religiosa, em sentimento e em preconceito. Semanas
antes de ter aqui chegado, uma marcha do orgulho gay foi cancelada porque os
seus organizadores foram atacados por elementos da extrema-direita política
local, provando para lá de quaisquer dúvidas o quanto os partidos de
extrema-direita têm lugar numa sociedade democrática. A marcha fazia parte de
um evento de cinco dias, organizado para celebrar as várias e distintas
identidades sexuais do país. Indivíduos menos abertos à iniciativa simplesmente
invadiram o escritório dos organizadores, num terceiro andar, uma boa parte dos
sevandijas trepando as paredes exteriores, partindo tudo, agredindo gente –
incluindo jornalistas – e queimando os símbolos identificativos da comunidade
gay. Não é como se o ataque fosse inesperado u até uma aberração dentro dos
sinais que o Governo dera. O primeiro-ministro do país, Irakli Gharibahvili,
avisara que tais demonstrações de orgulho seriam vistas como inaceitáveis para
a generalidade dos habitantes do país. A Igreja Ortodoxa, principal entidade
religiosa da nação, invocara um dia nacional de oração contra a marcha, como se
algures uma entidade divina tivesse feito da sua vida uma missão contra quem é
diferente. A ironia maior é que apesar de tudo, Tbisili tem uma orgulhosa
comunidade gay, sem grande medo de demonstrá-lo em público. Nos dias que passei
na cidade, vi várias vezes casais de pessoas do mesmo sexo passeando de mão
dado, beijando-se e acariciando-se em público; e os anos anteriores viram
marchas e festivais de orgulho desenrolando-se na cidade. Ocasionalmente com
problemas, outras vezes pacificamente. Mas a estratégia de quem usa a violência
para calar o que se celebra na diferença é precisamente obrigar a esconder, a
ocultar… o que nunca deu bom resultado, pelo que sei da História. Quase como se
a ignorância fosse morte, e em várias maneiras até, estes ogres são prova
disso. Os ogres em questão mexem-se no espectro da extrema-direita e nas mangas
da Igreja Ortodoxa nacional, que a pretexto de valores tradicionais e outros
que, baseados num livros escrito há milhares de anos por povos antigos com uma
concepção de vida muito diferente da nossa, são arcaicos e retrógrados, pretendem
impor uma visão do mundo que nem sequer se pode chamar de antiquada, visto que
até povos antiquados como os Gregos e os Romanos a aceitavam.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRoBZ6gjYsiMjlz_LiiRs9r5Xkn9y5HDOwpTdhElO1i6lzYyokMxHddMF_Bmk74EBNsE8R9Berod-Nemsfldt2c5RJ-YbLUjTOPtXGe9aGTtKdb0lL4rPg61ES29FWJ1nzs7tV/s2048/DSCF5603.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRoBZ6gjYsiMjlz_LiiRs9r5Xkn9y5HDOwpTdhElO1i6lzYyokMxHddMF_Bmk74EBNsE8R9Berod-Nemsfldt2c5RJ-YbLUjTOPtXGe9aGTtKdb0lL4rPg61ES29FWJ1nzs7tV/s320/DSCF5603.jpg" width="320" /></a></div><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">A Igreja da Santíssima Trindade é
de 2004, recente para os padrões dos grandes edifícios religiosos que conhecemos;
mas é um dos mais largos edifícios religiosos do mundo e a terceira catedral
ortodoxa mais alta de toda a cristandade. Sendo recente, a ideia foi sintetizar
no seu desenho algumas das grandes tendências da monumentalidade da fé
georgiana. A início da sua construção, em 1989, marcou uma afirmação da
identidade nacional, baseada na religião, contra a opressão soviética e num
país que adoptou uma bandeira com cinco cruzes de São Jorge, não é difícil
perceber a motivação e o sucesso da escolha. Porque a minha religião é melhor
que a dos outros, o Patriarcado de Tbilisi decidiu destruir um cemitério
arménio que se encontrava no local, que por sua vez já tinha sido vandalizado
pelos soviéticos. É de notar que os Arménios são ortodoxos, mas de um ramo
diferente dos georgianos. Os países são vizinhos e, no que talvez não seja
coincidência, ambos reclamam para si o título de primeiro país cristão em toda
a História. Como o Cristianismo revela paz e amor, claro que os Georgianos
optam pelo preconceito e desprezo. É algo tão velho quanto o próprio tempo e
chama-se subjectividade. Claro que Cristo falava da amizade entre os povos, mas
será que alguma vez conheceu um Arménio? Pois. Portanto, a Georgia sentiu-se
legitimada a destruir um importante património histórico e espiritual num
bairro historicamente arménio. Acho sempre curioso como a construção de um
edifício simbólico pode reflectir o espírito de uma comunidade, a sua
caminhada; e concretização desta Igreja acompanhou os avanços e recuos do
progresso da Georgia, dentro dos seus problemas e tumultos e guerra civil,
avançando e parando conforme os ímpetos da estabilidade. Daí só ter ficado
completada em 2004. É estranhamente simples nas suas linhas. O complexo que a
rodeia inclui as residência do Patriarca de Tbilisi, um jardim, um mosteiro, um
seminário e outra logística de apoio a fiéis e peregrinos. Há um portal de
entrada ainda longe da própria igreja e temos de percorrer a distância que os
separa agredidos pelo sol da manhã, quente, deixando antecipar um dia de calor
abafado. Ainda são nove e meia da manhã e já estou a suar como se fosse um gato
num bairro recheado de restaurantes chineses.</p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Depois de algumas fotos, ouço um
murmúrio grave e com o ritmo regular de um metrónomo vocal. Não reconheço a
língua, como tal deve ser georgiano. Sinto-o planando do interior do edifício e
não estou sozinho. À entrada, duas senhoras idosas vestidas de preto parecem pensar sobre as suas escolhas de vida; e o negro é a cor que mais se repete
no vestuário de quem está e de quem chega. O espaço é largo e muito alto, sem
decoração na pedra que não linhas directas, verticais, relevadas. Em cada uma
das seis colunas interiores, olha-nos o desenho berrante de um ícone ortodoxo,
invariavelmente um idoso de túnica azul segurando uma relíquia e um livro com
os olhos tenebrosos de quem julga sem vergonha, de quem pede penitência e não
dá clemência, só oportunidade. Na parede sobre o altar, há uma gigante versão
de um destes ícones, um imenso homem de vermelho e ciano que ergue a mão em
bênção. É Jesus, o Nazareno. Por debaixo, numa versão menor, o patrão maior do
Cristianismo ensina alguns históricos patriarcas ortodoxos, provavelmente na
melhor maneira de conseguir comida infinita. Enquanto capto estes pormenores,
os cânticos tornam-se opressivos, inescapáveis, pesados. A ideia parece são ser
celebrar, mas punir. Vigiar e punir. Não há instrumentos, apenas vozes de
homens, das profundidades de uma caverna já de si profunda, clamando num idioma
que me é estranho pela vibração do arrependimento. Os fiéis presentes alternam
entre o macilento e o dramático. Enquanto passeio, não ouso fotografar, a não
se alguns cliques discretos que carrego com a máquina junto ao peito. Não sou
cristão, mas momentos de devoção carregada de desespero de alguma forma
comovem-me num certo antro cá dentro que não sei bem como apagar. Tenho
simpatia por quem chega ao fim do caminho e só encontra de bom para si o
inacreditável. É preciso atingir um certo ponto de angústia, ou de crença
inquestionável, para se ser religioso. As instituições religiosas costuma
jogar com isso, com essas duas capacidades: a de perder a esperança num saco
roto ou a de se entregar sem qualquer tipo de hesitação ao que é
incompreensível. Sei-o racionalmente, devia olhar para estas pessoas como
papalvos, e sei que parte de mim o faz e fará e está a fazer enquanto escrevo
isto. Mas quando beijam os quadros e as figuras com devoção, e total
desrespeito para com as regras higiénicas contra a COVID-19, quando estacam
minutos desfilantes numa tentativa de desfibrilhar a vida pelas letras que
constam num pequeno livro de oração, quando mulheres entram de cabeça coberta
numa reverência maquinal, há algo que não se consegue bem transmitir nas
palavras e que só as grandes mentiras permitem: a comunhão de uma ilusão que
não percebe nem entende, mas que se abraça sob pena de vivermos mais
solitários, mais abandonados. Dando uma volta a pé pelo espaço da igreja, vejo
bastantes pessoas. Sou apertado por cada nota musical cantada, num momento que
me é raro deixo-me deslizar à maneira de uma bola que num jogo de bilhar se
encaminha para o buraco, mas bate três vezes nos cantos e sai. Observo,
tentando não invadir o espaço de cada um. Reparo que sentado uma cadeira, um
homem ricamente vestido, preside a tudo com uma cara menos beatífica e mais
feroz. Barba de derviche, longa e grisalha, óculos redondos e uma postura de
quem está muito para lá de oferecer consolo. Sinto que os ícones espalhados,
atrás de vidros, limitados por molduras, oferecem mais empatia que aquela
figura. O momento é solene, tem a sua beleza, mas até naquele antro interior
cuja localização me é desconhecida, entendo que o que vejo no mundo está para
lá das vibrações da voz que empurra para as brasas. Sem pressa, com paciência,
encaminho-me para a saída. O espaço luminoso não esconde as ondas tenebrosas de
uma ortodoxia escura, à moda eslava, mas perdida entre a Europa e a Ásia. Um
cristianismo feito por gente dura e dada ao sacrifício, cuja História está
carregada de episódios de abnegação perante uma força maior, como se o
indivíduo se submetesse a vontades insondáveis de morte alheira para a
celebração de valores universais se o universo estivesse mais carregado de anãs
vermelhas de sangue do que de supernovas de esperança. Oferecem algo naquela
igreja, mas não vou aceitá-lo, porque há algo em mim que se repele quando vê
mulheres cobertas de negro da cabeça aos pés como se essa fosse a sua única
missão enquanto vivas. Antes de me retirar, a última imagem que me fica é a de
uma idosa encostada a uma coluna, em transe, com um caderninho nas mãos que lê
em sofreguidão existencial. As carnes da cara afundam nos espaços entre os
ossos do crânio e por momentos, sinto que quanto mais reza, mais paga em saúde
física. Dias depois de ter voltado de viagem, a face daquela pessoa ainda me
lança em inquietações sobre o mundo. Quando li pela primeira vez sobre a
vitória dos Taliban em Cabul, foi nela que pensei. Gente que parece viver, mas
que na verdade se esfuma numa altar pírrico como filhos de um deus menor,
desconhecido e inconcebível no seu desprezo e da sua indiferença perante o que
é realmente importante. Nós.<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg12NcOUV5GAaqTOgLqg7gs6B_WY1SJh2BJ5RqlsCrrc5UMRtSHIfuVnqvLHjvoeEFPBgS60Ik-ejYXE6NdnRgWLjbwhy576QlSso_1RfHHZF478OD6EHKmUy4jRHJal1rwfRAU/s2048/DSCF5630.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg12NcOUV5GAaqTOgLqg7gs6B_WY1SJh2BJ5RqlsCrrc5UMRtSHIfuVnqvLHjvoeEFPBgS60Ik-ejYXE6NdnRgWLjbwhy576QlSso_1RfHHZF478OD6EHKmUy4jRHJal1rwfRAU/s320/DSCF5630.jpg" width="320" /></a></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Uma rua, do nosso lado esquerdo,
atravessa um bairro antigo de Tbilisi e é por ela que vamos aceder ao centro da
capital. Casas velhas e decrépitas alternam com casas destroçadas. Tijolos
persas associam-se a novas cores berrantes e há, espreitando de portas
espaçadas, desejos de transformação turística. Existem ocasionais negócios, mas
acima de tudo a confusão que aprendi a associar às cidades asiáticas, um caos
organizado onde todos se entendem, menos os pobres estrangeiros que não
receberam o manual. A certo ponto sinto-me a alucinar, porque juro ter visto
condutores em posições diferentes de veículos. Uns guiando à esquerda, outros
à direita; mas percebo que é o comum, que os carros com volante destro são mais
baratos e afinal, uma das grandes capacidades do ser humano é a adaptação.
Passamos por um pequeno parque onde velhotes jogam à sueca e continuamos a
descer, ladeados por trânsito aleatório até um pequeno miradouro que oferece
uma vista de grande quilate sobre o parque Rike, um dos locais mais
frequentados de Tbilisi. Situado junto ao rio Kura, é um espaço para se estar e
ficar, muito verde, com fontes luminosas, um <i>skate park</i> e várias construções de
aspecto modernaço. É um dos símbolos da transformação da Georgia numa pátria de
inspiração ocidental, europeia, contemporânea. Tenta fazer pelos seus
habitantes o que a perseguição de gays desfaz rapidamente. O parque têm outros
objectivos simbólicos. Visto numa perspectiva aérea, e é possível fazê-lo
através de um balão estacionado mesmo no centro da área, cria um mapa em grande
escala da Georgia, com as suas linhas fronteiriças regionais. Espalhados pelo
espaço, há objectos curiosos e claramente colocados para oportunidades
fotográficas: um grande piano branco de mármore, um tabuleiro de xadrez gigante
com peças a condizer e uma sala de espectáculos construída para se destacar,
pois termina em dois mastodônticos tubos de metal que dominam o lado leste do
parque. Brincam com a opinião alheia acerca da sua harmonia ou cacofonia
relativamente ao espaço. Mas destacam-se e convidam-nos a explorar e ver. Todo
este espaço chama-se, apropriadamente, a Praça da Europa. É um piscar de olho à
União Europeia, um convite ao convite. Uma demonstração de simpatia pela Europa
ou a reflexão da ideia de que se a Polónia e a Hungria podem fazer parte dos
valores europeus, porque é que não temos os mesmo direito?<o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> <a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh0RQqxAlnl-sZtYREPH66GNWTKPg5MzKVfSsUYSHBus-rET3lA4ITo0Bmh81udRNghHyEhAfG1MFUynH4ecnfGfAl4rafR-uHLkkqocXPcrkDUg0iSg9N4k1iUVo6keOgZRiRN/s2048/DSCF5639.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh0RQqxAlnl-sZtYREPH66GNWTKPg5MzKVfSsUYSHBus-rET3lA4ITo0Bmh81udRNghHyEhAfG1MFUynH4ecnfGfAl4rafR-uHLkkqocXPcrkDUg0iSg9N4k1iUVo6keOgZRiRN/s320/DSCF5639.jpg" width="320" /></a></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">O miradouro é um varandim onde podemos tirar
fotos<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>e contemplar os elementos mais
evidentes do parque e também a outra margem do rio, que visitaremos de seguida
e inclui o que de mais importante compõe o seu centro histórico. É o nosso
objectivo seguinte. Temos de descer umas escadas íngremes, atravessar o parque
e depois o rio. Vou presumir, porque adoro presumir sem certezas, de que existe
uma ponte para atravessar. É a beleza da presunção do que não se sabe, a esperança
e a fé de que existe. Enquanto caminhamos, vejo crianças brincando, artistas de
rua, vendilhões que não do templo. Neste parque, Tbilisi é uma cidade de tempo
que há-de vir e não o amontoado confuso de casas inabitáveis onde mora gente,
de poeira e sujidade que vi no caminho que desci. Da mesma forma que se pode
perceber muita coisa sobre um por aquilo que come, também se intui a ideia que
fazem de si através das suas cidades. Esta capital procura-se num meio caminho
entre o que o passado fez e o que um futuro pode trazr de novo ou manter de
antigo. O parque Rike e a Igreja da Santíssima Trindade são ambas modernas, mas
não da mesma maneira. Um abraça a ruptura, a outra mantém uma continuidade de
algo necessário, mas pernicioso. Como a paixão da qual não desligamos e nos vai
mirrando. Talvez seja assim a Georgia. Um jogo de corda que puxa de um lado,
puxa de outro, mas não parte nem acaba. Só estica e vai esticando. Numa encruzilhada
que não sei bem onde vai dar; mas numa cidade que ainda que dividida, tem muita
personalidade, sinto-me com vontade, apetite e abertura de mente para tentar
descobrir o que mais há. Se sou renitente em encher o bandulho de comida
internacional, dou graças a esses deuses da viagem chamados curiosidade e
caminhada de ser felizmente muito guloso nos cozinhados da descoberta.<o:p></o:p></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-50384649417781802592021-08-16T22:35:00.004+02:002021-08-16T22:35:51.156+02:00Georgia on my blog 1 - Reinícios<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1SaZ31ruZA2c1D75NEHMxIXQxtDeFdnSxFwhFF_VPGXWBXFRybuTehcleWtZyq9aoMZq1-lQHLDR_WcAPK0btMQMo0wmtv4fkglIqOR3uKVr6870KS0dOzbljwvDxtd-zsd84/s2048/DSCF5692.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1SaZ31ruZA2c1D75NEHMxIXQxtDeFdnSxFwhFF_VPGXWBXFRybuTehcleWtZyq9aoMZq1-lQHLDR_WcAPK0btMQMo0wmtv4fkglIqOR3uKVr6870KS0dOzbljwvDxtd-zsd84/s320/DSCF5692.JPG" width="320" /></a></div><p><br /></p><p> <span style="text-align: justify;">Portanto, a bem da honestidade
que sempre caracteriza as crónicas de viagem que escrevo, devo informar que
este não era o plano original. Vamos rumar ao Cáucaso, mas era suposta, depois
de duas semanas com os olhos e os pés na Ásia, uma viragem radical na bússola e
aterrar na América do Sul. Uma andança pelos Andes, bulindo na Bolívia com um
desvio pelo Chile, na pontinha que abarca o Atacama. Duas semanas, montanha da
boa e altitude para me dar cabo das articulações. No entanto, desde as minhas
desventuras pela terra do tio Jinping, o Império do Meio passou a ser mais
falado. Em primeiro, porque finalmente deu jeito à comunidade internacional
usar os uigures como arma de arremesso contra a China, depois de ter feito aqui
o alerta. Não estou a dizer que o Guterres fala comigo todos os dias, mas… não,
não fala. Bolas, se quiser missa, há muito por onde escolher em Coimbra. E
depois, algures por volta de Dezembro de 2019, uma história passou rapidamente
de risota para pânico generalizado sob a forma de um vírus saído de Wuhan,
anónimo, manhoso, uma praga respiratória mais parida no Extremo Oriente. Mas ao
contrário de gripes aviárias e suínas, esta pegou mesmo. Era uma questão de
tempo até a nossa própria incúria como espécie de pináculo da evolução nos
apanhar. Os Gregos chamam-lhe “hubris”; e esta “hubris”, que também virou “nemesis”,
condiciona as nossas vidas em fluxo temporal e sem pedir licença. Vai para ano
e meio. Daí que no ano passado tenha ficado em terra; e daí que mesmo este ano,
até um mês antes de ter</span><span style="text-align: justify;"> </span><span style="text-align: justify;">comprado a
viagem, também temesse mais uma translação planetária de arranhar os braços,
qual viajómano sem dose. Mas tudo se deu pelo melhor e tive carta branca e
certificado preenchido. Só mudou o destino. Dos Andes, mudei para o Cáucaso.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Porquê a Georgia? A bem dizer, estava
na minha ideia há alguns tempos. A divisão geográfica entre Europa e Ásia é um
daqueles territórios ambíguos de identidade, fecundos de histórias e Histórias.
Ter sido passadeira de impérios e povos, culturas várias de fusões únicas torna
esta região que vai do Mediterrâneo às fronteiras do Irão numa espécie de
caixinha de brinquedos partidos, mas valiosos. Ainda hoje o território
georgiano está marcado pelas múltiplas identidades que ficaram destes passeios.
A Abecássia e a Ossétia do Sul são duas nações sem estado, que reclama uma
existência separada da Geórgia e que ainda hoje mantêm uma disputa na sua
independência. Falaremos delas mais à frente. São ainda resquícios de uma
ocupação soviética longa e que ainda hoje marca uma boa parte do país, ainda
vivendo no estado mental russo, num espírito eslavófilo impossível de apagar.
Percorrer o país é assistir ao confronto entre esse passado e um desejo de fuga
para a frente, que como na esmagadora maioria dos países europeus de Leste que
fizeram parte do sistema comunista, encontra abrigo e desespero na adesão à UE.
Mas o passado da Georgia é muito mais antigo do que a ideologia de Lenine.
Entre a realidade história e o planalto mítico, o país chama a sai múltiplas
heranças, quase todas com a marca ocidental. Numa bruma de imaginação, era aqui
que estava guardado o tosão de ouro buscado por Jasão; e também no Cáucaso
encontramos o local de tortura bárbara a que foi sujeito Prometeu, o Titã que
ousou a entrega do fogo divino da inteligência aos homens e que por isso foi
punido a ser parcialmente comido por uma águia todos os dias durantes séculos.
Os achados arqueológicos, dizem-nos, no entanto, que a região era habitada
desde o Paleolítico e que foi uma das primeiras regiões do mundo a produzir
vinho – os georgianos dirão que foi a primeira. A alguns reinos temporários,
como Colchis ou a Iberia (sim, Iberia, leram bem), seguiu-se uma ocupação
romana tensa, com disputas permanentes com os Partios, antepassados dos actuais
iranianos. A área, plena de cultos pagãos, foi cristianizada em 337 e desde
então, orgulha-se de se proclamar como a mais antiga nação cristã do planeta.
Como verão, este é um dos suportes maiores da identidade do país. Depois de uma
ocupação muçulmana, a Idade Média trouxe nos séculos XII e XIII um período de
esplendor nas artes, ciências e política nos reinados de David II e da sua neta
Tamar; mas durou pouco e os séculos seguintes viram este território a soçobrar
primeiro perante os Otomanos e depois o Império Russo. Foi na esfera deste
último que a Georgia se manteve até 1991 e é o bafo deste último que sopra
ocasionalmente no pescoço dos georgianos quando os senhores de Moscovo se
recordam do quanto gostam de aventuras expansionistas. Hoje, Salome
Zurabshvilli é a presidente do país e um raro caso de uma mulher liderando um
país numa região marcada a fundo por fundamentalismos religiosos que por
natureza não têm grande amor pela plenitude da Mulher.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Acima de tudo, e algo que me
interessava por demais depois da experiência chinesa, a Georgia é um país onde
é possível andar com liberdade e existe uma certeza relativa de que não me
estão a espiar constantemente. Ainda que esteja vacinado e, como sabem, o meu
chip de 5G me denuncie aos <i>overlords </i>do mundo. Depois de um ano parado, não
estava com apetite para grandes aventuras e risco. Nove dias no Cáucaso,
relativamente interessantes e com bastantes oportunidade fotográficas,
apelavam-me o suficiente. Para mais, ainda me permitia presenciar o aniversário
da minha sobrinha, algo que lhe prometera. Ainda que a Beatriz não saiba
distinguir, por ora, “promessa” de “à pressa”, era para mim importante, visto
que sou tio e padrinho e acima de tudo, palhaço da garota. É um cargo
importante. Encaro tudo com alguma leveza: levo apenas dois livros e alguns
podcasts para me entreter. As viagens não serão longas e com um bocado de
sorte, ainda passo pelas brasas. Calha que o dia da viagem seja precedido por
uma noite muito mal dormida. Quando chego ao aeroporto e me despeço da Catarina,
ainda me sinto meio grogue. Não ao ponto de me sentir a desmaiar quando o avião
descolar, mas já naquele ponto onde a realidade é apenas um conceito desfiado a
lã. Os protocolos de segurança parecem-me, por isso, normais ainda que não o
sejam. A minha temperatura é medida várias vezes no aeroporto e sinto que sou
mesmo uma brasa e toda a gente o nota. O certificado é obrigatório em todos os
pontos e a certa altura, julgo até que me vão perguntar pela cor dos boxers e
se tal bate certo com o lote da vacina que consta do ficheiro. Quando encontro
o grupo com o qual vou viajar, uma novidade: algures, quatro portas abaixo da nossa,
está uma conhecida figura. José Sócrates. Ex-primeiro ministro, actual bandido.
Se calhar, quer roubar milhas aéreas às pessoas, sob o pretexto que são todas
suas amigas e que no fundo, é apenas um empréstimo. Talvez venha inspeccionar
se os aviões cumprem as regras relativamente ao combate às alterações
climáticas. Afinal, Sócrates foi ministro do Ambiente, uma pasta que pertenceu
a indivíduos honestos e ligados à causa pública, como Isaltino Morais ou
Arlindo da Cunha; mentes tão brilhantes e progressistas quanto Assunção Cristas
e Luís Nobre Guedes; ou esse monstro da decência que é o corrente João Matos
Fernandes, homem que defendendo a causa ecológica, quer escavações a céu aberto
no único parque natural português e um aeroporto numa área natural protegida.
Não sei mesmo como é que acham Sócrates uma anomalia. Ele apenas fez escola.
Veio ao aeroporto certamente para aguçar o seu instinto verde. Sinto a tentação
de conversar com ele, de lhe perguntar se é rumor ou realidade que fará com Al
Gore uma dupla de forças especiais que, vestida de Capitão Planeta, andará por
aí a punir os criminosos do ambiente; e se eventualmente tem mais amigos em
Paris ou quem sabe, ruma a Atenas para assumir o manto de filósofo do seu
histórico homónimo. Mas fico-me. Reduzido a uma insignificância de aldeão. A
única coisa que gamei na vida foi um rebuçado e senti-me culpado. Tenho
consciência, claramente não estou na mesma liga de sociopatas compulsivos.<o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">O voo atrasa-se, mas sai. Ao meu
lado, um casal português que viaja para Istambul. Têm musiquinha de Lisboa no
paleio. Vêem imensos filmes. Aliás, no voo, querem ver um filme e “óvi-lo”
também. Mas riem ambos; ela diz que é uma aborrecimento ver filmes, porque
mesmo gostando muito acabam sempre por adormecer. Acharam o “Matrix” um tédio,
mas aconselho-lhes o “Casablanca” e isto parece ao homem uma ideia xexional.
Explico a premissa, falo do Rick Blaine e ele fica convencido. É um cláchico.
Tem de ser visto, nem que seja umavez, tudo pegado. Os clássicos são mto
importantes e eu concordo. Escusado será dizer que vinte minutos depois, sornam
pegados. Tento ler, mas sinto o cansaço a apanhar-me. Opto por um podcast sobre
Scorsese mas a meio, sinto que perdi algo. Dormi uns minutos e nem me apercebi.
Há anos, isto não aconteceria. Nunca fui de ter posição para dormitar em
transportes. Mas hoje a espera foi curta. Talvez seja a idade, talvez tenha de
abandonar esta ideia de que ainda sou jovem. Só na cabeça, só nas ideias. Só na
imaturidade. Até o tempo parece correr em vez de coçar e estamos a descer para
Istambul antes que me aperceba. Algures na memória, recordo-me de um mar
turquesa, de pequeninas casas, de barcos vagabundos. Mas não consigo localizar
onde. Divago sem voo, o único ar está lá fora e o que respiro é mais ficção do
que conhecimento do que sou, de onde estou. Sinto-me ainda mais trocado quando
aterramos na grande metrópole turca. Não é a minha primeira vez, mas sinto-me
como se fosse. Nada reconheço no aeroporto. Perco-me em mim e no exterior; vejo
um enorme painel relativo a Gobekli Tepe, que parece ainda maior perante a
pequenez do espaço. O Ataturk, quando aqui estive, pareceu-me bem maior, uma
cidadezinha própria. Mas depois de alguns letreiros, percebo que é um novo
aeroporto inaugurado em 2018, o terceiro internacional da cidade. É marcado
pela celebração a cultura turca. Gobekli Tepe é o expoente maior, prodígio
arqueológico descoberto no início do século e que obrigou a rever o que
sabíamos acerca da evolução das sociedade humanas. Datado de pelo menos 9000 anos
antes de Cristo, é indubitavelmente o local onde se desenvolveu uma cultura
complexa e com construções megalíticas dominadoras. Se não era uma cidade, era
um espaço religioso vasto. Para terem uma ideia, quando estive na faculdade, a
cidade mais antiga do mundo era Jericó, o Çatal Huyuk, conforme os estudiosos.
Ambas eram do ano 5000. Ou seja, Gobekli Tepe quase que dobra esta etapa da
evolução humana. É um local tremendamente importante e os Turcos, sempre
prontos a celebrar-se nacionalmente num onanismo otomano bacoco, aproveitam a
boleia e transformam em folclore este importantíssimo achado. O costume em
autocracias. Mas o nacionalismo bacoco também nos calha, Portugueses. Na espera
pelo voo para Tbilisi, sabemos que Patrícia Mamona ganha medalha de prata no
Triplo Salto. Com tudo isto, até me esquecera que há Jogos Olímpicos a decorrer
e que Portugal tem um ou outro atleta com qualidade. Nenhum de nós treinou para
a medalha, mas congratulamo-nos como se a tivessemos ganhos. Mamona somos nós,
nós somos Mamona. Quando digo esta frase na minha mente, soou muito melhor do
que ao vê-la escrita agora. Recordo-me da experiência na Ataturk em 2016, nas
mulheres tapadas, nas separações claras entre sexos, no domínio óbvio dos
homens. Não noto tanto isso desta vez. O Istambul International Airport está
mais distante da civilização, talvez seja disso. Talvez seja um <i>hub </i>entre
países onde o fantasmas das burkas e da Sharia não esteja tão presente. Ou
talvez tenha aparecido na hora da Tolerância e algures depois das oito,
apareçam os verdadeiros facínoras.<o:p></o:p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh0BJbGcpGWLmNp0YyXq6rI2UvEaVr2F1H1F9LhTaMRGXs71JXlQpv61-_8yP_uqzEQjYRxS9xAkn18uk0CeDRHE7UsrBtcg1NzhxVu5WXVYQuW1D5kyBDXt6qsm0wa1PxhFlhf/s2048/DSCF5637.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1365" data-original-width="2048" height="213" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh0BJbGcpGWLmNp0YyXq6rI2UvEaVr2F1H1F9LhTaMRGXs71JXlQpv61-_8yP_uqzEQjYRxS9xAkn18uk0CeDRHE7UsrBtcg1NzhxVu5WXVYQuW1D5kyBDXt6qsm0wa1PxhFlhf/s320/DSCF5637.JPG" width="320" /></a></div><br /><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br /></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Duas horas e meia separam-nos da
capital georgiana. À noite, a Anatólia é tão obscura quanto o nosso
conhecimento sobre as culturas que daqui até às estepes mongóis, assombram a
visão do comum ocidental. Não sei o que esperar dos georgianos. Não o mesmo que
dos quirguizes, ou sequer dos chineses. Se serão mais europeus, mais asiáticos.
Se serão uns mestiços culturais. Perdidos entre dois mundos ou bem encontrados
num seu, com parcelinhas de todos os que fizeram destas terras casa temporária
e por aqui semearam mais do que vinhas. Consigo ler um pouco durante o voo. Um
livro sobre as consequências da Revolução Bolchevique na Ásia Central e os
velhos jogos entre os Russos e os Britânicos nesta importante geografia. Os
capítulos finais do chamado Grande Jogo. Algures no livro, após a morte de
Lenine, Estaline abre caminho para liderar a União Soviético. O paizinho dos
povos José nasceu na Georgia, é talvez o mais famoso dos todos os que deram por
si vivos neste país. Com o nome de Ioseb Besarionis Jughashvilli, nasceu em
Gori. Os mais lúcidos entre nós reconhecem nele um dos homens mais sinistros do
século XX, essencial para entender alguns dos seus principais eventos e
assustador para quem ainda se impressiona com a crueldade humana. Revelou algo
dela quando pôde dispor dos povos da Ásia Central. Teria ainda muito mais para
gastar até morrer em 1953; mas a história de Estaline é para ser contada mais à
frente. Quando me deparar no impacto desta figura num país em vários episódios,
nomeadamente num mercado de rua. Mas é incontornável. Portugal tem a sorte de
não ter um Estaline para recordar. Salazar, ditador conservador e de casual e
efectivo desprezo por quem pensava diferente, marca-nos pelo seu período de
governo, pela repressão e perseguição do que é diferente, pelo atentado contra
a liberdade que a sua existência representou na nossa História, pelo tratamento
dado aos que vivendo num espaço dito português, eram tudo menos isso no
além-mar. Mas no grande contexto da História, é aquilo pelo qual tanto lutou:
um provinciano, uma figura paroquial, um idoso desenhado na capa da Time sem
expressão mundial. A vilania de Salazar é, como Portugal, nossa e de pouco
interesse para os que marcam recordes de vítimas. Estaline está na primeira
liga. É um papão do mundo, é verbo de encher, é insulto fácil. Todos sabem que
foi Estaline. O que representa verdadeiramente. Alguém tão virulento na sua
impiedade, na sua iniquidade, que todo um regime de brutal repressão sentiu
necessidade de se afastar e renunciá-lo. Como o apóstolo Pedro fez a Cristo,
ele apóstolo misógino e misantropo. O legado deste fantasma é algo com que a
Georgia ainda hoje lida. A União Soviética era um espaço único, mas os males
são individuais. Estaline não é russo: é georgiano. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">A viagem é tranquila. No
aeroporto, rapidamente encontramos o caminho para a zona dos passportes. Vou
estrear o meu. Uma jovem mulher interroga-me num inglês engasgado. Por debaixo
da máscara, fala baixo. Temos de nos repetir várias vezes, mas sorri-me com os
olhos várias vezes, pede-me mais documentos, o certiciado. “Welcome to Georgia”,
carimba-me e tenho a primeira marca no meu quase imaculado documento de
viagens. Há algo no ar e não é o perfume de uma nova terra. Um burburinho de
infecção não covidiana preenche as paredes. Não luz nem é ouro, mas revela-se
precioso. Enquanto espero a chegada da minha mala, vejo o constante abrir e
fechar da porta que dá acesso à entrada do aeroporto. Uma multidão imensa,
cheia de cartazes, enche o espaço. Por momentos, comovo-me. Sinto Portugal
brilhando alto, o orgulho da nação. Porque só pode ser uma de duas coisas: ou
esta imensa turba georgiana quer celebrar connosco a medalha de prata da
saltadora Mamona ou, atrevo-me a sonhar, são espectadores fiéis da RTP
Internacional. Há uns meses, participei no programa televisiso “Joker” e com certeza
sabem que chegava hoje. Querem parabenizar-me, aplaudir-me por não saber qual é
o elemento base de uma queijada de Sintra. Levar-me em ombros por ter posto
Vasco Palmeirim na ordem ao mostrar-lhe que há uma parvoíce maior para lá de
Alvalade e que ele desconhecia. Saudar com aparato militar o entretenimento
puro que a minha presença sempre desperta. Com ansiedade mal contida, lágrimas
transparentes nos cantos dos olhos, encaminho-me para aquele vasto magote,
pronto a abrir os braços, a receber aplausos. Mas desilusão: não é a mim que
esperam. O meu rosto não consta nos cartazes, a minha semelhança é pouco com um
outro homem que faz dois de mim e veste um kimono. Branco, ainda por cima. É
difícil exagerar o número de pessoas que ali estão. São centenas por certo, há
grupos folclóricos vestidos a preceito e dando música, bandas filarmónicas,
militares em peso com armas carregadas e prontas e render a guarda. Cartazes
toscos, demonstrações de admiração popuçar, bandeiras georgianas insufladas de
orgulho num quantidade capaz de enciumar Cristiano Ronaldo, melhor ser humano
português de toda a História e destinado a trocar de lugar com Afonso Henriques
no Panteão de Santa Cruz. Saberei mais tarde que o aparato se destina a receber
Lasha Bekauri, judoca que trouxe o ouro de Tóquio a uma nação de 4 milhões de
habitantes. Ao todo, o país trouxe 8 medalhas, metade delas no Judo. A de
Bekauri foi a primeira de ouro, à qual se seguiu outra no halterofilismo. A
luta livre completa o trio de modalidades que trouxeram a glória olímpica. Um
país de força e de defesa. Quando Bekauri chegar, verei mais tarde, está-lhe
guardada a volta em ombros que julguei minha por conta da aparição que fiz num
concurso de cultura geral. Ninguém dá o devido valor aos acumuladores de tralha
na cabeça. <o:p></o:p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Uma viagem de carrinha separa-nos
do hotel. São vinte minutos de aceleração até ao centro de Tbilisi. O nosso
hotel recebe-nos às onze e meia da noite. Sinto-me meio morto, mas não
completamente. O interior é meio bruto, o aproveitamente de uma estrutura
industrial. Cinzentos, azuis e esculturas a atirar para o contemporâneo. Mas o
pessoal é simpático, prestável, acolhedor. É o nosso primeiro contacto com
estas pessoas de um país diferente e saberei que, no geral, é um prenúncio
certo. Vou para o quarto. Tbilisi recebe-me abafada, estão quase trinta graus à
noite. Da varanda, contemplo uma cidade estranha. Por entre as luzes nocturnas,
despontam inércias arquitectónicas que parecem não ter lugar, parecem de outro
espaço. Têm cores berrantes, não se escondem nem disfraçam. Tecem as vozes que
vêm da rua e escondem a identidade tbilisiana, guardam um mistério que talvez a
luz do dia desvende. Depois de alertar os que me são queridos de que tudo
correu bem, de que não foi mais este país com nome esquisito a afastar-me do
seu convívio, estendo-me na cama, ainda nebuloso, ainda perdido. Talvez por
estar numa fronteira, talvez por eu próprio ser fronteira. Entre o que sou e o que
quero. Ou talvez esteja a complicar demasiado. Isso seria tão meu que até na
Georgia sou capaz de me sentir em casa.<o:p></o:p></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-33221198381732059092020-06-03T14:55:00.001+02:002020-06-03T14:56:24.914+02:00As andorinhas do meu beiral<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
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<div style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;">
<img alt="Andorinhas e os espinhos de Cristo, conheça a lenda - Meus Animais" src="https://live.mrf.io/statics/i/ps/meusanimais.com.br/wp-content/uploads/2018/04/andorinhas-na-biblia.jpg" /></div>
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A identidade da casa onde cresci tem muito pouco a ver com o número que a burocracia lhe atribuiu e mais com aquilo que os anos lhe foram colando. Nem falo de sujidade, ou de uma fuga de cor que obrigado a uma pintura renovada a cada dez anos - e mudando sempre a tonalidade: nasci numa habitação meio castanha e hoje, quando a refiro a amigos e conhecidos como ponto de orientação, tenho sempre tratá-la pelo amarelo. Aquela cor que se afligiria caso todos gostássemos do mesmo, ao que parece. Mas a memória mais frequente, e hábito reciclável, que mais me recordo de associar a este paralelepípedo com memórias lá dentro coladas é o espectáculo das andorinhas em Primavera. Para aqueles que não sabem do que se trata, importa esclarecer que não falo de caminhando na rua, olhar para o azul do céu e observar, em cruzamentos rápidos de negrume com asas, aves que parecendo perdidas, encontram-se sempre no último segundo da curva da vertigem. Desde que sou eu que as andorinhas regressam, todos os anos, aos seus ninhos de barro germinados nas bordas do meu telhado. Na sua ausência, os ninhos decaem e estragam com a passagem do tempo, as transformações do Inverno. Mas nunca os tirámos. Ficam lá, como referência, e elas voltam todos os anos. Não sei por onde andam no resto do tempo. Os ornitólogos falam em migrações para locais mais quentes, portanto costumo encarar sempre o desaparecimento das andorinhas como uma sabática em África. Renovam o bronze, recarregam baterias, são outras durante seis meses; mas todos os inícios da Primavera, as correntes de ar empurram-nas de regresso a Ceira e processo recomeça. Tapam os buracos com terra e ramos, na azáfama do tempo marcado e contado, da biologia perpétua do ciclo da Terra. Existem ninhos de ambos os lados da moradia e portanto circulam a toda a volta neste trabalho. Ouço-as chilrear, a irrequietude de todo um impulso numa voz que nem sequer canta; e nas manhãs, ou madrugadas que se prolongam quando não consigo dormir, é esse trinado que me indica a chegada da manhã. Dentro dos seus ninhos, já com pequeninas crias que de quando em vez metem a cabecinha de fora dependendo dos pais, anunciam que acordam para o mundo e continuam a sua demanda.<br />
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O ciclo das andorinhas sempre fez parte da nossa vida. Não são nossos animais de estimações, mas tratamo-las como tal, porque de maneira a que nos fascinem, existe todo o trabalho sujo por trás. Nem tudo é bonito ou admirável. Manter os ninhos implica deixar o telhado sujo e mesmo na ausência dos pássaros, permanecem ali como lembrança. Nem sequer são objectos bonitos, apenas montes de terra castanha clara que à distância e para um olhar menos treinado, quase parecem colmeias. Quando voltam a ganhar vida, os problemas duplicam. Em minha casa, as andorinhas moram por cima da escada que conduz à porta principal e também numa varanda adjacente à cozinha. São, portanto, locais que frequentamos. A presença constante dos visitantes deixa também outros restos da sua passagem, mais escatológicos, que se amontoam no chão. O trabalho de lavar sobrava sempre para a minha mãe, mangueira em punho, pelo menos uma hora de labuta, porque incluía também a varanda principal da casa, defronte da sala de estar do primeiro andar. Dava trabalho, ela chegava sempre cansa e no tempo de calor, pior ainda, a temperatura tremente juntava-se ao trabalho já de si cansativo. Mas por cima dela, o chilrear daquelas balas com asas não a deixava sozinha. Aqueles pássaros sempre foram para mim coisas diferentes. Nos filmes norte-americanos, há sempre a imagem dos traços na ombreira da porta que permitem visualizar a evolução do crescimento dos garotos. As andorinhas são isso para mim. A minha inocência infantil via nelas apenas animais fofos que animavam a minha vida no seu voo, na sua presença, no seu som. Quando comecei a conhecer mais o mundo e a ciência, percebi porque regressavam todos os anos, o que é uma migração, a diferença entre o Verão e o Inverno. Na minha adolescência, onde o calendário escolar se confunde com o civil, elas eram sempre sinal de fim de aulas próximo e férias de Verão. Na tarde quase noite do meu tempo adolescente, sempre que as observava, perguntava-lhes porque se a vida melhora de facto, se o drama acaba, se algum dia uma rapariga vai olhar para mim da mesma maneira que eu olhava para a Scully. Na minha vida adulta e suas migrações, identificava-me com elas e voltar a casa na Primavera encontrando-as sossegava-me o coração e pregava-me os pés bem no solo, como se de facto regressasse a casa. Aprendi também a suspirar quando via famílias constituídas em ninhos e eu procurando incessantemente alguém com quem partilhar a aventura da minha vida. Elas voltam sempre, mas apenas para me lembrar de que andar em duas pernas é mais complexo do que voar em duas asas. Passaram de simples visitas e reflexos da minha mente. O que também quer dizer muito da minha personalidade e onde ela foi parar.<br />
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Quando vejo meio metro de gente chamado Beatriz a apontar indiscriminadamente para o céu britando "Piu piu, piu piu", é um pouco como se recomeçasse o processo. Tal como as andorinhas regressam, aqui em casa o encanto por elas vai migrando e regressando também de cada vez que algum de nós ainda consegue olhá-las com o encanto infantil do fascínio. O seu dedinho aponta, as mãos batem palmas, no meu colo ela ri e diz "piu piu, piu piu", olha em redor e acompanha o seu movimento errático. É feliz. Penso em como nada disto se sucederia se nos tivéssemos dobrado à preguiça. se a minha mãe não suportasse todos os anos o trabalho de limpeza, de manutenção, se todos os anos não se dispusesse a aceitar de novo as andorinhas, não haveria Primavera. Quer dizer, havia, mas com menos flores. Para as coisas boas, é inevitável, o esforço está presente. Sem querer suportar a merda e o esforço de limpá-la, não surge depois a reciclagem do sorriso. A felicidade está tantas vezes ligada ao quanto querermos trabalhar para que aconteça e não simplesmente encantos e ténues acasos do destino que interpretamos como sinais ou inevitabilidades. Ser feliz dá trabalho. Que o digam as andorinhas que todos os anos reconstroem os ninhos sem piar nem queixume. Talvez seja de estar a chegar aos quarenta anos, mas é nisso que agora penso quando as vejo. Há quem tente curar a crise da meia idade com carros novos e cortes de cabelo arriscados. Eu interpreto pássaros e escrevo sobre isso. Podia dar-me para pior.Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-10013040801886890732020-05-18T02:51:00.001+02:002020-05-18T18:47:40.965+02:00Viagens na minha terra<div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiXbgKJTO4o2hwvhlodlJbTDx79HYE7v9oB5hfl73ao2S2Gg0em8YsF9Q3V4d5WcOeTZafQPt42ZA6A2LOha3oLy13xWroyFSttklzHT7p_EVFelORFgeDlQtOQeUDJizxzB8Mp/s1600/465358_4123172089589_700837546_o.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="960" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiXbgKJTO4o2hwvhlodlJbTDx79HYE7v9oB5hfl73ao2S2Gg0em8YsF9Q3V4d5WcOeTZafQPt42ZA6A2LOha3oLy13xWroyFSttklzHT7p_EVFelORFgeDlQtOQeUDJizxzB8Mp/s320/465358_4123172089589_700837546_o.jpg" width="320" /></a></div>
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Na Ceira dos anos 80, as escolhas de escola primária eram simples. A principal era a das Vendas de Ceira; aqueles que viviam no outro canto da freguesia invariavelmente entravam na do Cabouco, local onde só pus os pés uma vez na vida e não como estudante; alguns aventuravam-se para outro concelho e acabavam na do Senhor da Serra, território de mitos e lendas que nos chegavam aos ouvidos através de amigos de amigos. Há um lugar afastado do centro, o Carvalho, que teria as suas hipóteses, mas sinceramente só comecei a conhecê-lo bem mais tarde na vida e falava-se entre os adultos por dois motivos: um desastre de aviação militar na década de 50, soprado com respeito a propósito do choque dos aviões com a parede da serra do Carvalho (parece impressionante, mas a serra do Carvalho mal tem 400 metros) numa manhã de nevoeiro. Talvez tenham visto D. Sebastião; e o facto de o Carvalho ser um lugar partilhado entre dois concelhos, Coimbra e Poiares. Dividido ao meio, por escolha da população, ficava longe de igual forma de ambas as sedes de concelho. Sempre achei isso curioso, e imaginava os habitantes daquela terra como uns eremitas, longe do mundo civilizado, como sevandijas das matas, na minha imaginação de criança. Em adulto, descobri que têm uma povoação mesmo ao lado chamada Terreiros de Além, que é das poucas toponímias que conheço a combinar de morte com o título "Indiana Jones e...". A infantil população de Ceira estava espalhada então até aos dez anos, quando as escolhas de carreira escolar começavam a afunilar para Coimbra. Excepto quem andava na escola do Senhor da Serra. Mas essas pessoas, como referi, viviam numa espécie de névoa de mito e lenda, fora do espaço que considerávamos nosso, e nunca partilhavam todas as desventuras que contávamos entre nós; e pela maneira como nos falavam da sua escola, pareciam saídos de uma iniciação ao banditismo que, tímido e impressionável como era em criança, fascinava-me a atemorizava-me em simultâneo. Aí, estas crianças viajando para a adolescência eram novamente divididas em três tribos, mas bem distintas: a da Carreira; a do comboio; e a do autocarro.<br />
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Eu pertenci a esta última até terminar a carreira académica. Não vou aqui aborrecer-vos com as intrincâncias do 10-Ceira, a linha que me levava do centro do meu mundo ao centro de qualquer coisa a que íamos chamando "escola". Por muito que não o tenha usado, o meu foco é o comboio. Hoje uma memória assim esbatida nas conversas de café e grupos de partilhas de memórias da minha terra, houve uma altura em que era como que uma coluna vertebral que unia principalmente as povoações do sul da freguesia, o Sobral e as Vendas de Ceira, à cidade. Com o advento do Metro Mondego, patranha que encheu os bolsos a alguém e esvaziou Ceira de opções de transporte, já nem os carris sobram. As minhas recordações das carruagens são esparsas. Na verdade, poucas vezes usei a "automotora", a locomotiva preferida das linhas regionais. Nunca lhe senti a falta. Em criança, tenho aum vaga ideia de ver imagens da tragédia ferroviária de Alcafache, onde dezenas de pessoas - num número não especificado até hoje - mal sobraram calcinadas em morte depois da colisão entre dois comboios perto de Mangualde. Nem era bem medo o que me causava, mas espanto. Pensava às vezes na mágoa dos meus pais se não me conseguissem reconhecer. Morrer não me assustava em criança, algo que não posso dizer na minha condição de adulto, e acho que me perturbava mais a inquietude familiar em relação ao meu corpo. Imaginava a minha mãe em pranto, o meu pai numa certa desolação muda. Escusado será dizer que tive uma infância pouco paradigmática, ou se calhar encaixando no paradigma daquilo que dei quando cresci: uma ave rara. No entanto, os meus traumas valiam menos do que passar a noite em casa dos meus avós maternos, que me criaram a meias. Havendo oportunidade, adorava ver televisão com o meu avô e conversar com a minha avó sobre Coimbra e sobre a nova escola, sobre o que fazia. A Lurdes nem era bem segunda mãe, era mesmo primeira avó. Mesmo depois de passar os dez anos, gostava de ficar uns minutos comigo antes de dormir, a falar de patetices e a explicar a vida da terra, a fresa e que agora já não brincava tanto com as molas. Mesmo que eu não precisasse, insistia em deixar a luz acesa. Porque assim ficava mais sossegada. Nem era por mim, era por ela. Hoje penso que se calhar já antevia dentro de mim a génese da escuridão que foi crescendo e tomando conta, e como se quisesse mantê-la ao largo mais uns tempos, porque eu até merecia ser criança ainda, guardava a lâmpada iluminada como uma candeia que protege o Santíssimo das investidas demoníacas. Ela acreditava um pouco nessas coisas, tirava quebrantos e rezava responsos a pedido de outros. Não sei se resultava, mas sempre senti nela uma sensibilidade diferente para o mundo e para a realidade. Talvez por isso gostasse tanto de mim, talvez por isso sinta a falta dela de uma forma quase de navalhada ainda que ela já não ande por cá em duas pernas fez quinze anos em Abril; e o valor dessas noites só cresceu no tempo. Mas morando ela no Sobral, sabia que teria de usar o comboio para ir à escola de Coimbra. Porque independentemente dos nomes, sentíamos todos isso em Ceira: íamos à escola à cidade.</div>
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Tenho tido tempo para recordar isso. O adiantamento da minha barriga em sentido protuberante levou-me a usar a caminhada como método de combate ao alargamento. O ramal ferroviário deu lugar hoje a uma via de terra batida que uso como trilho de passos. A minha ligação emocional àqueles espaços é exígua, e apenas sinto um aperto quando perto da estação do Sobral olho para a casa dos meus avós e está igual. Ou se calhar eu mudei tanto que quero manter em estado perfeito os refúgios em mim que me recordam do que fui de feliz. Faço um percurso simples e quase sempre em recta. Atravesso duas pequenas pontes sobre as águas escuras do rio Corvo, que murmura depois das chuvadas, mas em silêncio se guarda nas alturas de seca, e atravesso o breu de um túnel curto, mas que a meio escurece por completo. Se parar, as luzes de ambas as entradas são visíveis; o chão, no entanto, engole-me. Como se me recordasse de que que por muito que tente deixar entrar a luz, a sombra segue-me; ou então, que reparo muito mais na constância da sombra do que na vibrância dos raios luminosos que querem rasgá-la. Sigo e chego à Tremoa, de onde regresso ao ponto inicial. A ideia é moer-me as pernas e pensar o mínimo possível, mas recordo sempre os meus avós, mesmo por entre a monótona voz de relatos de crimes reais que me costumam acompanhar no exercício. O mundo é bem real à beira da linha. Casas no campo, cabras do monte, pastores e cães barulhentos. Aldeias mais esguias e pequenas do que a minha, mais sós, mais prontas a separar-se e talvez voar como um balão para algures. Há quem espreite à janela, talvez esperando o comboio que não volta, sentindo saudades de serem alguém com o barulho da automotora. Já tentei recordá-lo, e não consigo. Talvez porque recordar é dar movimento ao coração, literalmente, e eu sou uma criança de autocarro. A voz monocórdica fala-me de facas e sangue, e quando o relógio cardíaco engrena, lembro-me do meu avô vendo a tourada e a chamar nomes ao Futre; e também das batatas fritas meio queimadas que a minha avó fazia e de como o comboio, por muito respeito que me causasse, parava sempre naquela estação do Beco Trás das Eiras, não suburbano, mas sobre-humano no quanto me fazia sentir querido. Quando chego ao final da malha que dou a mim mesmo, verifico os quilómetros e as calorias. Verifico também o coração, mas não apenas a batida. Tento convencer-me de que sou querido, e num longo olhar pela recta do comboio, não consigo ver a resposta. Sinto-a, mas temo-a. Talvez, quando não encontramos quem nos aceite no regaço em adultos, regressemos onde um dia nos sentimos no mundo mesmo. Ou então, se parar no túnel e não reparar no breu, talvez a Lurdes tenha lá deixado a voz. Talvez se retirar os auscultadores a ouça e talvez ela me diga, como me dizia sempre em criança, que as coisas se resolvem. Sempre. Ainda que não se resolvam como queremos, resolvem-se inevitavelmente. E depois beijava-me na cara e tapava-me no sofá e desejava-me um bom sono e que sonhasse com coisas boas. </div>
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Há noites em que a ouço. E em que quero que o comboio passe. Mas já não volta. Ainda assim, tenho o consolo de ser um menino do autocarro; e que talvez a solução esteja aí. Uma via diferente para um destino diferente. </div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-67838943401854087342020-05-13T12:43:00.000+02:002020-05-13T22:51:48.991+02:00"Tio, tio, tio"<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOTn5XH2bygQ9NkvfShz88AZXVXrJSgYW7pPJClGKQmgDMzxt21xNxAfOUzkZKrii4sKZCggnpjCZzSijt1BWKwwby0YharCYON9NXhwxMk2nDYaJ198W2L8Oz9-bNX2ZwHDR2/s1600/DSC_0709.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1065" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOTn5XH2bygQ9NkvfShz88AZXVXrJSgYW7pPJClGKQmgDMzxt21xNxAfOUzkZKrii4sKZCggnpjCZzSijt1BWKwwby0YharCYON9NXhwxMk2nDYaJ198W2L8Oz9-bNX2ZwHDR2/s320/DSC_0709.jpg" width="320" /></a></div>
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Palavras são apenas isso até que a boca de alguém as torna em qualquer coisa de real; e agora, quando ouço, numa repetição persistente, "Tio, tio, tio", a minha natureza própria como que desaparece e começo a sorrir como um tolo. Por vezes é dito à minha frente, noutras estou ainda a aproximar-me da divisão de onde saem estes sons beatíficos. "Tio, tio, tio", como um alarme de aproximação de algo que gera no interior de um ser pequenino qualquer coisa que nem esse próprio ser consegue bem entender, apenas quantificar num palrar metrónomo. "Tio, tio, tio". Quando entro, vejo meio metro de parte de mim, muito indirecta, cabelo castanho encaracolado e roupa riscada de muitas cores, porque ela descobre que adora "paintá" e o que ela gosta mesmo é de pedir ajuda a arrancar as tampas das canetas com força e deixar tudo salpicado como o anúncio televisivo a televisões de alta definição. Sorri-me, quase sempre, noutras finge uma cara perplexa. Já sabe o que é manipulação e reserva uma cretinice sorridente, como se estivesses prestes a pedir algo e algures destrancasse que o segredo para fazer alinhar um adulto é simplesmente parecer simpática e bem disposta. Como se entendesse por instinto que na gente grande, a visão de uma criança pequena desperta a simpatia e também uma certa esperança que desaparece quando crescemos. Como se acreditássemos que o simples contacto com a infância que se arrumou tão distante, ainda que não seja agora nossa, desperte aquilo que hibernou e espera Primavera.<br />
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Acontece-me, de vez em quando. Pego nela ao colo e pergunto onde está a Beatriz, e ela aponta para si; pergunto onde está o tio e o seu dedo aponta repetidamente para o meu peito, e pergunto-me se na sua inocência ela encontra aquilo que não consigo de maneira alguma descortinar. Eu próprio em mim. Mas ela aponta e ri muito. Peço-lhe um xi e a cabeça cai no meu ombro com abandono. Tenho direito a beijos quando ela se dispõe a isso e nem sabe ainda como se dão beijinhos, abre apenas muito a boca e encosta à face quando calha, porque tem alturas em que o nariz é o destinatário e desvio-me a bem da saúde pública. Fazemos uma brincadeirinha com isso, de cada vez que damos beijinhos fazemos "Muá" muito alto e ela volta a rir muito porque gosta é de estardalhaço e de barulho, de ligar a banda sonora do triciclo e de ficar a abanar de um lado para o outro. Gosta quando lhe passo certas canções, da guitarra do Rodrigo e da Gabriela, da Badinerie de Bach, algumas coisas de Green Day e a "Comics" dos Caravan Palace. Tem a sua sala de jogos e quando brincamos, finjo que durmo e ela finge que acredita e acorda-me com palmadinhas na testa, e depois espera que lhe sopre na cara, em primeiro para gritar um bocadinho e depois fingir-se de zangada. Quando não brinca, caminha pelo quarto e quando se cansa, deita-se no meu colo sem pedir e fica só uns segundos quietinha, como que a recarregar uma bateria que traz na barriga, no "Pipinho", volta a entregar-se ao mundo.<br />
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No exterior, procura o "piu piu no céu e mesmo quando não o encontra, olha-me e pergunta "Vistes, vistes?" e eu faço que sim, que vi tudo e vi muito com ela, e até vejo tanta coisinha pequena e grande que me escapa fazia tempo, um pedacinho de parte de mim que sorri quando me vê, que me pede mãos e peito, que sem medo me aceita, que me faz sentir parte de algo, importante para alguém, que me faz ter vontade de sair da cama quando acordo, por uma vez, só para descobrir se hoje ela vai aprender algo de novo. Uma palavra, um tique, um gesto, uma dança, uma mecânica qualquer que na sua cabeça a estabelece e faz saltar um bocadinho mais o crescimento. Sejam a existência de pássaros, o miar dos gatos ou que quando ela está presente, consigo ser mais eu. O que preciso tanto, e fazia tempo que outra pessoa não tinha esse poder sobre mim, de me transformar de uma forma tão profunda que na verdade, nem mudo e sou aquilo que enterrei com a bonomia perversa da desesperança. O que nos liga a alguém não é inexplicável por norma. É uma soma de tempo, vontade, química e acaso; e a afeição de um bébé vem muito das duas primeiras, mas também de algo que eles reconhecem e não se explica, e é esse algo que dá aos adultos um poder quando estes sorriem ou abraçam. Uma nova possibilidade, um oráculo profundo que nos garanta que há mais de bom a chegar, que ainda que nos sintamos um ciclo repetido, pulsa ainda o que sonhámos, o que imaginávamos, há tanto, que nos tornaríamos. Sem erros, sem nos estragarmos, ainda antes de termos ganho o poder inconcebível de magoar alguém e a dádiva da dor dentro de nós como triste lembrança de que não somos nem imortais, nem imunes ao que é bom. Um bébé é uma estrada para um futuro onde somos os alguéns de um passado onde tudo era tão soalheiro quanto o sorriso de uma criança e tão terno e suave como os seus bracinhos estendidos pedindo um biberon.<br />
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"Tio, tio, tio" não é apenas um chamamento da Beatriz. É a recordação do que queria para mim, a insistência em ter esperança mesmo quando não se acredita nela, o empurrãozinho pequenino para fingir, durante uns momentos, que tudo pode ser como deve e não como é. Ando perdido em escuridões e ela puxa-me as calças e pede colo. Aponta para a porta da rua e saio com ela. Mesmo quando chove, há sol e eu consigo segurá-lo. Não devia ser possível, porque sou humano, mas este vem revestido da melhor capa protectora que existe: a possibilidade.Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-84118281347816556722020-04-23T20:52:00.004+02:002020-04-23T20:52:51.294+02:00Fachinação 27: Epílogo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
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Acordo. É o último dia. Os últimos dias passam sempre como o milho na mó, espremidos, um pó que é soprado e nunca se apanha. Últimos dias de fuga do mundo, últimas dias de preocupações em arrumar, últimos dias de despedir de quem fez parte do nosso tecido esvoaçante de dias anteriores. Mais do que dizer adeus, últimos dias são de voltar a dizer "olá" a nós mesmos no regresso. É só quando me sento na cama em dias últimos que entendo tudo o que ficou para trás nas viagens que faço. Somos sempre alguém diferente quando estamos longe, quanto mais não seja porque nos dobramos à novidade dos locais, à diferença das pessoas. É como me sinto, pelo menos, não exactamente estranho... mas outro. Ser outro dá muito mais trabalho do que ser estranho. Porque temos de nos conhecer também no que fazemos e passar os dias à procura dos traços que sabemos nossos. Não sei se é por isso que quanto mais avança a viagem, mais melancólico fico. É como se tivesse saudades de mim, ou pior, como se soubesse que este novo eu, com pontos que gosto e que são novos, é apenas temporário. Que perco-o mal esteja de novo na realidade que deixei em Portugal. Não sei porque me embrenho nestes pensamentos agora, que são sete da manhã. Talvez porque a noite anterior foi surreal.<br />
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Apanhámo-nos numa das ruas mais decadentemente capitalistas da capital do maior país comunista do mundo. A Dongqidao é uma espécie de Quinta Avenida chinesa, luzes brilhantes e milhentas de lojas de multinacionais, restaurantes de comida rápida, o crespúsculo substituído pela intensidade da electricidade. É uma das vias mais importantes da capital chinesa, cheia de estabelecimentos comerciais e embaixadas. Há uma loja da NBA com quatro andares, todos eles visíveis a partir de fora; e numa rua paralela, podemos ver até bem ao fundo casas em estilo colonial onde se alojam embaixadas de países tão diferentes quanto a Mongólia, o Vietname, a Irlanda, Roménia ou Cuba. O mundo, vai-se a ver, encontra-se sempre no consumo. Na compra. NO comércio que vem tão da antiguidade chinesa quanto o Mandarim ou o chá. Caminhamos um bocado à deriva durante vários quilómetros, até os pés nada mais serem do que chapa. As minhas pernas, depois da malha da manhã e do início da tarde, estão feitas colunas de templos antigos, pedra escavacada. Com um ratito no estômago, jantar é necessário. Dividimo-nos e inevitavelmente, no meio de tantos restaurantes de comida chinesa, o meu último jantar em Pequim é num McDonalds. Não me sabe mal, digo-vos. A única loja onde acabaremos por entrar, para compensar o desvio superficial, é uma livraria. Tenho bastante curiosidade depois da experiência, que agora me parece fumo, em Kashgar. Encontramos bastante literatura ocidental, best-selles. Uma coleção imensa de Shakespeare, quase tudo de Stephen King em chinês e em inglês, Stieg Larsson, tudo o que se espera de um entreposto livreiro ocidental. Mas num canto mais selecto da loja, onde as estantes são de uma madeira nobre e o espaço muda em largura, longas prateleiras acomodam, clássicos chineses de filosofia e compêndios de acupunctura. Estes não se desfolham, abrem-se. Longas ilustrações caem-me para as mãos e caracteres chineses analisam pontos de pressão, conselhos para não transformar as agulhas em algozes de paraplegia. São carotes, mas há quem compre. O grupo de advogados do grupo ainda namora uns códigos penais chineses, mas também acaba por não trazer. Em grande destaque, num poster, Xi Jinping anuncia o seu mais recente livro, um gigantesco plano para o país com ditames que foram integrados na Constituição nacional no ano passado. No exterior, o contraste. Uma avenida fervilhante, colorida, em vagas de gente que não morrem na praia, mas antes ressucitam no pavimento. Azáfama total, de um lado para o outro. Em todos os cantos, grupos exibem-se em cultura. Não sei se voluntário ou se estamos na altura de algum festival; mas do exterior da livraria, se olhar em meu redor, há demasiado a acontecer. Mais distante de mim, gente vetsida de verde salta e rebola em números circenses, aguns deles comandando um dragão de plumas que parece uma montanha russa. Têm de todas as idades e marcham no ritmo dos mal ensaiados, mas que adoram o que fazem. Mais perto, três portas à nossa esquerda, um grupo instrumental de sopros enche a rua com aquele trinar que me irrita tanto da música chinesa; e à nossa frente, mas do o outro lado da rua, dezenas de dançarinos azulados, numa coreografia orientada, estão longos minutos em movimentos orientais ao som de baldas de fazer chorar não as pedras da calçada, mas o cimento do chão. Mexem-se numa câmara lenta deliberada. A conduzi-los, um senhor de t-shirt branca, com a convicção de que ser Messias pode envolver passos de dança Atrás de sim, as montras de uma Prada anunciam saldos e roupas de corte elegante e muito na moda. Sei que o contraste traz uma ironia óbvia, mas prefiro concentrar-me em quem, por um gosto decerto, se encontra a esta hora da noite num local tão movimentado em coordenação completa com outras pessoas pela simples razão de mostrar a todos a sua cultura, a sua intenção, a sua mensagem do que é para si ser chinês e viver a China, Um só país, uma só cultura, uma só gente. Pouca discordância na coreografia, no gesto. Unidade. Representam a ideia deste país, na sua força de imposição a todos os que sendo diferentes, são convidados a ponta de uma bastão a serem iguais. Uma China multicultural de uma só expressão e direcção.<br />
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É a última imagem que guardo antes de me ter deitado, já torcido, na noite anterior. Há viagens em que sentimos que ainda há mais, que podemos mais. Nesta, a minha mente e o meu corpo sentem a necessidade de regressar. Não sei se é da China ou de mim. Talvez no tenhamos infectado ambos. O que é uma palavra engraçada de usar, porque quando escrevo estas, muito depois de viajar para casa e de ser revistado por causa de um lenço de papel ranhoso em Munique, China é o país que domina todas as atenções. Estamos todos fechados em casa à conta de um bicho que brotou de lá. Algures em Dezembro surgiram uns rumores. Quase ninguém prestou atenção, porque aparentemente não era nada. No entanto, porque uma estadia no país me deixou desde logo alerta a verdades e sossegos do governo local, comentei com alguns amigos que aquilo não era verdade, que a situação de certeza era mais séria. Longe de sonhar que em Março estaria fechado em casa, mas ainda assim com uma desconfiança que não é paranóia porque se esteve para lá dos truques da autocracia chinesa; e a verdade é que Xi Jinping foi negando até a pura brutalidade e granítica resistência do Comité Central ter chocado de frente com algo que nem a sua soberba humilde pode dominar: a natureza invisível. Em duas semanas, uma das províncias do país brotou uma doença respiratória que nos dias seguintes se espalhou pelo mundo, tendo matado, no dia em que escrevo, mais de cento e cinquenta mil pessoas. Numa reacção previsível, a China perseguiu os médicos que alertaram com tempo, depois agiu. De forma célere e brutal. Fechou todos os cidadãos em casa e colocou penas de prisão pesadas sob a cabeça dos prevaricadores. A economia contraiu e o dragão chinês, que dias antes rugia de poderoso com as patas dominando o mundo, via a sua economia contrair ao tamanho de uma gruta de Bezem Klik. Por várias vezes tentou afrouxar as medidas de confinamento, apenas para ver o bicho ressurgir em grande força, em grande estilo. A máquina repressora via-se ultrapassada por um inimigo indomável, como uma praga vinda dos confins da raiva dos uigures, conjurada algures numa banda do mercado de Kashgar e lançada à China Oriental da etnia Han dominante, a mesma China que os persegue e às restantes minorias, com uma arma que não distingue ninguém. Actualmente, decorre uma tentativa de reabrir o país. Toda a gente caminha de máscara, controlado pelo telemóvel - com de costume, o instrumento de submissão preferido dos chineses - constantemente abordados pela Polícia e pelo Exército. Quando cheguei em Agosto, pude assistir à maneira como uma pequena parte do país suportava esta ignomínia todos os dias, perante uma cegueira geral e falta de queixa. Hoje, todos os chineses sabem o que é viver, de facto, apertados contra uma parede e tratados como criminosos apenas por presunção. Como algo tão minúsculo se tratou se colocar um país no lugar.<br />
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Estes epílogos costumam ser textos mais curtos onde reflicto sobre o que vi e o que aprendi. Sobre pessoas e lugares, sobre mundos tão fora do meu e que mesmo apanhando-me na curva da melancolia ou pior ainda, me impelem sempre a voltar, ano após ano, à arena da viagem. Em 2020, é pouco provável que consiga sair daqui, com tudo adiado para 2021, na melhor das hipóteses. Mas não há grande lições a tirar deste périplo pela China a não ser as que já registei. A experiência da opressão vista de fora, a multidão de línguas e rituais diferentes, sítios que só se explicam na luz do olhar que brilha quando os contempla, a força de sentar e assistir, pensar, guardar. Começo a pensar que viajar não é muito mais do que isso, uma tradução mal feita da linguagem do espanto. Que nem as fotografias, tenho pensado nisso, conseguem contornar. Tenho pena dos anos em que fugi do mundo, percebo agora bem que não se vive em páginas ou em ecrãs. Pelo menos, não se vive o que não podemos ser durante os dias. Numa confabulação tão fora daquelas que concebo na minha cabeça, estas Chinas que vi guardam-se numa caixa de memória, que desperta sempre que ouço o nome ou vejo os protestos em Hong-Kong, filas de doentes em Wuhan, a silhueta de Tony Leung e Maggie Cheung em "In the mood for love". Percebo o que as notícias não dizem e mostram. Não é ser especialista é intuir na experiência o que ficou por falar. A viagem tem-me ensinado coisas que nem pensei aprender e só vos posso transmitir nestas crónicas, por vezes escondido, por vezes ao arrasto daquilo que me atormenta e acaba por passar. Obrigado a quem as acompanhou todas as semanas, escrevo isto para mim, mas são vocês quem acaba por usufruir e no fundo arrebanhar a sua propriedade. No momento em que as publico, são vossas. Como todas as minhas viagens acabam por ser, e como a próxima também a será. Porque decerto, para lá de toda esta prisão, iremos fazê-la juntos. Eu, vocês... e os meus demónios também.Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-747071549173997582020-04-16T20:34:00.004+02:002020-04-16T22:59:11.134+02:00Fachinaçao 26: Quantos queres?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
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Localizado na zona Leste de Pequim, o Mercado de Antiguidades, conhecido no idioma local como "Panjiuayan" é um perfeito microcosmos de uma China que nem um estado repressivo e vigilante consegue dobrar. Porque encarna toda a anarquia que só pode existir num país com mais de um bilião de pessoas. É um espaço enorme, dividido em cinco parte bem distintas, longas ruas, algumas estreitas e outras bem espaçosas, mas com uma coisa em comum: tudo se vende; e quando digo tudo, estou lá perto. Só não vi pessoas e animais ao desafio dos saldos, e mesmo assim não garanto que não existisse, algures debaixo dos meus pés, uma sexta galeria subterrânea. De resto, se puderem pensar numa coisa, ela existia no Mercado. A confusão e a flexibilidade das regras é tal que é conhecido por um outro nome mais coloquial: o Mercado Sujo. Não porque seja particularmente perigoso ou dominado pelo crime; apenas porque tudo se negoceia com jeitinho e preço visto não será necessariamente preço pago. É algo que se vai descobrindo nesta Pequim mais próximas das pessoas e que se entende uma certa filosofia de trabalho que traria alegria aos patrões portugueses e horror aos empregados. A ideia de ganhar dinheiro é importante e se tivermos de fazer compromissos para isso, por muito que esses compromissos sejam contra-intuitivos, o Chinês acha justificável. Na noite anterior, enquanto deambulávamos por uma zona de restauração nocturna, vi a placa de um restaurante aberto vinte e quatro horas por dia - não para <i>take away</i>, mas para refeições em mesa mesmo. Oferecia também espectáculos de tango ao vivo duas vezes ao dia. Está-lhes no sangue. Já aqui vos falei da antiguidade das Rotas da Seda, brotando de Pequim para florir por toda a Ásia rumo à Europa, do quanto o comércio faz parte sanguínea da vida destes povos de tão longe de nós. Não com salamaleques, mas resolvido numa simples conversa, na diplomacia de uma gargalhada, na simpatia imediata criada com duas piadas. Nestes quarenta e oito mil e quinhentos metros quadrados, negoceiam habitualmente mais de dez mil pessoas, divididas em quatro mil lojas ou bancas. Calcula-se que ao fim de semana, a altura em que se fervilha com mais vontade no espaço, por volta de setenta mil clientes e curiosos passeiem os seus olhos pelo que se oferece à vista a troco de uns yuans se desejamos possuir. Desde, dez mil são estrangeiros. Como nós; ou como Hillary Clintom que chegou a visitar este mercado numa visita oficial quando era Secretária de Estado norte-americana. O mais curioso é que apesar da sua fama e tamanho, começou em 1992 como um ajuntamento espontâneo de vendilhões à beira da estrada que passa defronte da entrada principal. Com o tempo, mais pessoas traziam os seus sacos e caixotes, com artesanato, quinquilharia e raridades, preservando a cultura popular chinesa numa capital cada vez mais a virar-se para o betão, o cosmopolitismo e uma certa ideia tacanha de progresso. Era como se ali, entre regateios e pregões, entre apertos de mão que valem mais do que PIN de cartões e notas e moedas que saem facilmente das carteiras quando seduzidas por uma boa proposta, estivesse o que é de facto o país. Eu vi muito nestes quinze dias, muitas facetas do que é ser chinês e as encruzilhadas em que a China se encontra numa geografia multicultural que não pode ser totalmente eliminada, por muito que seja o esforço. Mas aqui, sinto um pouco daquilo que é o espírito desta gente, não de simplicidade, mas de um pragmatismo quase frio, mas simpático. Quando me começo a perder entre berros e olhares convidativos, atirando o meu para a mercadoria, é que começo a encontrar uma China mais autêntica.<br />
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O que podemos aqui encontrar? Ora, o Mercado divide-se em cinco zonas principais. Logo à entrada, concentra-se uma série de bancas que vende exclusivamente ícones e estatuária budista. Se tiverem sorte, ainda apanham algum artífice a trabalhar numa. Algumas cabem num bolso, outras precisam de um guindaste e uma carrinha de caixa aberta para ser retiradas. Horas mais tarde, já à saída, passo no mesmo local. Uma estátua de Buda, quase da minha altura, está a ser carregada para um camião com a ajuda de uma empilhadora. Dá para entender porque esta zona fica ao ar livre, sem coberturas. Logo de seguida, dentro de um edifício de betão de dois andares, situam-se as lojas que vem mobília antiga e <i>vintage</i>. Não chego a entrar, porque para mono, sinceramente, basto-me eu; e ainda que o voo para Portugal seja com a Lufthansa, a sua política de bagagem é ainda assim apertada. Mas dou uma olhada para o interior do primeiro andar. Uma das lojas anuncia exemplares mobilários do tempo da Revolução Cultural chinesa, o que os torna, desde logo, sobreviventes natos. Numa terceira zona, que atravesso com algum vagar, alfarrabistas tentam-nos com livros antigos. Oferece-se um manancial quase sem paragem de propaganda comunista que vai até aos tempos de Mao. Seguro nas mãos um exemplar do famoso "Caderno Vermelho", escrito pela luminária principal do comunismo chinês, datado de 1953, quatro anos após a Revolução Chinesa. Espalhados por outras bancas, ha´romances policiais censurados, bandas desenhadas contando as vidas de heróis comunistas, versões chinesas de clássicos ocidentais, como as peças de Shakespeare ou "Os três mosqueteiros" de Dumas, e também exemplares de jornais, calendários curiosos, pinturas tradicionais chinesas e cartazes de propaganda. É também numa banca em particular que encontro das coisas mais bizarras que vi à venda: baralhos de cartas temáticos e bastante politicamente correctos. Mais atrevidos até do que aqueles que envergam desnudas mulheres Um, por exemplo, representa uma alta figura do Partido Nazi em cada uma das suas faces. O Rei de Espadas é Himmler. O de Copas Goering. Cepo como era, claro que o amigo Adolfo tinha de ser o Rei de Paus, com Eva Braun a acompanhá-lo no naipe. Talvez os Chineses não vilanizem tanto o ex-Fuhrer porque afinal, o Holocausto fica-lhes tão distante quanto a nós o Grande Salto em Frente. Se há comunistas em Portugal convencidos das qualidades de Estaline e Mao, não podes estes amigos chineses ser igualmente ignorantes em relação ao ditador de bigode ridículo? Mas há mais até: naipes com líderes comunistas estrangeiros, de Trotsky a Tito; um apenas dedicado a OVNI; diferentes pratos de cozinha chinesa; vegetais coloridos; representações várias de dragões; pin-ups da década de 50; cartazes da boémia Paris do século XIX; e o pináculo de bom gosto de que é uma história ilustrada dos atentados de onze de Setembro de 2001 contada com estrutura irrepreensível. No naipe de Copas, o horror das imagens da tragédias, prédios em ruínas, a famosa foto do homem que salta de cabeça para baixo; no naipe de paus, a vida do mentor deste ataque, Osama Bin Laden, desde um ladino riquinho das Arábias até à assunção completa como barbudo terrorista e mentor de terroristas; no de Ouros; a reacção norte-americana: a guerra do Iraque, o Afeganistão a ferro e fogo, o Patriot Act, Dick Cheney quase fazendo de conta de tipo porreiro; no naipe final, o de Paus, a famosa operação que executou Bin Laden, sem a participação de Kathryn Bigelow. Mais à frente, noutra loja, encontramos uma variante de cartas com o triplo do tamanho e imagens diferentes. Na verdade, depois desta zona, quase acredito poder encontrar as próprias bolas do dragão algures debaixo de um pano vermelho numa banca. Não me surpreendo.<br />
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A quarta secção do Mercado Sujo é também a maior, de longe. É a do Meio e consiste, basicamente, num salve-se quem puder de produtos. Em contentores ou simples mesas, expõe-se joalharia. pinturas chinesas, caligrafias artísticas, jade, contas de plástico e de pedra, produtos em bronze, vasos de cerâmica, mobiliário de madeira pequeno, arte tradicional chinesa, arte tradicional tibetana, molduras, bijuteria, cerâmicas várias, álcool proibido, pinturas celebratórias do Ano Novo Chinês de Yangquling, escultura em madeira de Quyang, cristais de Jiangxi,... Ninguém sabe bem o que é falso ou autêntico. Pode ser apenas uma arca de tesouros infindável ou simplesmente o Evereste da falsificação. Só posso reportar o que vi por ali, no meio de tanta gente. Peçam-me para assegurar autenticidades e é impossível. Não levei uma lupa para ler as letrinhas miúdas de cada artigo. Comprei algumas coisas, claro, mas pela pura curiosidade de levar para casa produtos chineses comprados na China... A surpresa maior, no entanto, encontrei-a na última secção deste labirinto. Mesmo no seu centro, um outro edifício de dois andares passa despercebido pela sua falta de personalidade. No entanto, aqui se encontram as lojas mais selectas, onde os produtos trazem certificados de autenticidade, mas também preços exorbitantes. Entro com o Zé Luís e encontramos dois garotos a brincar aos cowboys. Tendo em conta os papel destes na exploração de culturas nativas, não posso deixar apropriado. Damos uma volta rápida no rés do chão A maior parte das lojas vende móveis, tecidos dourados, objectos brilhantes. Nada que nos interesse. Subindo ao primeiro andar, recebem-nos dois enormes bustos. Um é de Lenine. Outro de Mao. Dois ícones vermelhos, dois filhos da mesma mãe comunista, separados por quilómetros de distância e a ânsia de serem os únicos galos na Revolução mundial. Fotografo-os, aproveitando o jogo de reflexos das caixas que os tapam. Enquanto caminhamos nos corredores, encontramos uma loja que vende exclusivamente os mesmos baralhos de cartas que encontrámos na secção dos alfarrabistas. Existem outros sobre tragédias várias e temas ainda mais questionáveis (Chernobyl anda por lá, Hiroshima também. Penso ter visto outro sobre cenas de chacina e morte generalizada, mas pode ser a minha memória deixando-se levar pelo mau gosto). Infelizmente, está fechada. A desilusão insufla ambos e carregamos as nossas penas pelo resto do andar. É para lá de uma porta sem grande fanfarra, no entanto, que nos confrontamos com algo impensável. O interior desarrumado rodeia um homem calvo, bigode de Fu Manchu, que passa o tempo em torno de uma fumarada de nicotina. O som pálido de música tradicional chinesa não deixa a sala sem perguntas ou respostas. Mas em primeiro plano, muito perto de nós, um manequim inexpressivo enverga um uniforme militar. As calças são pretas e estão curtidas, gastas, mas limpas. A camisa, verdade, cobre-se de algumas insígnias, a maior parte preta ou branca, grande, mas não espampanantes. Nos colarinhos, inscrições em alemão que não consigo traduzir nas minhas limitações. Na cabeça do manequim, um capacete negro, de ferro, pesado. Vejo a águia emplumada; vejo a cruz gamada negra; botas de cabedal; colarinho branco debruado a negro. Olhamos um para o outro: é uma farda da Wermacht, a infantaria nazi, do tempo da Segunda Guerra Mundial. Não sabemos se é autêntico, mas... se for falsificação, está muito bem feita. Tem os pormenores todinhos, inclusive alguns mais específicos, de divisões de elite deste corpo do exército germânico. Por curiosidade, abordamos o dono da loja. Perguntamos onde arranjou aquilo. Fixa-nos inexpressivamente durante uns segundos e abana a cabeça. Não revelará. Quanto é? Aponta num papelinho: 300.000 yuan. Mesmo depois de desaparecidos, os verdadeiros nazis continuam a fazer razia. No caminho para a saída, continuo a perguntar-me acerca da tortuosa rota que levou aquela relíquia até Pequim. Os Nazis não combateram para estes lados, que eu saiba. Algum coleccionador? E que público haverá na China por este tipo de artigo? O Mercado Sujo, no entanto, continua a guardar os seus segredos.<br />
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O dia estava mesmo reservado para consumir. À tarde, damos por nós no Silk Road Market, um centro comercial gigantone de quase vinte andares prestação de serviços de compra e venda. De certa forma, é uma modernização do Mercado Sujo onde deambulei de amanhã. Os produtos também estão organizados e separados, mas aqui por andares; o negócio faz-se depois de muita conversa, mas sem apertos de mãos, só dinheiro na mão; e também podemos encontrar de tudo - com um bocadinho de esforço, se me dispusesse a vender um dos meus rins, tenho a certeza de que acharia comprador e intermediário. Os homens estão completamente virados para a relojoaria e electrónica e ambas as secções de localizam no nono andar. A porta do elevador abre-se e quando olho, há um longo corredor apenas com lojas de relógios. Mal a campainha de chegada soa, cabeças espreitam pelas portas das lojas. Está iniciada uma batida aos nossos yuans. Quando percebem que somos ocidentais, o frenesim da excitação aumenta exponencialmente. Um pouco como se um virgem adolescente desse por si trancado no vestíbulo de um desfile de modelos. Os convites chovem logo, querem convidar-me e levar-me a passear, algo que não estou sinceramente habituado. Entro logo na primeira loja que surge, mas mais como observador. Deixo outros viajantes mais experimentados na descodificação das regras do negócio. Não é muito complicado. Todos os lojistas falam um inglês aceitável e a primeira abordagem é clara. Um elogio lato, um comentário engraçado, pergunta acerca de onde somos. Invariavelmente, a reacção é "Ronaldo", mas lembro-me de um ter dito "Pena terem vindo embora de Macau, os portugueses de lá são todos muito simpáticos". Salamaleques feitos, sob a luz forte das montras, o primeiro passo é dado: quer um relógio? Diga a marca. Imaginem que desejam Montblanc. Sem problema ou hesitação, uma pesada e volumosa mala de metal surge que vinda da Terra Média em expresso Gandalf. A tampa dá de si e no interior, dezenas de caixas. Em cada uma, um relógio. Podem ser originais ou réplicas, é um bocadinho como no Mercado. Mas uma pessoa não está aqui ao engano. Sabe bem que esta é uma lotaria com pouco de aleatório e que muito provavelmente, as imitações reinam supremas. Podemos experimentar. Revelo já que não uso relógio. Na verdade, estou aqui em missão abnegada. Venho em compras. Para o meu irmão, principalmente, amante de relógios. Eu não gosto de lhes sentir a presença no pulso, tornam o tempo numa espécie de prisão acorrentada que consigo sentir sem ter pedido licença. Mas o rapaz ainda por cima desejou-me para padrinho do que de mais importante há vida dele, merece. Quando o jovial homem me aborda, procurando um cliente, finjo que sei muito do assunto. Digo a primeira marca que me vem à cabeça: Omega. O <i>product placement </i>em filmes resulta de facto. James Bond como macho Alfa e Ómega. Numa olhada, naquela arquinha metálica com pega, encontro um relógio negro, com mostrador azul, ponteiros brilhantes. Apela-me. Não sei se ao meu irmão, mas se ele quiser trocar, até lhe dou a morada do centro comercial. Olho para o Zé Luís, que tem muito menos piedade e escrúpulos do que eu. Sei o que se segue, aquele jogo que os asiáticos tanto disputam e que pode cair para qualquer lado: regatear. É um jogo para o qual pessoas como ele nasceram, pessoas cujos escrúpulos seleccionáveis não incluem agiotas e especuladores. Deixo a coisa nas mãos dele. O preço inicial é mil e duzentos yuan. Isto atira para os cento e cinquenta euros, algo que não estou disposto a gastar. Sei que sou professor, milionário nascido, mas não. O regateio é uma operação cínica. Acontece, porque ambos sabemos que o verdadeiro valor do objecto não é o preço estabelecido. Muito menos aquele que estou disposto a dar por ele. Mas o relógio deve ser despachado. Por isso, há mortais encarpados e <i>flik-flaks</i> à retaguarda naquilo que cada uma das partes está disposta a ceder. O truque é perceber as linhas do desespero, até onde podem ser esticadas e dobradas. As deste homem tinem sonoramente quando se chega aos quatrocentos yuan. Um desconto de mais de 50%. O argumento derradeiro até é dado por mim. Explico-lhe que ele pode ter um cliente que paga mil e duzentos, ou seis a pagarem várias vezes quinhentos ou seiscentos. Porque ao beneficiar-me, entra no goto dos meus amigos, explico; e os meus amigos tornam-se seus amigos. Pensativo, meditabundo, olha para o tecto; e cede. Cumpro a minha parte, encaminhando os restantes portugueses para ele, no meio de tantas lojas. Alguns levam três, quatro relógios. Não me sinto mal com a implacabilidade de regatear. Naquela tarde, estou certo de que o lojista ganhou o dia.<br />
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Ainda há espaço para despachar mais prendas, incluindo uma para a minha cunhada e uns tecidos de seda que a minha mãe me encomendou propositadamente. Isto junto a uma loja chamada Earhub, com um logotipo bem semelhante a um conhecido site de conteúdo visual mais arriscado. Já tenho tudo, penso. Falta-me uma prenda para alguém, mas não encontrei algo de que gostasse. Reencontramo-nos todos no rés do chão. A linha dezasseis do metro levar-nos-á para o centro de Pequim, onde terminaremos o dia jantando. Na saída, passamos junto a uma foto onde um grupo de jovens chinesas rodeia um bonacheirão sorridente, com ar patusco, que não é mais que o antigo mayor de Londres Boris Johnson. Aconteceu numa visita onde este ilustre homem de visão foi beber dos Chineses e da sua experiência olímpica de 2008, mesmo a tempo de Londres 2012. Os políticos chineses, de facto, não têm quaisquer problemas morais. Boris também não: estão bem um para o outro. Mesmo em frente à foto, há, claro, mais um banca de bugigangas. Claro que há. O dia foi tirado para isto. Atrás de uns bonecos, vejo um globo de neve Um acaso feliz, Tinhas-me pedido um, se a encontrasse. Que adoravas a redoma dos globos, isolando um pequeno mundo na sua calma e placidez, de como quem vive nele não é afectado por nada, mesmo nada do exterior. Várias vezes fazíamos piadas sobre o nosso pequeno planeta surgir quando nos juntávamos, quando o resto da realidade sumia por um buraco negro e sobrávamos nós, muitas vezes abraçados, muitas vezes anichados um no outro, sempre de mão dada, sempre acima de tudo e abaixo da nossa própria fatalidade quando existimos. Compro o globo e guardo-o. A intenção era dar-to, mas enquanto arranjo estas letras como substituto daquela dor que nos transforma em gelatina, continua lá em baixo, numa gaveta. Guardado, a prémio. À espera que por uma vez acabe o regateio. É teu, não preciso dele. Espera-te, mesmo quando não me esperas. Veio de um ponto da terra onde os beijos que dou no ar são para ti, onde à noite consegues ser o último fumo do meu estado de vigília, onde vais comigo sem presença. É o teu globo, a tua redoma. Não sei se o nosso planeta, mas está cheio de estrelas. Parte delas feitas de um sal que só nos meus olhos se esconde.Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-7590173510174180582020-04-09T18:14:00.000+02:002020-04-10T15:13:33.024+02:00Fachinação 25 - A Grande Muralha da China<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi5NxtvKdHPBKsUBsQXNSGCwuB0fjYsFKe92xGb7H_9viWkl2OFkUW0kpJWs5iS6rUNS4RaWbfJIJQ8sdabVRxUSBaZhZAA36cDIB0XypDk1zyEp0at5YeE0XCZY08-EFzDEk-I/s1600/DSC_0385+-+PB.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1065" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi5NxtvKdHPBKsUBsQXNSGCwuB0fjYsFKe92xGb7H_9viWkl2OFkUW0kpJWs5iS6rUNS4RaWbfJIJQ8sdabVRxUSBaZhZAA36cDIB0XypDk1zyEp0at5YeE0XCZY08-EFzDEk-I/s320/DSC_0385+-+PB.jpg" width="320" /></a></div>
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Escrevo isto uns bons meses depois de visitar a Muralha da China, mas enquanto procurava as palavras do começo de texto, só me conseguia lembrar da manhã em que me sentei em pedras andinas para ver nascer o Sol sobre Macchu Pichu. Não sei se por gostar mesmo de História, mas para mim as pedras não são pedras. Vejo-as sempre como feltro do tempo. As coisas acontecem ali em redor, muitas vezes contra elas, sangue e pele, espadas e alfaias agrícolas, toda a curva de uma alegria ou recta infinita da decadência. Às vezes penso que abrindo uma, de uma maneira específica, num encantamento particular, tudo isso fica a descoberto e descobrimos que as pedras gravam tudo. Que a História se pode ver como um filme. Existem parapsicólogos teorizando sobre essa possibilidade para fantasmas, que não são mais do que uma mera repetição de eventos, momentos e comportamentos de séculos anteriores. Enquanto a luz solar desvendava as frinchas rochosas daquelas casas antigas, da montanha que protagoniza postais e fotos de epifanias bacocas de <i>influencers</i>, a minha mente tentou imaginar como seria tudo aquilo com Incas; e não me acontece em todos os locais antigos que visito. Há alguns que puxam essa fuga ao presente e à realidade que se aceita, como se a sua simples construção evocasse qualquer ponto indefinível a partir do qual nascem realidades. Sim, soa a delírio, mas só entende quem se abre aos lugares e aos espaços que não morrem, só se renovam. Pensei muito em Macchu Pichu dentro da camioneta que nos levou para fora de Pequim naquele dia em que pude riscar mais um cliché turístico do meu caderninho: a Grande Muralha. Habitualmente, quando na China e entregando-se nas mãos de companhias turísticas o turista é levado a Badaling, o pedacinho da Muralha mais próximo da capital chinesa. Torna-se mais barato e prático, mas estraga fotografias: a imagem de um longo rebanho humano calcando pedras desse caminho empedrado e muralhado é o ideal para quem quer dar por mal empregue o tempo e dinheiro gasto a vir à China para ganhar o direito a poder dizer depois aos amigos que a Muralha é espectacular/nada de especial/ya, é fixe. Apesar de ter aprendido, com os anos, a apreciar um pouco do contacto com pessoas em países que visito, ainda mantenho a ideia de que o mundo é uma coisa bem gira e o que o estraga são as multidões. A experiência humana é gira, mas às gotas. Trazemos histórias bem engraçadas, mas demasiada perde a piada. Felizmente que o guia da viagem, o Zé Luís, mesmo gostando bem mais de gente do que eu, também é um purista da bela imagem solitária de um local icónico. Como tal, vamos em rota para Jinshanling, duas horas a Norte. Tem tudo o que a Muralha pode oferecer, desde muros, muralhas e muralhitas, ameias e torreões, postos de vigia e degraus. Ficando mais distante de Pequim, a esperança é que seja lembrada e visitada por muito menos povo. Daquele de turistas chatos. Pude fotografar uma Macchu Pichu deserta, sem ninguém. Espero a mesma oportunidade no outro lado do mundo, numa imagem que tem muito mítico, de maneira literal.<br />
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O mito maior é a de ser visível a partir da Lua. Já o ouvi tantas vezes que quase parece facto científico. O curioso é que a sua origem vem do século XVIII; quando William Stukeley, um antiquário britânico, que ao comparar a Muralha de Adriano à sua bem mais imponente congénere chinesa, comentou que a do Oriente era superior e tal era atestada pelo facto de poder ser vista a partir do nosso satélite natural. Calculo que seja fácil concluir o ridículo da afirmação feita numa altura onde não só o Homem não tinha colocado os pés na Lua, como por alguém que não tinha feito nem sequer a muralha toda, nem se lhe conhece qualquer visita ao Extremo Oriente... A partir daí, surgiu a crença e foi repetida por todos o tipo de viajantes de cadeirão até à famosa colectânea de bizarrias "Ripley's Believe it or not". Já foi desmentida várias vezes pela NASA; mas aparece sempre, vinda dos confins da ilógica. Repare-se que apesar da sua extensão, a imponência da Grande Muralha é igualada por várias construções no planeta, como as Pirâmides por exemplo, ou o Taj Mahal. OU Chichen Itza. Ou Angkor Wat. Sobre nenhuma delas é alegada tal coisa. Mas nós somos a civilização científica que um dia acreditou que Marte tinha canais e isso era um sinal de vida inteligente no planeta vermelho, logo... Dito assim não parece estapafúrdio. No entanto, isto revela o quanto é insofismável a existência de uma construção tão gargantuana quanto esta. Repare-se que estamos perante algo que se estende por mais de vinte um mil quilómetros. Mas a Muralha, em sim, não existe. Porque aquilo que conhecemos por esse nome é um conjunto de várias fortificações diferentes, construídas em diferentes alturas da História chinesa, e que foram sendo somadas umas às outras. Foi a ameaça dos povos nómadas das estepes, o local de onde viria a ameaça dos Hunos e mais tarde os Mongóis, que levou a esta decisão. O século VII A.C viu a primeira fase de construção inicial e no terceiro século após o nascimento de Cristo, o primeiro imperador da China, Qin Shin Huang, uniu os vários pedaços numa muralha única. Mas quase nada existe desta fase inicial. Os pedaços mais conhecidos e visitados actualmente são da dinastia Ming, entre os séculos XIV e XVI. Pelo meio, outras dinastias expandiram a Muralha até à dimensão que conhecemos hoje. Jinshanling é uma dessas porções. Data de 1368, erguida sob o comando de Qi Jiguang, um famoso general do tempo Ming. Existem aqui sessenta e sete torres de vigia, três torres farol, onde eram colocados grandes fogueiras para servirem de referência à distância - um pouco como os marcos geodésicos hoje funcionam para o mapeamento militar - e cinco entradas. Tudo isto em dez quilómetros e meio, a setecentos metros de altitude. E alguém teve de fazê-lo. Ao contrário de Macchu Pichu, onde o que confunde é a motivação de construir uma cidade num local tão deslocado e ermo - e só percebemos de facto o quanto isso perplexa quando percorremos a estrada que lhe dá acesso, uma linha elástica sussurrante ao contornar uma montanha que atinge praticamente os dois mil e quinhentos metros de altitude - o que me fascinava na Grande Muralha era a pura força bruta do tamanho e da extensão, da quantidade de homens que aqui deixaram o couro e a vida só para erguer defesas. É algo que só pode acontecer quando uma nação tem gente para queimar. Um pouco como a União Soviética e as suas grandes obras, também a China é um colosso suportado por esqueletos e morte. A população tem sempre um aspecto fundamental na história dos países. Portugal, por exemplo, nunca tece de facto um império colonial, ao contrário do que gostava de propagandear, simplesmente porque não possuía gente suficiente para controlá-lo. Daí ter construído apenas pequenas cidades ou fortalezas que serviam propósitos comerciais. Uma área ocupando quatro continentes, mas presa por arames. A China, na sua imensa extensão e população farta, é pelo contrário uma cornucópia de braços de trabalho e carne para canhão. Pessoas não só problema nem obstáculo para ideias. Não sei se haveria um método mais eficaz de evitar invasões. Repare-se que os Romanos, como disse em cima, experimentaram a mesma táctica nas Ilhas Britânicas com a Muralha de Adriano. Esta media, e mede ainda hoje, 120 quilómetros. Ora, isto é um vigésimo do que os Chineses fizeram, embora num período de tempo maior. Já expliquei que não sou muito de clichés turísticos, mas em dois anos seguidos, visito igual número; e este acaba por ser uma excepção porque o interesse é puramente egoísta: quero, de facto, perceber o quão esmagadora é esta construção.<br />
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Uma vez chegados ao parque de estacionamento, a primeira surpresa é ver zero pessoas. Nenhuma fila de turistas, nenhum magote de fotógrafos de pacotilha irritantes. O centro de visitantes está também deserto e é aqui que esperamos pelos bilhetes. Subimos uma pequena estrada e perante a hora, meio dia e meia, decidimos que o melhor é almoçar qualquer coisa. Numa lanchonete à beira do caminho, pintada de cores garridas, como um dos piores hambúrguer da minha vida; acho que é a última vez que me queixo da comida chinesa. A carne é verdadeira comida de plástico, os molhos um cruzamento dentre uma facada no esterno e um armadilho imitando Maria Callas. Bebo água para empurrar, mas só piora. No entanto, e esta é a experiência de outros dias muito longos em viagem, o importante é ter energia no corpo. Não sei como será o terreno, nem a distância. Já tive o azar de levar a chamada martelada - quando o corpo desliga sem energia e só queremos, basicamente, que nos puxem com um guindaste - e não é algo que me apeteça repetir. Ainda para mais, numa Maravilha Moderna do Mundo (trademark). Portanto mordo a bala que é este hambúrguer, o que é uma comparação apropriada porque sinto que eventualmente me matará. Que estarei daqui a vinte anos numa condição física óptima, mas repente tenho um ataque súbito e é esta coisa que como a malhar com pouca misericórdia. Neste intervalinho sentado, noto duas coisas importantes. Em primeiro, uma magnífica dor de costas com quem me deitei ontem à noite assume contornos de esplendor. Talvez tenha sido do belo prato de camarões micro que comemos de entrada numa espécie de tasco oriental, existe dúvida; mas a certeza é de que me substituíram as vértebras por cutelos. A segunda é que uma infecção num dedo também promete brilhar a grande altura na sua vermelhidão. Nota-se mais quando pego na mochila. Torna-se óbvia quando seguro a máquina. Não é como se fosse passar as próximas quatro horas de mochila às costas a fotografar. O que quer dizer que não me deverá incomodar... Penso nisso enquanto um teleférico nos leva à entrada desta secção da muralha. A viagem ainda dura quase dez minutos, tempo suficiente para contemplar o longo planalto, as montanhas em redor, um tapete calafetado a verde lá no fundo. À medida que a altitude sobre, tornam-se evidentes os primeiros sinais de fortaleza. Pequenos torreões lá ao fundo, como se fossem topos de montanha, uma cintura castanha a uni-los por entre o verde. Vê-se ao longe, mas é claro. Quando chegamos ao ponto mais alto, surge à frente uma enorme torre de vigia. Ao sair, permito-me uma perspectiva em todo o redor e no raio de quilómetros para a minha esquerda e para a minha direita, a linha muralhada continua, intervalada por torres maiores e mais pequenas, postos de vigia. Desafia a mente descrever... o espanto da enormidade do que vejo. Quando olho para a esquerda, em direcção a Leste, consigo distinguir, baças, fortificações a uns cinquenta quilómetros de distância. Portanto, ela continua e segue por um longo, longo caminho. Subo a escadaria da torre, em três lances de degraus e não demoro a chegar ao caminho principal. Boné ajeitado, máquina pronta, dores que vêm comigo e a jornada pode começar. Num dos tijolos que fazem de chão, há caracteres desenhados, em chinês. Não sei se recentes, não sei se filhos da poeira de séculos. Mas quero imaginar que em noites frias, em tardes de tédio e de espera, um soldado se entreteve a rabiscar suspiros da demora na forma de traços.<br />
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A primeira noção a ter é a de que apesar dos restauros e da conservação, isto é uma construção que dura há mais de dois milénios. Tem personalidade. Não é como boa parte dos castelos portugueses, que tão recauchutados durante o Estado Novo que o Tempo não passou por eles, que as suas muralhas jamais presenciaram mortes ou batalhas. A Muralha está estragada. Faltam-lhe tijolos nas paredes, blocos no caminho. Existem muito mais buracos do que os que se vêem nas fotos; e embora todas as torres pareçam iguais, a passagem dos minutos e a experiência da visita ensinam as diferenças. As mais importantes e maiores são encimadas por pagodes. A maior tem dez metros de altura e é conhecida como a Torre do General. São três andares com funções diferentes. No topo, o dormitório de soldados. Enterrado nas entranhas da muralha, o depósito de armamento. Entre os dois, as janelas que oferecem a vigia. Quando tocava a rebate, daqui corriam os soldados. Um dos mistérios maiores, para mim que visito, rodeia os adversários. Porque uma mirada muito rápida pelas condições de terreno gera em mim a certeza de que só um bando de alucinados escolheria este ponto específico para atacar. As encostas montanhosas são escarpadas e praticamente impossíveis de trilhar. Não consigo entender como é que qualquer general optaria por uma estratégia quase suicida de para entrar em território chinês usando uma via intrasitável. Bem sei que Aníbal tentou conquistar Roma pelos Alpes, mas isso acaba por ser uma brincadeira de Sumérios em comparação. O nosso guia é um chinês que, maravilha, fala a nossa lusa língua. Na verdade, é um especialista no nosso país. A companhia para a qual trabalha organiza pacotes turísticos internacionais e a sua área é a Península Ibérica. Conhece Lisboa e o Alentejo, Coimbra e o Porto - algo pelo qual lhe quero dar os pêsames, mas travo-me a tempo - e por isso domina o idioma. Ouço as explicações iniciais mas rapidamente percebo que a acção e o interesse estão longe dali. Com o tempo, sinto boa parte do grupo a ficar para trás, em parte também pela destreza física diferente de cada um, e dou por mim acompanhado apenas de Mário, comendador máximo de Fronteira, e Tiago, conde maior da advocacia. Volta e meia trocamos umas piadas e uns comentários, mas na maior parte do tempo, cada um existe no seu mundo de contemplação. Cruzamo-nos com uma quantidade anormal de turistas italianos, mas falando com alguns pelo caminho, entendemos que são um grupo de meditação que procuram a auto-descoberta aqui longe. Depois de no ano anterior ter apreciado a mesma pandilha nas terras peruanas, apanho-a agora aqui, no lado oposto do planeta. Parece que a auto-descoberta está em todos os locais, excepto aqueles perto de onde vivemos. O que é espantoso. Caminhar na Muralha é uma mistura de aula de <i>cardio</i> e <i>body pump</i>, porque um outro mito que tenho de desmentir é da planura do caminho. Vai em altos e baixos, grandes declives a pique. A certo ponto questiono-me, e fico a olhar bem antes de me estragar numa ladeira sem degraus que com uns trezentos metros, como é que os soldados corriam de um lado para o outro nestas condições em casa de ataque. Eu levo apenas a mina mochila e uma máquina fotográfica. Eles carregavam dezenas de quilos de armadura e armamento. Hoje está sol temperatura amena, um dia espectacular; mas imagino nas estações frias, aqui em montanha, quando o metal se torna mais frio do que o próprio gelo. Ser enviado para tarefas na Muralha devia ser um castigo dentro do exército. Menor castigo é o momento em que, perante um lance de degraus mais íngreme, uma jovem italiana que caminha à minha frente aproveita uma escorregadela para assentar o seu fofo rabo em primeiro na minha cara, depois nas minhas mãos. Não planeava que alguma moça se atirasse a mim tão longe da minha terra, mas a vida é feita de surpresas.<br />
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Demoro quatro horas e meia no passeio. Tiro uma enormidade de fotos, mas não conseguem substituir o que os olhos guardam. Aquilo em que ainda penso quando escrevo isto. A visão de uma longa sela sob montanhas que nada mais são do que dorsos de cavalos rochosos. A impressão esmagadora de me encontrar numa torre e conseguir mais dez, quinze, vinte estendendo-se para bem longe é algo que não pode abandonar a memória de quem quer viver os momentos onde está. Onde existe. Há locais onde é céu parece ser mais real e o mundo um bocadinho mais do que cores e formas a que o nosso cérebro dá ordem para não se perder. Quero se transcendente, mas a certa altura não dá mesmo. Perante o riso de duas mulheres, um riso histérico e exagerado, mui nobre comendador Mário lança para os seus amigos portugueses uma imortal frase: "Ri-te ri-te, menina, que quando souberes que a vaselina tem areia até choras". Segundos mais tarde, descobrimos que são brasileiras ao falarem connosco e Mário não consegue confrontar condignamente a sua falha. Sâo ambas do Rio Grande do Sul e também se espantam, como eu, que no meio de tantos milhões e de tantos quilómetros, se tenham cruzado com quem partilha o mesmo idioma. O Mário também, mas não exactamente pelos mesmos motivos. Contemplo também este acaso, no meio de tantos que encontrei na viagem. Em dois terços dela andei meio perdido em mim, duvidando da minha vida, questionando escolhas, carregando pessoas como se fossem sacos de cimento a esmagar-me, ameaçando apertar o meu corpo, e o meu espírito contra o chão. Eles ainda existem. Mas aqui, tiram férias. Há um poder natural dos locais que esmagam, porque não esmagam apenas a compreensão, mas tudo o mais que apanham. Sinto isso nas montanhas, sinto-o aqui. Há uma sensação presente, em ambas, de que sou tão pequeno e um pormenor tão pequeno na História. De que os meus problemas se agigantam em mim, mas continuam a ser minorcas em tudo o mais que se passa. Que transitam, como as pessoas, de que tudo flutua e está condenado a desaparecer. Que há quem goste de ti em marés e tu nenhuma outra hipótese tens se não sentir-me areia da praia. Que pode escolher mas só para ti. Que esta Muralha serve para proteger, mas também caminhar: portanto guarda e abre o horizonte, e preciso de ambas. Ma saberia que precisaria mesmo nos meses seguintes e que estes quadros que construo nesta tarde me seriam um refúgio de tudo. Uma viagem prolonga-se enquanto a recordamos, nos ossos principalmente. Quando chego ao final, à torre de Jingshan, não tenho água e estou cheio de calor. Uma velhinha espera-me para cobrar uma garrafinha desse lóquido precioso fresco, dez vezes mais do que o preço normal. Sou roubado, mas aceito ser vítima. Talvez seja um padrão. Tenta impingir-me umas camisolas, mas até os maiores otários têm um limite. Sentado na rocha, à sombra, vejo bem o que andei e o que não andei também. Atrás de mim, existe o que me faltaria andar, se continuasse. Sei que a Grande Muralha da China tem princípio e fim, mas enquanto aqui estou, fingirei que não, que nunca acaba. Que é um bocadinho como o que me assombra. O assombro aqui é outro, e como aquele que fantasmas passados presentes me atormenta, também se vai prolongar. Dos meus olhos para tudo o mais no meu corpo que um bisturi não corta. Que não existe, mas mas que sentimos lá. Que é tão livre que uma Muralha, aí, é sinónimo de liberdade.<br />
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Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-47700014895965194442020-03-26T18:43:00.000+01:002020-03-27T12:56:44.736+01:00Fachinação 24 - Eu gosto é do Verão<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhjwbWPeotz7joQqTDlYp6yN7LDGoyV3D0MO8zlNmAxEfNwtgPR4CyWryMbG6oH_turdG5xDxJcOe_ArKxEYzAdhFTP2vrE8ShCObFNVgOqwyHo6eiKjeK69lAfLJlW5vLUeZCJ/s1600/DSC_0182+-+C.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1065" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhjwbWPeotz7joQqTDlYp6yN7LDGoyV3D0MO8zlNmAxEfNwtgPR4CyWryMbG6oH_turdG5xDxJcOe_ArKxEYzAdhFTP2vrE8ShCObFNVgOqwyHo6eiKjeK69lAfLJlW5vLUeZCJ/s320/DSC_0182+-+C.jpg" width="320" /></a></div>
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É mesmo ele. É Yasser Arafat- Não ressuscitado, entenda-se, nem mumificado. Múmias em Pequim, só Mao (tão poderosas no imaginários que passando defronte do seu mausoléu, vi algumas pessoas em vénias dedicadas). Está num retrato na parede de um corredor que conduz à saída do Quanjude, um dos mais antigos restaurantes de Pequim. Assume-se como o local onde foi criado o famoso Pato à Pequim, mas sendo eu da zona onde dois concelhos lutam até à morte pela autoria da chanfana, não levo demasiado a sério. Ao lado de Yasser Arafat, estão, entre outros, George Bush pai, Pélé e Fidel Castro. Um conjunto ecléctico de personagens. Fundado em 1864, o Quanjude tem uma certa reputação de classe entre os Chineses. O nome aliás demonstra isso, pois significa perfeição, união e benevolência. Beneficiou da protecção do primeiro líder do governo da China comunista, Zhou Enlai, que o frequentava amiúde e aí organizava banquetes para membros do Partido e para os dignatários estrangeiros que visitavam o país. Quando o Quanjude começou, em 1864, foi um ardil. O seu dono pagou principescamente a um dos cozinheiros do Palácio Imperial pela receita de um pato assado que era muito do agrado da Corte. Foi o primeiro restaurante a servir esta iguaria às massas e é hoje um dos <i>franchises </i>de comida mais conhecidos na nação. Apesar dos problemas que teve durante a Revolução Cultural, pela sua ligação a um período de História chinesa que estava fora da esfera comunista, é um local muito frequentado pelas elites políticas, como provam estas fotos de tanta gente famosa. Vim a saber mais tarde que existe um Quanjude em Portugal, caso queiram experimentar. Este tem todo o ar de espaço muito frequentado. Quando entrámos, estava praticamente cheio e tinha dois andares, várias salas de azafama gastronómica, o pato como vedeta central desta hora. Eu nem gosto de pato, mas comi carne de porco. Também estava boa. Os apreciadores da aves confirmaram, pelo menos que estava bem boa; e olhando aquela parece, vimos logo que estávamos em boa companhia. Da mesma maneira que aqui em Portugal aproveitamos todas as partes de um porco, desde as orelhas até aos cascos - porque poucas coisas revelam a penúria crónica de um povo como a sua habilidade criativa de recorrer como alimento ao que ninguém deseja levar à boca - nenhum pedacinho do pato é desperdiçado. Os seus pés tratados como iguarias de entradas, as entranhas propostas como deliciosos pratos no menu, a sua carne em mil e trezentas formas de preparar dentro de um forno a lenha. Como entrada, uma das especialidade são pezinhos de pato com mostarda. Pela cara dos meus colegas, não era de deitar fora. Fígados e corações també estavam disponíveis para aventureiros do palato. Pele tostada, sopa de língua de pato... O bicho morre, mas não é desaproveitado. Quando voltamos à rua, alguns sentem que caíram que nem uns patinhos neste almoço. Faz sentido. O meu espanto maior é que ninguém saio do restaurante a grasnar.<br />
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O plano para a tarde é visitar o Palácio de Verão, que fica fora da cidade. Uma hora, mais ou menos. A maneira mais rápida de lá chegar é através do Metro. Entramos na estação de Jiangdoman e já no subsolo, a primeira preocupação é a compra dos bilhetes. Não há bilheteiras, só máquinas. Que, claro, não têm instruções em inglês claro. Nem maneira de explicar como funciona o sistema de redes do metropolitano de Pequim. É enorme. Conseguimos ver que existem vinte e três linhas e com a maior parte dos nomes em Mandarim, sem qualquer pista que dê a entender a proximidade de algum local conhecido. Em redor, ninguém para ajudar. Um senhor idoso que carre o chão notou a nossa perplexidade e confusão, um grupo de ocidentais a carregar de várias intensidades e maneiras num ecrã. Inglês simples não resulta, gestos também: não consegue entender-nos. Alguns transeuntes, simpáticos, juntam-se, até um jovem que fala a língua de Shakespeare finalmente nos orienta. A compra exige uma série de escolhas que vão bem para lá da quantidade e do destino. Com paciência, talvez oriental, educa-nos nos modos chineses e lá seguimos. À nossa espera, um detector de metais e uma máquina raio X. É um procedimento comum. Ah, como tinha saudades... Depois de olharmos para um mapa, conseguimos entender mais ou menos o caminho a fazer. Por cinco vezes mudaremos de linha, até chegarmos à vermelha - aquela que passa perto do Palácio. Através de um sistema de cores semelhante, mas mais complexo porque mais numeroso, aos dos metropolitanos portugueses, encontramos a nossa plataforma. Estendendo-se por setecentos quilómetros - sendo por isso o mais longo do mundo - , o Metro de Pequim inclui duas ligações directas ao aeroporto, um maglev e uma ligação de comboio urbano, precisamente aquela que apanharemos para chegar por fim ao nosso destino. Estende-se por 405 estações e detém o recorde do maior número de passageiros transportados num único dia, uns esquálidos treze milhões e meio de pessoas. Liga o centro da cidade aos seus subúrbios, alguns deles quase a cem quilómetros de distância, e faz funcionar a grande metrópole. O que mais me espanta enquanto percorro esta estação é que está absolutamente limpa, sem qualquer vestígio de lixo. Apesar da quantidade de gente que aqui deve passar todos os dias e da evolução brutal que este sistema passou desde 1969, quando tinha apenas duas linhas, até hoje. Como se fosse o reflexo concreto do crescimento e estado da sociedade chinesa. Cada plataforma é estreita e encontra-se entre duas linhas. Conforme a direcção que se deseje, tomamos uma ou outra. Para protecção dos passageiros, a passagem para o comboio só ocorre quando se abre uma porta de vidro que é controlado pelos sensores da plataforma e da carruagem. Inteligentes. À hora marcada, chega o transporte. Uma eficácia incrível que se repetirá nas estações seguintes. Esqueçam a pontualidade britânica. Não há lugares sentados para todos, muita gente decidiu apanhar esta linha, uma das mais movimentadas da cidade, à hora depois de almoço. O interior é dominado por pessoas e cartazes de recrutamento para a Polícia que pelo ar intimidador dos modelos escolhidos, devem querer captar gente pelo simples medo de serem presos caso não aceitem o apelo. A publicidade mais capitalista está guardada para certos espaços nos túneis onde ecrãs espalham a boa nova de restaurantes luxuosos, roupa desportiva da NBA, concertos espantosos de bandas chinesas, um sem fim de joalharia e mulheres jovens de olhos rasgados fazendo beicinho enquanto brilham com pedras nos dedos. É a primeira vez que vejo marketing feito desta maneira e tenho de admitir, é espantoso.<br />
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O Palácio de Verão revela outro tipo de espanto. Ocupando três quilómetros quadrados, é um complexo vastíssimo de lagos, palácios, jardins e bosques. Três quartos da sua área é água, o que lhe confere a função de reflectir aqui na terra a beleza da esfera celeste. No entanto, praticamente nada é natural dele. O lago Kunming domina a sua paisagem, dois quilómetros de margem a margem e descansa em plácida horizontalidade entre duas colinas. Uma nomeada de Longevidade. Nenhuma das estruturas é natural. Aliás, a colina foi construída a partir da terra removida para a criação do lago; e ambos estão desde então associados e ligados na maneira como desenham a paisagem. A verdade é que só nos apercebemos disto muito depois de entrar no Palácio. Porque a percorrê-lo, existem vários caminhos cuja quantidade quase nos confunde. O dia está limpíssimo, tépido, o sol explora os nossos sentidos, a brisa sopra na direcção perfeita, na velocidade ideal. É uma mão dada de momentos que são impossíveis de estragar e não sei se por essa ilusão sensorial, se pelo meu corpo se sentir menos corpo e mais transcendência, é a primeira vez que tenho a sensação de estar a ver algo verdadeiramente chinês. Sem artifícios, sem armadilhas, sem qualquer tipo de reescrita histórica e recauchutagem épica. A essência dessa sabedoria oriental que verte das palavras de Confúcio quando as lemos. Surge-me uma vontade indefinível na força que em senta e me segreda que o importante é estar e não correr. Seguro a máquina fotográfica, claro, mas depois desta viagem longuíssima de duas semanas, de ter corrido milhares de quilómetros e encaixado o corpo numa rotina maquinal bruta, os meus músculos, em reunião com o esqueleto que me move, decidem que a hora não é do sobressalto, mas da pacificação. Depois de uma pequena caminhada por entre árvores, o enorme lago Kunming asurge por entre as folhagens e sou puxado, por uma corda que sinto à cintura mas não vejo nem palpo, para a sua margem. É um dos pontos de vista mais emblemáticos destes espaço, o espelho aquático sem fim à vista, confrontado por uma colina bem inclinado, muito verde, de onde brotam pavilhões e pagodes coloridos , um quadro pintado pela mão do homem, mas cujo impacto no meu olhar está bem para lá disso. É-me sempre estanho explicar as viagens que faço. Porque não posso, porque as frases saem-me sempre como papel esmagado que não se aguenta ao mínimo escrutínio. Porque este momento que descrevo, por exemplo, é tão mais do que paisagem ou de que é água e árvores e pedra. É mais complexo do que estar sentado parando o tempo na mão, mais do que a foto que tiro ou a piada que atiro a quem está ao meu lado, mais do que aquele silêncio que reclina as costas e descansa o cabelo desgrenhado. Não se explica porque é um daqueles momentos em que me sinto vivo, mesmo, sinto aquela pulsação carnuda e carnal que me ressuscita da morte a que me entrego na rotina, no quotidiano. As sensações pelas quais viajo são estas. Encontro-as em montanhas, em vales longos ou em espaços onde tudo se conjuga, o que se vê e aperta mas também o que se sente e levita, onde um Palácio cria Verão e Primavera e um Outono suave nos meus sentidos. Quase consigo perceber o encanto enlevado que os Chineses têm por si mesmo, o país, a cultura, a visão de um mundo cheio de energias que se cruzam, ordens que devem ser respeitadas. Aqui não penso na opressão ou na vigilância, no roubo da identidade cultural, não tenho discursos políticos. Estou apenas, e não é nada pouco. É muito. Estar é o mais difícil no mundo, simplesmente ser e permanecer durante uns segundos sem pesos do passado ou ânsias do futuro. É o que sinto aqui sentado. A leveza da vida. São segundos. Mas a intensidade é eterna, é pulsante.<br />
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Não que a história deste Palácio seja desinteressante, muito pelo contrário. A sua origem coincide com a primeira mudança da capital chinesa para a actual Pequim - na altura chamada Yanjing - em 1161. Wanyan Liang ordenou a construção de um palácio para as suas férias nesta zona, à altura chamada de Colinas Fragrantes, pela quantidade de árvores e flores que aqui existiam. A expansão e construção do palácio demorou mais de sete séculos, com cada dinastia acrescentando o seu pedaço. Alguns edifícios, como um templo enorme do século XV, desapareceram; mas ainda se preservam as memórias dos passeios sobre o lago que levavam os membros da Corte ao mesmo, em fins de tarde como este em que passeio agora. Com o século XVIII e a dinastia Qing vieram a maior parte dos jradins e bosques que hoje podemos percorrer. Em consequência, o consumo de água aumentou drasticamente, o que obrigou ao aumento do lago Kunming e a criação de outros mais pequenos. No entanto, isto afectou o abastecimento de água da própria Pequim, visto que tanto o Palácio como a cidade eram alimentados pela mesma fonte, localizada a poucos quilómetros daqui. Então, o imperador Qianlong, por sugestão da esposa, criou dois novos lagos alimentados pelo Kunming, que se destinavam ao consumo dos pequineses. O desenho final deste complexo bebe de várias lendas da mitologia chinesa e dos seus locais: cada um dos lagos representa uma montanha mágica presente nas lendas da China Oriental. Este encanto desaba, no entanto, em 1860, quando o exército britânico, na altura envolvido nas Guerras do Ópio contra a China, invade o Palácio e queima uma boa parte do seu conjunto. Um evento que ainda hoje é traumático para os Chineses. O que sobrou inteiro foi pilhado pelos Ingleses e pelos Franceses e as décadas seguintes trouxeram várias reconstruções por causa de conflitos locais e recuperação do que foi destruído pelos Ocidentais. Quando o último imperador chinês abdica em 1912, pondo assim fim à era imperial chinesa, o Palácio foi aberto ao público e entregue à municipalidade de Pequim, que o transformou num parque aberto a todos. Desde 1998 que é Património da Humanidade e isso deve-se não só à sua História e importância no imaginário chinês, como à quantidade absurdas de ponto de interesse que podemos encontrar e que não posso explicar minimamente nesta crónica. Acho que precisaria de umas três e só aqui passei uma tarde e vi tudo muito a correr, porque preferi estar em vez de andar. Mas destaco a Torre do Incenso Budista sobranceira ao lago; o Barco de Mármore, uma escultura naval em pedra com vitrais que jogam connosco no fim de tarde; a ponte dos Arcos que une dois pavilhões; o Jardim dos Prazeres Harmoniosos; e ao longe, vista a partir desta margem, a Torre de Jade, como um farol sem luz cravada numa ilha.<br />
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Mas o que posso partilhar convosco é o momento pelo qual todos os visitantes esperam. O Sol vai descendo gradualmente do lado esquerdo do horizonte e nessa viagem de eterno retorno, com lentidão diminui a força da sua luz. As sombras no solo tornam-se cada vez mais inclinadas, esticadas até um ponto de quebra. As árvores escurecem, os objectos transformam-se, mudam a sua forma por momentos como se fosse o Sol a sustê-los. Uma longa <i>promenade</i> contorna uma das margens do lado, estende-se num pequeno deleite acompanhando essa saída sorrateira que o soalheiro astro faz. A ladeá-la, muros com formas esculpidas, onde casais e pessoas sós namoram em simultâneo com o ocaso e o fim de tarde. Alguns pagodes mais pequenos estendem-se por este passeio. Olhando, há quem se estenda em encosto apreciando as águas do lago fundindo com este espectáculo. Nas suas caras, a reflexão, e fico com a ideia de que este é um hábito muito comum, de perguntar às águas sobre as cascatas da vida. Um Património Mundial onde se pode passar o tempo sem contar minutos e regressar num outro dia. Vou documentando a progressão do Sol com fotos, cada uma tirada em luminosidade diferente, oferecendo claro-escuros mais evidentes. Cada vez mais perto, junto a um templo, junta-se gente num varandim com vista privilegiada. Quando lá chego, consigo contemplar tudo, desde as várias colinas até à Torre de Jade, o Barco de Mármore, a Torre do Incenso. Por trás, o Sol em descanso e em contra-luz. Num golpe de óptica, arranja maneira de ir sumindo mesmo ao lado da Torre do Incenso, acentuando-lhe os contornos, esmagado a minha vista, escapando cada vez mais da minha lente. A água do lago torna-se negra, depois prata, depois ouro e não regressa aos tons de tarde. Talvez amanhã. Em meu redor, dezenas de pessoas e de câmaras, alguns totalmente preparados com tripés super cósmicos e máquinas super galácticas, preparas com minúcia e minutos para este preciso momento. Então termina e a noite cai. Ou então ainda existe, prolongando-se durante meses, aparecendo na minha memória, terminando esta crónica<br />
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghKRDoszFHWknw5cQ12ujEk57flfg73G0WOgRjd3kYrMVx8BbYlb7s3HWsbspZ0eQ1fIogtNwS9n7QzggqWzVo_6ub-DAXJWGQRWHAoWNPM8JoTTNqUtp9vs7kcvU_F0UHF_M0/s1600/DSC_0245.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1600" data-original-width="1064" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghKRDoszFHWknw5cQ12ujEk57flfg73G0WOgRjd3kYrMVx8BbYlb7s3HWsbspZ0eQ1fIogtNwS9n7QzggqWzVo_6ub-DAXJWGQRWHAoWNPM8JoTTNqUtp9vs7kcvU_F0UHF_M0/s320/DSC_0245.JPG" width="212" /></a></div>
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-29586525477278388132020-03-21T14:40:00.002+01:002020-03-21T16:11:41.783+01:00A Quarentena: "Síndromes - os problemas que os problemas têm"<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEju4wEoJZuBOaMqqLSrJdkX1yKhwsqgfW892miBoWKO26vOtKS6UnZ0wUQcZz7aWXtz8yD4dclBJT1ePJxTKcNRxVZwWDteXM4yMK6EerFinvXpDg3Sq8zQW5uZuNmAU1La3mm8/s1600/capgras.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="900" data-original-width="1600" height="180" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEju4wEoJZuBOaMqqLSrJdkX1yKhwsqgfW892miBoWKO26vOtKS6UnZ0wUQcZz7aWXtz8yD4dclBJT1ePJxTKcNRxVZwWDteXM4yMK6EerFinvXpDg3Sq8zQW5uZuNmAU1La3mm8/s320/capgras.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br />
O cérebro esconde os segredos que
nos dão a racionalidade. Separa-nos dos restantes animais, concede-nos
capacidades incríveis de memória e inteligência; e continua a ser, ainda assim,
um lugar extremamente inquietante onde moram os processos que criam essa
entidade nebulosa e misteriosa que é a nossa consciência. Nos seus confins e
sem fins, surgem inúmeros distúrbios neurais e neurológicos que levam alguns de
nós a agir de maneira bizarra e sem sentido. Esses distúrbios desenvolvem-se
normalmente em síndrome mentais que condicionam o nosso comportamento podem,
nalguns casos, alterar por completo a visão que temos do mundo e a maneira como
vivemos nele. O de Anton-Babinski, por exemplo, afecta pessoas que são cegas,
mas se recusam a acreditar nisso. Os afectados podem pelo menos confortar-se no
facto de lhes ser impossível sofrer de síndrome de Alice no Pais das Maravilhas
– também conhecido como síndrome de Todd – que provoca danos na nossa
percepção: qual Alice sob o efeito do chá do Chapeleiro Maluco, começam a ver
tudo de maneira distorcida. Objectos longínquos tornam-se próximos e
vice-versa. Embora possa ocorrer muitas vezes na fase de vigília do sono, é
também muito comum em estados conscientes como sintoma de outras doenças como a
mononucleose ou enxaquecas. A percepção é uma área onde o nosso cérebro adora
pregar-nos partidas. Nem sempre no mundo físico. O engano de Capgras é uma
condição médica onde o indivíduo caminha com a permanente sensação de que todas
as pessoas próximas de si foram, na verdade, substituídas por impostores. Quem
ordenou tudo isto? Não sabe. Talvez “Eles”. Quem são “Eles”? Ora, são… “Eles”.
Em casos extremos, este engano pode até dar a entender de que o próprio tempo
foi alterado, acelerado ou abrandado. É habitualmente associado a casos de
esquizofrenia e estatisticamente, afecta mais mulheres do que homens, naquilo
que é a Ciência a contribuir para as guerras de género que imperam hoje em dia.
Não confundir, no entanto, com a Ilusão de Fregoli, onde surge a ideia
persistente de que aqueles que nos rodeiam são, na verdade, a mesma pessoa que
se vai disfarçando uma e outra vez para nos enganar. Nenhuma destas doenças, no
entanto, afectaram alguém com Prosopognosia, que torna alguém incapaz de
reconhecer qualquer rosto que lhe deveria ser familiar. De todas as condições
que falo hoje, esta é a única hereditária e suspeita-se que uma em cada
cinquenta pessoas sofre dela em algum grau. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Por vezes, o cérebro faz-nos crer
que morremos ainda que sintamos o nosso coração a bater. O Engano de Cotard
leva alguém a crer, com todas as forças e ilusões, de que na verdade é um
cadáver, um <i>zombie</i>, e a sua carne apodrece a cada segundo que corre, que perdeu
o seu sangue e os seus órgãos. Isto pode dar para ambos os lados: ou o paciente
acredita que acabou a sua jornada neste mundo ou então que se tornou imortal.
Deve estar relacionado com o ego de cada um. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Para compensar, o síndrome de Kluver-Bucy
injecta vida nesta velha carcaça e leva a comportamentos de verdadeiro devorador.
Habitualmente provocado por um trauma físico, provoca uma vontade descontrolada
de comer tudo o que seja material, desde comida até gelo ou terra ou madeira ou
rochas, uma tendência para analisar tudo com a boca – levando a fixação oral a
todo um outro patamar – a incapacidade de reconhecer pessoas e objectos
familiares e até uma hiperssexualidade que se pode tornar bastante incómoda
para familiares, amigos, esposos, animais de estimação e aspiradores. Alguém
com esta voracidade poderá ter um encontro bem interessante com quem sofre de
síndrome de Diógenes, habitualmente conhecido como “acumulador”. Há poucas
doenças com nomes mais irónicos: Diógenes era um filósofo ateniense conhecido
por ser despojado e lendariamente habitar no interior de uma jarra. Saía dela
para ensinar os jovens atenienses e procurar companhia para os seus passeios na
ágora da cidade-estado grega. O doente deste síndroma, pelo contrário recolhe
tudo o que encontra e guarda em casa. Tranca e porta e evita qualquer contacto
humano. Lentamente, perde as inibições, a auto-preservação e casos houve onde
após anos de isolamento, a Polícia forçou entrada e casa e encontrou o
inquilino que sofria desta condição cadavérico de várias semanas, sem que
ninguém tivesse notado de outra forma que não pelo cheiro incómodo. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Por vezes, torna-se difícil
decidir o que deitar fora. Principalmente para quem sofre de Aboulomania, que
torna uma impossibilidade patológica o acto de escolher. Uma pessoa dá por si
congelada, incapaz de tomar qualquer decisão, mesmo a mais simples. Muitos de
nos são indecisos, em parte porque as informações que levam a qualquer escolha
estão espalhadas pelo cérebro, que as reúne da maneira julgar ser mais útil
para nós. Mas que sofre desta condição simplesmente não toma decisões. O que
pode ser uma boa desculpa para a próxima vez em que quiserem descalçar uma bota
bicuda, como quando vos perguntarem opinião sobre o projecto pessoal de alguém
ou uma peça de roupa acabadinha de comprar na loja. A incapacidade social
afecta também os pacientes de Taizin Kyofusha, muito comum no Japão por
exemplo, que provoca um medo tremendo de relações interpessoais. Leva a que nos
sintamos embaraçados connosco, com medo de desagradar a outras pessoas e num
caso extremo, convence alguém a não embaraçar os outros com a sua simples
presença, pelo aspecto, cheiro ou mesmo tom de voz. Na mesma zona geográfica, é
temido o Koro, um síndrome que leva um homem a acreditar que os seus genitais
estão a encurtar de tal forma que inevitavelmente provocarão a sua morte.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O primo indiano desta condição é o Dhat, um
temor irracional de que se está a perder o esperma através da urina e do suor
durante a noite, enquanto um macho está distraído e mais vulnerável. Em pessoas
vindas dos Oriente é também muito comum o síndrome de Paris, que conduz os seus
sofredores à chocante conclusão de que a Paris que visitam não é aquela que
lhes foi apresentada na publicidade. Perdem parte da sua personalidade,
passeiam por Paris com o medo de serem perseguidos e ostracizados (embora
conhecendo os Franceses, esta é a parte da doença que me custa menos a aceitar)
e levar a sintomas físicos como tonturas, suor excessivo, alteração do ritmo
cardíaco e vómito. No entanto, Paris não é a única cidade a provocar fortes
reacções mentais em quem visita. Em Jerusalem, talvez inspirados pelo facto de
estarem no feudo de três religiões monoteístas, alguns turistas sentem-se
invadidos por uma fé religiosa absoluta, convertendo-se sem hesitar à adoração
de Deus, seja qual for a sua designação. Apesar de não ser reconhecida
oficialmente como condição psiquiátrica, já foi verificada nalguns indivíduos
que se tornam psicticamente zelotas, tentando converter outros à força e
afirmando viver experiência sobrenaturais e assistindo a milagres. O cura,
aparentemente, é remover esses chatos da cidade israelita. A coisa parece ir ao
sítio. Fosse tão fácil assim resolver os problemas daquela região.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Alturas há em que as pessoas não
querem ser pessoas, mas sim animais. A Lincatropia, ou seja a ilusão em alguém
de que na verdade é um lobo, é conhecida do público em geral pela sua
associação com o mito do lobisomem. Menos conhecida, no entanto, é a
Boantropia, a convicção férrea que inspira num ser humano comportamentos de vaca
– literais, atenção – porque este crê ser uma. No livro de Daniel, dos Antigo
Testamento, o rei babilónio Nebuchadnezzar II sofria desta condição, tendo sido
expulso do seu palácio e conduzido a um prado onde ficou a comer erva. Um outro
governante persa chamado Majd Al-Dawla foi curado por Avicena, famoso médico
muçulmano, de uma ilusão semelhante que o levava a mugir no trono e a perguntar
a outros se não queriam matá-lo e preparar uns bifes a partir do seu lombo. Algumas
doenças do género levam homens a agir como animais, mas não pelo comportamento:
o síndrome de Wendigo desperta uma vontade incontrolável de absorver carne
humana, mesmo quando há outras comidas disponíveis. O seu nome vem de uma
criatura do folclore de algumas tribos nativas canadianas. Mas não se assustem
com tudo isto. São condições raras e que, em princípio, não vos afectarão. Não
ajam como se sofressem de Kufungigisa, que é o problema de quem pensa demasiado
e que está registada no Zimbabwe onde um paciente se queixava de que o seu
coração doía muito pois ele não conseguia parar de pensar; só vos desejo,
perante este texto, um ataque agudo de síndrome de Stendhal, que deve o nome ao
famoso escritor e provoca um arraso incrível quando confrontado com uma obra de
arte inegável. Disso, espero que sofram um ataque súbito e inapelável. <o:p></o:p></div>
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-20076210550846051862020-03-18T18:06:00.001+01:002020-03-18T18:06:28.285+01:00Fachinação 23 - Figuras de Pequim<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhz0V5fTBfdZuHxlVis_pwnio9ZnORXnio13Ac9csY7b3opG-SLRgvB26b1Zu2K7JVRRtozObeAyslKogFYbHetAhkIXYfYQ6Yt93VN1TyrHFf3QfHUfpH_Iwdq6VFMcRwEYHy6/s1600/DSC_0100.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1064" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhz0V5fTBfdZuHxlVis_pwnio9ZnORXnio13Ac9csY7b3opG-SLRgvB26b1Zu2K7JVRRtozObeAyslKogFYbHetAhkIXYfYQ6Yt93VN1TyrHFf3QfHUfpH_Iwdq6VFMcRwEYHy6/s320/DSC_0100.JPG" width="320" /></a></div>
<br />
<br />
Talvez por ter sido criado numa dieta farta de rock ocidental, o encanto da música oriental perde-se em mim; e refiro-me quer à mais pop ou à mais tradicional. No caso da segunda, os instrumentos de cordas quase furando o tímpano com a acutilância de um arame forjado nas ferrarias do Inferno são o que chega para pedir a ressurreição de Genghis Khan para uma nova tournée de chacina e ordem no Império do Meio; no caso da primeira, há uma tolerância muito reduzida na minha disposição e humor para sintetizadores imitando flautas e vozes lancinantes que desenham a dor por entre nenúfares em lagos que rodeiam pagodes. Não só é chato, como parolo e falso. Os Chineses adoram estas coisas. Caramba, é acompanhar o Instagram de Jackie Chan e constatarem, com horror, que um dos mais dementes e corajosos artistas de artes marciais da História do Cinema só se contenta quando derrete pelo microfone de karoake a sacarina de românticas baladas em mandarim, falando provavelmente de rebentos de soja, ventos do Oeste, o dragão que voa abençoando a pátria e provavelmente telemóveis ou o catano. Em mim, a música chinesa provoca apenas um gesto reflexo de fuga que apenas travo porque não quero insultar esta cultura. Não por ser milenar, mas por prescindir daquilo que conhecemos como respeito pelos direitos humanos; e eu prezo muito os meus direitos e esquerdos, centros e laterais. Trouxe-os para aqui, quero levá-los de volta a Portugal. É por isso que espero que valorizem o facto de estar há uns cinco minutos a assistir ao que posso descrever em termos largos como uma desgarrada à sombra de um pagode num parque em Pequim. Encostados a uma parede, três instrumentistas praguejam a vida através de uma cítara, um violino e um tambor. Em ritmo de morrinha, deslizam cordas, adormecem batuques enquanto à sua frente se revezam em sessões de cinco minutos dois homens domingueiros. Não há formalismos ou formalidades. Vestem <i>t-shirts</i>, calções e sapatilhas, um deles enverga até óculos escuros na cabeça. Olhando de fora, parece-me um grupo de aficcionados da canção que em certas manhãs se levanta da cama e pensa "Não, hoje não é dia de deixar as pessoas em paz", e em procissão melómana, cada um certamente com o seu período musical favorito, vêm ao parque passar o tempo. Aqui em Portugal, conversa-se, joga-se dominó, batem-se umas cartas. Mas na capital chinesa não. Aqui, flui cultura. Um homem acaba o seu turno, cabelo negro acachapado na cabeça e uma certa barriga de quem quer expandir território para Taiwan. Entendo zero do que cantou, mas por várias vezes apontou para nós, para se queixar de um amor perdido ou de que faltou queijo ao pequeno-almoço. É uma de ambas. O seu parceiro toma o lugar. Deve ter mais uns quinze anos e o longo cabelo branco é apanhado a meio das costas. Sofre também pois claro. É provável que de reumatismo ou do sol que hoje está a dar demasiado forte na testa ou de que aqueles rebentos de soja com molho agridoce lhe caíram mesmo mal e o que ele tem é cólicas e na verdade, devia estar deitado no sofá. Venho de Portugal e mesmo depois de duas semanas neste país, o meu chinês limita-se a "Obrigado" e "Olá". Quero fechar os olhos e deixar-me levar pela música, mas é impossível. Como disse, não encontro fascínio naquelas notas do Oriente que tanto encantaram os meus antepassados no tempo da Expansão. A questão é que o dia até tinha começado com grande classe.<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDt7i5pGSOGj4ATrQwKrnRlWXWLlwBNL0hig4SVdwBy1DnexTbkNSYdNrkP6kzFI1js6JMA65zg_F2AK8HJuD-c-HKhJrfAseP34qOJ2LR_SuBwhLmwDgmToOljk-a1rkj5J2H/s1600/DSC_0010.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1064" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDt7i5pGSOGj4ATrQwKrnRlWXWLlwBNL0hig4SVdwBy1DnexTbkNSYdNrkP6kzFI1js6JMA65zg_F2AK8HJuD-c-HKhJrfAseP34qOJ2LR_SuBwhLmwDgmToOljk-a1rkj5J2H/s320/DSC_0010.JPG" width="320" /></a></div>
<br />
Localizado exactamente no centro do eixo Norte-Sul de Pequim, o parque de Jingshan fica mesmo ao lado do nosso hotel. Tem um espaço enorme e o principal atractivo para o turista é que o seu lado Sul permite a visão da Cidade Proibida, o local mais visitado da capital da China, É a principal razão que nos leva a visitar este espaço, embora a sua importância histórica ultrapasse a simples função de miradouro. Desde o século XIII que serviu de jardim imperial, local habitual de passeio dos membros das cortes Yuan, Ming e Qing. Foi durante esta última que se plantaram múltiplas árvores de fruto e se construíram os vários pavilhões de típica arquitectura chinesa que ainda hoje podemos encontrar espalhados pelo parque (e debaixo de um dos quais nos encantavam os dois tenores de que falava há pouco). Numa altura em que este espaço ficava fora da malha urbana, a Corte praticava caça nestas colinas, principalmente veados e javalis. Isso ainda hoje é recordado com algumas estatuetas coloridas em plástico dos ditos animais. Com o fim da monarquia na China, foi aberto ao público e é hoje um local de destaque para o turista. Ainda assim, há muito pouca a sensação de espaço para passeio e fotografia exclusiva, pois vemos a normalidade expressa no comportamento das pessoas. idosos praticando várias modalidades de Tai Chi e Yoga, pessoas sentadas em bancos lendo, mulheres deitadas apanhando sol, cidadãos que de livre vontade vêm cuidar das plantas e regar os relvados. Paga-se para entrar, mas pouco e vale a pena: é um espaço limpo, muito verde e repleto de flores espalhadas por canteiros, adequado a esta manhã de Sol com que a cidade nos recebeu. Sem procurarmos de imediato o rumo para o ponto elevado, damos umas voltas observando as pessoas, os espaços. Existem vários pavilhões espalhados, cinco deles praticamente iguais. Embora hoje estejam ausentes, até ao início do século XX encontravam-se estátuas de Buda no interior de cada um, simbolizando os vários sabores do nosso paladar. A disposição de todas as construções e manchas verdes neste parque não é aleatória: corresponde às indicações do <i>feng shui</i>, uma filosofia chinesa que acredita nas energias invisíveis da Terra e que estas podem ser canalizadas mediante arquitectura e paisagismo. O ponto central da planta do parque é a colina que o domina, em função da qual todos os outros aspectos foram planeados. Subimo-la então; é curta, mas proporciona uma excelente vista não só sobre o ex-libris de Pequim, mas também todas a cidade e os seus pontos principais. Tudo o que separa o parque da Cidade Proibida é um fosso coberto de água, como os que rodeavam os nossos castelos medievais. Neste ponto alto, localiza-se o maior pavilhão, com três andares, em cores de azul e vermelho e amarelo. Brilham bastante com o sol de hoje e são quase tão bonitas quanto a ideia de que estamos a ver outros daqueles locais míticos da História mundial. Nâo iremos visitá-lo, no entanto, e a razão é visível daqui: longas filas que nos obrigariam a perder tempo necessário para explorar melhor esta enorme urbe oriental. Não sinto pena ou uma necessidade obrigatória. Há outros cantos que me interessam mais, daquilo que li sobre eles. Quando descemos, passou por uma grande placa dourada, colocada defronte de uma velha árvore que conseguiu crescer num solo rochoso. A placa conta a história do imperador Chongzhen. Um homem cruel, enfrentou uma enorme revolta popular, recusando-se a abdicar do trono. Com a cidade dominada pelos insurgentes, o imperador tentou chamar os seus conselheiros para discutir medidas, mas nenhum apareceu. Sozinho no seu momento de maior apuro, Chongzhen foi drástico e cruel: obrigou a imperatriz a suicidar-se; matou com as suas próprias mãos filhas e concubinas; e fugiu com um único servo, um eunuco chamado Wang Shen, para este local que hoje fica no parque. Aqui, escrevu uma carta de despedida usando o único material disponível: a sua roupa e o seu sangue, arrancando a ponta de um dedo à dentada. Depois, enforcou-se e evitou assim a fúria dos populares. <i>Feng shui.</i><br />
<i><br /></i>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEivbN4BmlqQagNAyf5A61XiU6Mw0xTUR7skjkw9c8mI5FG6UZL1Ka930PL_qSm4qqdSrwdB4hhrEoLLN3PrdmRX8VN-m_q3FTrPJyQAIieFZoIE00LrTiq4iAexnaiXoS0P4O8o/s1600/DSC_0001+-+D.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1065" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEivbN4BmlqQagNAyf5A61XiU6Mw0xTUR7skjkw9c8mI5FG6UZL1Ka930PL_qSm4qqdSrwdB4hhrEoLLN3PrdmRX8VN-m_q3FTrPJyQAIieFZoIE00LrTiq4iAexnaiXoS0P4O8o/s320/DSC_0001+-+D.jpg" width="320" /></a></div>
<i><br /></i>
Já em direcção à praça de Tiannamen, num passeio a pé pela cidade, o raio das cítaras e das guitarras ainda soavam nos meus tímpanos. Inevitavelmente, contornamos o perímetro da Cidade Proibida e o seu fosso de água é sempre uma companhia. Pequim é uma daquelas cidades fervilhantes, mas limpas. Acho bizarro que este mastodonte populacional tenha tão pouco lixo no chão, mas depois lembro-me de que estamos num estado autocrático. O trânsito é permanente, mas aqui nota-se menos, porque é um espaço quase entregue a peões. A zona histórica. Onde a cada momento está sempre a acontecer qualquer coisa completamente fora da nossa esfera de normalidade, desde pessoas que montaram bandas de venda de bebidas e gelados em casa, na janela, até crianças que são levadas por uma coleira como cães. O inglês nas placas de informação turística é atroz como sempre; e neste dia de amena temperatura e céu limpo, vários casais aproveitaram para fazer as suas sessões de fotos em plena tua. Uma, muito simples, envolve alguns amigos e os noivos. Usam telemóveis e embora a noite use vestido, é muito simples e o seu companheiro, embora vista casaco de fato, enverga sapatilhas e calças de ganga. Reflectem uma China menos tradicional, o exacto oposto do que encontramos alguns metros mais à frente, numa produção matrimonial com tudo a que temos direito. Há damas de honor e moços de companhia. Elas vestem vermelho; eles fato de um roxo sóbrio, mas notório. Houve planeamento, houve noção - ou falta - de estilo. Cada um dos casais tem de fazer variadas poses, em conjunto e separado. Enquanto me sento num muro espreitando a cena, dois cabeleireiros estão por perto, ajeitando maquilhagem e retoques capilares antes de cada nova ronda. Vestem-se de forma muito simples, mas sempre em preto. Apenas o fotógrafo principal destoa, envergando uma máquina fotográfica do tamanho do meu crânio. Há malas e malas de material espalhadas pela margem do fosso, os torreões da Cidade Proibida servem de cenário a esta sessão meticulosa. Não há margem para erros. A certa altura, de uma das malas, sai um longo pano de tule, encarnado, esvoaçante com as leves brisas do dia. As damas de honor esticam-no e seguram-no.Como se fosse um casamento saído de "O trono de sangue", de Kurosawa. É só aquilo de que me recordo. A noiva, uma moça gordinha que não tem mais do que vinte e cinco anos, observa tudo, zelosa mas apreensivamente triste. O noivo convive com os amigos, fazem algumas brincadeiras e palhaçadas. Recordo-me dos casamentos ocidentais a que assisti, onde este tipo de coisas normalmente ocorrem já depois de eu ter chegado, estas sessões que depois ficam bem em portfólios e álbuns para os noivos. Aqui, acontecem em pleno coração da moderna Pequim, num espaço rodeado de centenas de pessoas, onde o amor só tem lugar em frinchas dentro de cada um.<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhnYtTy-mDRZpW7Y02vunPma23rP99FwJhiTLMVY9QKhJeLWuh1mZDRPGZSz-ObeDKBQtQp5lbt0iMXtMheSCGkgAC-eL7X9L2BPDTjdAkURXJTlxket6xaY0oKlhBU93iispB0/s1600/DSC_0038.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1064" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhnYtTy-mDRZpW7Y02vunPma23rP99FwJhiTLMVY9QKhJeLWuh1mZDRPGZSz-ObeDKBQtQp5lbt0iMXtMheSCGkgAC-eL7X9L2BPDTjdAkURXJTlxket6xaY0oKlhBU93iispB0/s320/DSC_0038.JPG" width="320" /></a></div>
<br />
O nome significa "Porta da Paz Celeste", mas na memória dos ocidentais fica por razões que pouco têm de pacífico. Em 1989, um enorme grupo de estudantes fez de Tiannamen o seu local simbólico de reunião durante protestos diários que duraram semanas e colocaram o regime chinês nas notícias fora do país. Foi apenas o centro de várias manifestações que ocorreram numa boa parte do país, exigindo mais direitos civis e liberdade de expressão para os chineses. Meses de indecisão na maneira de lidar com esta insatisfação culminaram com uma acção drástica a quatro de Junho: o exército avançou em força, com tanques e soldados, sobre os estudantes que em permanência se mantinham na praça - ninguém sabe bem quantos. Oficialmente, não houve mortos, apenas presos; mas por esta altura, sabemos melhor do que confiar naquilo que o Governo Chinês diz. A coisa podia ter acabado por aqui, se no dia seguinte não tivesse aparecido, ninguém sabe bem de onde, um dos meus heróis pessoais. Num auge de soberba e marcação de território, o Exército da República Popular da China decidiu fazer uma parada ciclópica pela grande avenida junto à praça. Infantaria, Aviação, Blindados, grandes colunas para mostrar à população quem de facto manda, quem de facto põe e dispõe. No meio de tudo isto, de todo este poderio, um homem de camisa branca e calças pretas atravessa-se defronte uma coluna de tanques, segurando um saco de plástico branco. Parece algo saído de uma comédia sem sentido. Estaca frente a um dos veículos. No seu interior, o condutor deve ter sentido a confusão dos cegos a quem é devolvida a vista e dão por si num caleidoscópio. Parando o primeiro, param os restantes; e o homem mantém-se irredutível, resistente. Neste impasse, decide tomar a iniciativa: sobe ao tanque mais próximo, abre a portinhola e começa a gritar com os soldados no interior. Nisto, outros dezassete tanques não avançam. De vários pontos da praça, escutam-se disparos, mas talvez o indivíduo não se consiga mexer pelo peso dos seus tomates de aço inoxidável. Durante três minutos, a parada não se mexeu. Dizem que um homem apenas não pode parar um exército; mas neste dia, isso foi mentira. Ele desceu do tanque então, mas continuou na sua irredutibilidade. Um louco, talvez, um homem de princípios; ou alguém que simplesmente se fartou. Tudo acabou quando alguns transeuntes, temendo outra carga militar que deixasse um banho de sangue, foram ter com ele e arrastaram-no para longe. Perdido na multidão, tornou-se anónimo. Não sabemos nome nem destino, se ainda vive ou se morreu. Mas a sua imagem de uma banalidade que num gesto de desafio se transforma numa lenda ficou comigo desde que vi as imagens na televisão quando era criança. Quando decidi vir à China, era impossível não lhe fazer homenagem. Por muitos problemas que me pudesse criar.<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjdI-9B2oGzM0XepFQJH44CWUJ3UHMOfBfoArfqDhDDq1ax3jj92ZYh1Y1iUUZ8kJ7-zIuvDgvu0mirq6uZ3sMd6wFdZWxHwI9m7w3PFZq8L_Dsa6_YFv1bYwAA8t0z0EGhX5IL/s1600/DSC_0061.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1064" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjdI-9B2oGzM0XepFQJH44CWUJ3UHMOfBfoArfqDhDDq1ax3jj92ZYh1Y1iUUZ8kJ7-zIuvDgvu0mirq6uZ3sMd6wFdZWxHwI9m7w3PFZq8L_Dsa6_YFv1bYwAA8t0z0EGhX5IL/s320/DSC_0061.JPG" width="320" /></a></div>
<br />
Neste dia, as medidas de controlo para entrar na Paraça são a dobrar. Faltam poucos dias para que se comemorem os setenta anos da Revolução Maoísta e há um grande programa de festas que tem como palco este espaço. Tiannamen é tão importante para o Partido Comunista Chinês que um desenho desta está na bandeira símbolo do PCC. Para visitarmos, existem dois piquetes de segurança. Num apresentamos os nossos documentos e somos revistados manualmente; no outro, regressamos à rotina das máquinas de raio-x e detectores de metais. Damos uma voltinha por entre um maralhal de gente e paramos defronte da entrada que de Tiannamen conduz à Cidade Proibida. É a mais conhecida, com o seu retrato icónico do Presidente Mao-Tse Tung com o mesmo sorriso do gato de Cheshire com quem a Alice de Lewis Carroll conversa nos livros. Há bastante polícia e alguns militares guardando o espaço, preferido por muitos para entrar no antigo Palácio Imperial. Outros turistas, também em grande número, percorrem apenas a Praça. Entre nós, tiram-se umas fotos, sérias ou fazendo pouco do peso político deste local. Vejo ao vivo a mesma varanda que por muitas vezes apareceu nos manuais de escola que estudei. Dali, várias caras mudam, mas a presença opressiva do Governo Chinês é a mesma. As bandeiras vermelhas com estrelas amarelas tremem ao vento, mas seguras. É o epicentro da China moderna. O meu plano de homenagear o homem de Tiannamen é o objectivo. Quero fotografar-me na praça. Trouxe vestida a única <i>t-shirt</i> branca que veio comigo, de propósito para este momento. Traz estampada a face de Darth Vader, numa pequena piadola pessoal. É impossível ensaiar esta fotografia no mesmo local onde esse corajoso enfrentou os tanques. A Avenida é frequentada por carros e se ele teve coragem para travar o trânsito, eu pessoalmente não tenho a mesma intenção de desaparecer no anonimato. Sou rebelde, mas dentro dos meus limites. Do outro lado da avenida, estou mais próximo do famoso lugar do protesto. Atravesso por uma passagem subterrânea e subindo uma escada, estou a uns vinte metros. É aqui. Perto de mim, estão três polícias que me olham quando o Zé Luís me aponta a máquina e eu, direito, segurando um saco de plástico branco, imito um dos meus heróis. Não dizem nada, nem sei sequer se identificam bem aquilo que me move a fazer isto. Talvez não, já passaram trinta anos. Entre mim e aquele lugar de resistência, estão quatro barreiras douradas. Manifestações físicas de outras barreiras que esse desconhecido saltou de outras maneiras. Quando acabo este ritual, a vida continua. Na praça de Tiannamen concretamente, há fotografias e risos e gritos e gente que passa o tempo. Há uma China de hoje que vai passando pela habilidade de resistir com uma diplomacia de inegável inteligência Uma China que exerce o seu poder não pela força abusiva, mas pelo conforto da amnésia. Hoje, em Tiannamen, eu fui o único homem de branco. Sem tanques. Mas com esse espírito de resistência habitando algures em mim, de forma tímida e simbólica, mas viva. Afinal, talvez alguma coisa me ligue hoje à cultura oriental que não consigo que me entre pelos ouvidos.<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9AiypDMWp3pzOg5-f2exKIZg_GIkuz4HPYCZE2cQkn1wHNBXAZMm_tkBSCppwqpYatRuqXAHbWgudJ5UwMeKgG4xaqkw4Jm3j6VFSJmbipPLt2YJBGDRCHfTdq-bDAxf9thmu/s1600/DSC_0086.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1600" data-original-width="1064" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi9AiypDMWp3pzOg5-f2exKIZg_GIkuz4HPYCZE2cQkn1wHNBXAZMm_tkBSCppwqpYatRuqXAHbWgudJ5UwMeKgG4xaqkw4Jm3j6VFSJmbipPLt2YJBGDRCHfTdq-bDAxf9thmu/s320/DSC_0086.JPG" width="212" /></a></div>
<br />
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-70395050990757466742020-03-17T13:26:00.002+01:002020-03-17T13:26:29.336+01:00A quarentena, episódio 2: O mecanismo de Antikythera<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6W0tyHSg2EL6JKZmH3-9U3ZbkwMeX5e7u_q7YpIyhG9_jn2NZ8pTEz4lf8cubGivFi2o8zSMzF0Wx8GKxp0PY2yqjrurrh8AkK9cBPC802Wulo-o55WivwOgO67LISGueCXTH/s1600/Antikythera_Mechanism_-_National_Archaeological_Museum%252C_Athens_by_Joy_of_Museum.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="1600" height="160" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6W0tyHSg2EL6JKZmH3-9U3ZbkwMeX5e7u_q7YpIyhG9_jn2NZ8pTEz4lf8cubGivFi2o8zSMzF0Wx8GKxp0PY2yqjrurrh8AkK9cBPC802Wulo-o55WivwOgO67LISGueCXTH/s320/Antikythera_Mechanism_-_National_Archaeological_Museum%252C_Athens_by_Joy_of_Museum.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
No Verão de 1901, ao largo da
ilha grega de Symis, o capitão Dimitrios Kontos, da Marinha Real Grega,
liderava um grupo de mergulhadores não profissionais numa expedição
arqueológica. Eram apanhadores de esponja normalmente, mas durante aquele Verão
haviam sido contratados para retirarem artefactos antigos do fundo do mar. Fora
descoberta uma antiga galé romana e no esforço de expandir o conhecimento sobre
aquela civilização e o espaço grego na Antiguidade, o Governo patrocinou uma
investigação. Já se retirara variados objectos, desde ânforas a estátuas,
jóias, moedas, ourivesaria, pedaços belíssimos de um passado que no futuro
estaria exposto no Museu Nacional de Atenas. Nesse dia, um dos mergulhadores
subiu ao barco tremendo. Tendo já perdido dois homens para um estranho mal
desconhecido que afectava regularmente todos os mergulhadores de profundidade –
e que hoje sabemos ser a descompressão, quando demasiado nitrogénio se acumula
no sangue – o capitão acorreu para ajudá-lo, temendo novo problema. Mas era
apenas fraqueza. Vindo das águas cristalinas do Egeu, o homem trazia aquilo que
à primeira vista parecia uma pedra com alguns pedaços de ferro encrustados.
Cobertos de verdete, destacavam-se apenas por terem uma clara autoria humana.
Sem prestar muita atenção, Kontos juntou-o ao espólio que acumulara. Durante um
ano, essa pedra permaneceria esquecida na capital grega, sendo a atenção toda
devotada aos belos objectos artísticos encontrados nas profundezas dessa caixa
de tesouros helénica que é o oceano. Mas em Maio de 1902, o arqueólogo Valerios
Stais parou alguns segundos, mais do que qualquer outro antes de si, diante
daquele bloco calcário. Para lá dos potes e do bronze, arrancou-o do monte de
achados retirados do barco romano, no sótão do museu, e depois de algum tempo a
analisá-lo, a excitação tremeu-lhe o corpo. Aquelas peças de metal não eram
aleatórias. Entrincheiradas na rocha estavam peças de engrenagem. Aquilo era…
uma máquina. Quando comentou a sua descoberta com colegas, foi ridicularizado.
Era impossível. Segundo cálculos, aquele navio era algures do primeiro século
anterior a Cristo. Nem os Gregos, nem qualquer outra civilização era
sofisticada o suficiente para construir algo do género. Stais estava louco para
lá de Plutão.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Derek de Solla Price era, em
1951, professor de Matemática Aplicada em Cambridge. Decidira por esta altura
tirar um segundo doutoramento em História da Ciência e numa viagem de pesquisa,
visitou o Museu de Atenas, procurando informações sobre a civilização grega,
que ele considerava como fundamental no desenvolvimento do pensamento
científico. Como britânico, pôde manusear o património que não estava em
exibição. A sua atenção prendeu-se no mesmo bloco de rocha que espicaçara a
centelha de Stais décadas antes. Como Stais, reconheceu de imediato a bizarria
do que tinha em mãos; mas ao contrário do grego, Price tinha nome e crédito.
Nos anos seguintes, dedicou parte do seu esforço a tentar descobrir o que raio
era aquilo. Análises de raios X e raios gamma, efectuadas com um colega físico
nuclear, Charalampos Karakalos, deram ao mundo o inacreditável: dentro da
matéria densa estavam espalhados vários fragmentos metálicos, 82 ao todo, entre
eles rodas dentadas que Price e Karakalos não conseguiram contabilizar. Mas era
um aparelho mecânico, não havia dúvida. Na sua pesquisa, o britânico não
conseguiu, no entanto, divisar a sua função ou propósito. Percebeu que havia
instruções inscritas nalgumas peças e chegou a construir um modelo daquilo que
seria aquela estranha máquina antes de desaparecer no oceano. Mas morreu sem
descobrir afinal o mais importante. Apenas em 2008, uma equipa da Universidade
de Cardiff, usando tecnologia ainda mais avançada, pôde por fim reconstituir
digitalmente aquela contrapção.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Por esta
altura, era já conhecida pelo nome da ilha grega mais próximas dos destroços do
navio romano onde se encontrara aquela anomalia: o Mecanismo de Antikythera.
Apenas então o verdadeiro assombro do mistério se tornou real: estávamos
perante o primeiro computador jamais construído, uma complexa máquina analógica
que através de variáveis inseridas, realizava cálculos. Para isso, era apenas
necessário girar uma alavanca lateral e a volta das engrenagens… adivinhava o
futuro.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O Mecanismo de Antikythera seria
uma espécie de relógio de metal guardado numa caixa de madeira de 34 centímetros
por 18, com pelo menos 37 rodas dentadas que combinavam para fazer funcionar um
complicado sistema de cálculos astronómicos. A maior tem 14 centímetros e atrás
desta, estava montada outra mais pequena. Na maior engrenagem, a principal,
diferentes ponteiros indicavam informações respectivas. Para que servia todo
este aparato? Ora, o Mecanismo permitia descobrir onde se localizaria a posição
do Sol e da Lua vários dias e semanas e meses e anos no futuro, e também dos
cinco planetas conhecidos pelos gregos – Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e
Saturno. O seu movimento acompanhava e projectava as fases da lua durante o mês
escolhido, através de uma bola prateada no topo de um ponteiro, que girava
acompanhando esse movimento lunar. Havia também um calendário solar, já numa
escala de 365 dias por ano, seguindo o Sol através das sua posição nas
constelações do Zodíaco, o que mostra alguns conhecimentos de um fenómeno
conhecido como Precessão, que faz com que a nossa Estrela atravesse toda a
nossa cúpula terrestre num ciclo de dezenas de milhares de anos. As inscrições,
aliás, revelam algumas instruções para utilização da máquina, nomeadamente
contagens de tempo, escalas astronómicas e operações matemáticas. Numa delas,
encontramos o nome dos doze meses como fases do Zodíaco como os conhecemos hoje
– mas usando as designações egípcias. Outro ponteiro previa eclipses solares e
lunares, incluindo as possíveis cores e densidades. Era algo a que os Gregos
prestavam atenção por serem brutalmente supersticiosos. A máquina dava também
informações ao utilizador acerca dos futuros solstícios e equinócios, dado em
torno da qual girava a grande visão do Universo de praticamente todas as
culturas antigas, até mesmo as do Neolítico. Dado curioso e bem divertido: este
Mecanismo trazia embutidas também as datas de 42 grandes festivais religiosos
gregos, incluindo os Jogos Olímpicos. O utilizador da máquina, girando a
alavanca principal, conseguia saber quantos dias faltavam para a realização de
cada um. Era um calendário solar e astronómico; uma agenda,um contador
astrológico, um observatório dos astros e dentro do conhecimento limitado da
época, conseguia ter em conta os movimentos irregulares da nossa Lua através de
pequenas variações nas engrenagens que lhe estavam atribuídas dentro da
máquina.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Talvez a explicação científica
não ajude a entender o quão fora da norma é este objecto. Mas vou tentar fazer
perceber. As primeiras calculadoras com alguma sofisticação surgidas na Europa
aparecem apenas no século XVI; derivam de outras mais arcaicas do século XIV.
Ora, estas têm raízes nalgumas maquinetas utilizadas por matemáticos e
astrónomos muçulmanos, que provavelmente as foram buscar a Bizâncio, actual
Istambul. Na melhor das hipóteses, há entre mil e mil e quinhentos anos de
tempo perdido entre o Mecanismo de Antikythera e algo que lhe seja semelhante
em complexidade, sem que o ultrapasse na variedade de funções ou precisão de
engenharia. Um imenso vazio de conhecimento que ninguém consegue muito bem
explica. Para lá das duas perguntas imediatas: quem o fez? Como foi feito? A
primeira não tem resposta. Foram sugeridos vários conhecidos sábios da
Antiguidade como autores, desde Arquimedes (o Da Vinci do mundo clássico) a
Hiparco, astrónomo que para além da descoberta do cálculo trigonométrico, foi
também quem notou pela primeira vez, pelo menos reconhecidamente, o fenómeno da
precessão dos planetas no Zodíaco – embora se desconfie que os Egípcios, por
exemplo, também estavam ao corrente desse estranho evento. Qualquer um deles é
válido. A astronomia de Hiparco misturava a geometria grega com cálculos
astronómicos babilónicos, que parecem ter um papel importante no Mecanismo; e
Arquimedes é o autor de uma das grandes obras científicas da História, um livro
chamado “Do fabrico das esferas”, que segundo o escritor romano Cícero conteria
os planos para um engenho muito semelhante ao encontrado em Antikythera. Mas o
facto de terem sido identificadas duas caligrafias diferentes nas peças
encontradas indica vários construtores materiais, ainda que o sábio a ser
consultado possa ter sido apenas um. Seja quem for que tenha tido a arte e
habilidade para construir algo tão íncompreensível na sua execução. Os
arqueólogos acham estranho que algo tão importante, e de evidente origem grega,
tenha sido encontrado num barco romano. Mas talvez isso se justifique pelo
saque que várias cidades-estado do mundo helénico foram sujeitas durante o
período de expansão do Império Romano, que se efectuou mais ou menos no período
em que se aceita que esta intrincada maquineta foi construída.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
A complexidade do Mecanismo de
Antikythera supõe objectos antepassados que não se encontram. As suas previsões
do céu não são completamente precisas: diferem, por exemplo no casos dos
planetas, em um grau em relação ao que sabemos hoje ser a sua posição real.
Ainda assim, para o conhecimento do período, é extraordinário. Reconhecidos
cientistas como Richard Feynman e Jacques Costeau viveram fascinados com a
máquina – o francês chegou até a mergulhar em busca de outras peças que
pudessem ajudá-lo a esclarecer o mistério. No entanto, a mera existência deste
artefacto é em si um tremendo enigma que nos faz repensar a maneira como
avaliamos a sapiência<o:p></o:p></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
e Ciência daquele que nos precederam. É provável que este
fosse um conhecimento muito restrito e secreto, um aparelho a ser usado em
aulas e para quem quisesse tornar-se astrónomo. Na sua intrincada engenharia,
reflecte também a maneira como os Gregos viam o Cosmos. Não como uma imensa
algazarra sem sentido ou lógica, mas como fruto de cálculos e ciclos, de ordem
matemática. Como se fosse uma máquina complexa, cujas engrenagens, beleza e
segredos só vemos se prestarmos realmente atenção. Se nos entregarmos ao tempo
de contemplar, se aceitarmos o mistério como parte do ciclo maior da vida. Como
parte do seu próprio mecanismo. <br />
<br />Unknownnoreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-33130033429239612372020-03-16T16:13:00.000+01:002020-03-16T16:14:13.730+01:00A quarentena, episódio 1 - "A ilha dos mortos de Veneza"<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjvQJSjs-EtgTX8cZWJnN9aZlO4m5RPIdzTxSItDes49z3MN9xXoFyr6HBB_XqQWdGaDswfiYevYoGdUmhO7amC5o3-MMWTS5g2NAQJA9yUafzxntvlXOgmArtETcQOD7DKqLTv/s1600/Poveglia+Island.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="249" data-original-width="476" height="167" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjvQJSjs-EtgTX8cZWJnN9aZlO4m5RPIdzTxSItDes49z3MN9xXoFyr6HBB_XqQWdGaDswfiYevYoGdUmhO7amC5o3-MMWTS5g2NAQJA9yUafzxntvlXOgmArtETcQOD7DKqLTv/s320/Poveglia+Island.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Veneza sempre foi uma cidade à
espera de morrer. No momento em que foi tomada a decisão de construí-la sob
palanques de madeira numa lagoa pantanosa, nas 117 ilhas que, como sardas, se
espalham nos estuários dos rios Pó e Piave, um relógio começou a contar tempo.
Cada segundo caindo, cada gota de água trepando as paredes dos seus canais,
vigiando, ameaçando. Em dias de chuva e névoa, esse agouro pesa mais; e mesmo
por entre a fumaça ténue da humidade, que brota do mar e não deixa ver mais do
que a ponta dos dedos defronte da cara, alguns dos ilhéus pequenos da lagoa
surgem. Nos que hoje contam com gente, as luzes asseguram que ainda não
sumiram. Mas outros foram abandonados, deixados como náufragos que nunca chegam
à cidade. Por entre essa névoa, se concentrarmos o foco e a vista, surgirá em
ocasião uma torre alta, sineira, miragem. Mas existe. Encima a igreja de Santo
Vitale e marca da presença amaldiçoada da ilha de Poveglia. Ou como é conhecida
em Veneza, a Ilha dos Mortos.<o:p></o:p><br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Poveglia tornou-se sinónimo de
muitas coisas. Quase todas, sussurradas com medo de que se tornem realidade na
presença de quem as fala. Um último recurso desde a sua ocupação. Pairavam no
ar quando em 421 um grupo de cidadãos romanos, na fase de caos completo que
envolveu a queda do Império Romano do Ocidente, atravessou a lagoa veneziana
para se refugiar na ilha. O seu isolamento tornava mais fácil a tarefa de fugir
aos povos bárbaros que ajudaram a derrubar o Império. Sabiam que a ilha era
usada pelas autoridades romanas como despejo de doentes, párias pelo simples
facto de esgotarem a saúde própria e alheia. Dificuldades iniciais deram lugar
ao desenvolvimento de um povoado que se aguentou até ao século XIV quando em
1379, o governo da cidade-estado de Veneza, à altura uma das grandes potências
económicas e militares da Europa pelo seu papel no comércio mediterrânico,
forçou os habitantes a sair da ilha. O objectivo era a construção de uma
fortaleza octogonal que faria parte de uma rede de quatro, na ideia de proteger
a cidade. No entanto, as mesmas ligações comerciais que tornaram a cidade
opulenta e rica trouxeram também uma doença de propagação rápidas, contágio
fulminante e sintomas bem visíveis no destaque de bubões negros que se espalhavam
pelo corpo. Vinda da Ásia Central, a Peste Negra entra na Europa. Veneza é um
dos seus primeiros portos; e o mesmo isolamento que atracou em Poveglia os seus
primeiros habitantes dá-lhe um novo papel: o último refúgio dos enfermos. As
autoridades venezianas designam-na como uma das ilhas para onde os pestilentos
doentes devem ser evacuados, na tentativa de conter a epidemia. De início, na
paciência das horas escorrendo até à morte, deixando que cada um tome o seu
tempo; mas alguns meses depois, o processo passa a ser mais confuso. Aleatório.
Se antes a certeza da doença era o critério de quem era desterrado, o pânico e
a histeria, os festivais constantes de penitentes chicoteando-se na rua como
punição e pedido de perdão a Deus, a fuga generalizada de pessoas que deixam a
fervilhante Veneza, a cosmopolita Veneza, em algo saído de um filme
apocalíptico, levam a uma escolha menos escolhida. Qualquer cidadão mostrando o
mínimo sinal de doença, seja ela qual for, é enviado para a ilha. Muitos,
saudáveis, morrerão lá contaminados pelos verdadeiros doentes. Alguns serão
atirados para poços, cheios de cadáveres, e queimados vivos. Os gritos
ouviam-se do outro lado do mar. As cinzas dos falecidos entraram no solo e
misturaram-se com o terreno. 160 mil pessoas terão aqui gasto os seus últimos
depósitos de vida. Depois, aqui ficaram depositados, mas em morte. Mas não
todos: nas décadas seguintes, os venezianos que passeavam na costa deram muitas
vezes com lixo que se depositava também nas praias. Eram ossos. Queimados.<o:p></o:p><br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
O fim da vaga de Peste Negra
retorna a função militar a Poveglia. Mas não se livra do antanho de morte e
perdição que ganhou no entretanto. Tanto mais que a Peste, na<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>verdade, nunca sumiu completamente. A seguir
à Negra, veio a lepra e Poveglia virou também <i style="mso-bidi-font-style: normal;">lazaretto </i>daqueles que chegando nos barcos estivessem doentes. Por
decreto do doge de Veneza, governador máximo da cidade, os que mostrassem
sintomas deveriam permanecer quarenta dias em Poveglia e duas ilhas próximas.
Caso não mostrassem evolução da doença, entrariam em Veneza. Quarenta dias. Ou
como conhecemos hoje, uma Quarentena. Mais vidas perdidas em batalhas, mais
vidas perdidas nos marinheiros que acabam por morrer em Poveglia. A reputação
do ilhéu cresceu com os séculos, mas não demoveu o governo italiano de
aproveitar a calma e serenidade do espaço para instalar, em 1922, uma casa de
retiro. Pelo menos, era essa a versão oficial. O complexo aí construído recebeu
pessoas com distúrbios mentais numa altura em que esse conceito era pouco
definido. Em Poveglia, estiveram internados doentes de facto e doentes de
invenção, pessoas cujo comportamento estranho lhes colava rótulos de imediato.
Em primeiro com a Peste, depois com a incapacidade de entender os labirintos
torcidos da mente humana: Poveglia é um monumento erguido à capacidade de o
medo ser uma doença que tudo amplifica, que tudo confunde, separa e isola. O
medo é o mar que nos rodeia como ilhas e que nunca atravessamos. O medo dobra a
realidade e cria histórias, como aquela de que um médico desta casa de retiro
fazia horríveis experiência com os pacientes. Guardava as piores, desde
electrochoques até lobotomias sem anestesia, para uma sala que mandara
construir na torre de Santo Vitale. Numa noite de tempestade, caiu da torre e
morreu. Ninguém sabe bem como, mas uma enfermeira conta em linhas de medo que o
médico terá sido atirado por espectrais figuras, caras contorcidas de dor, exigindo
que a ilha deixasse de ser um espaço de dor. Na queda, o homem sobrevive, mas
rapidamente o envolve uma névoa branca que o arrasta para ninguém sabe onde,
nem a enfermeira, nem os rumores nos seus lábios. É uma história de pânico,
outra mais. É um boato que cria forma de bola maciça.<o:p></o:p><br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Em 1968, o espaço encerra e
Poveglia fica deserta. Até hoje. O Governo italiano proíbe visitas, me tem
tentado vender aquele rochedo, sem sucesso. Várias interessados fazem ofertas,
mas uma noite passada ali rapidamente lhes muda a ideia. Realidade ou não, a
Ilha dos Mortos vive da sua reputação. Em redor, outros ilhéus albergam hotéis
de luxo, <i>resorts</i> com vista privilegiada para a cidade dos Doges. Poveglia não.
Hoje, apenas alguns agricultores a usam, com autorização da cidade. Aproveitam
o solo verdejante da ilha para cultivarem aí as suas vinhas. As cinzas das
vítimas de peste tornaram-se integrais à terra, adubaram-na, fertilizaram-na.
Quando se remexe, ocasionalmente surgem ossos que o fogo não consumiu. Mas eles
não se importam. O que conta é que produz. Os vinhos feitos com a morte de
Poveglia bebem-se com a mesma alegria dos outros se não soubermos o segredo.
Não consta que tenham havido histórias de copos assombrados. Hoje, se quiserem
visitar à revelia, é pagarem a um pescador e ele leva-vos a Poveglia. Todos os
anos, um auto de danados procura a reputação amaldiçoada daquele lugar.
Recentemente, em 2016, cinco estudantes norte-americanos foram ali presos pela
Polícia Italiana, depois de ligarem aos bombeiros por necessidade de evacuação.
Falaram em vozes e gritos, em sombras nas ruínas. O medo é contagioso. Passa
tempo e espaço, fica nas paredes e nas árvores. À espera de fazer efeito. De
empestar. De nos tornar em ilhas.<o:p></o:p></div>
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-22136252228658706642020-03-09T22:24:00.002+01:002020-03-09T22:24:33.842+01:00Fachinação 22: Chegada a Pequim<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDFUPfM5AOf07WlLE3bwBhRaBcniAzIIpWZqx0tUyBTAu31gXf3cVhoyyrz-9mav7yCNSKRL2TAA8522BfaUp3CuNVbBFmOLQYhR40yz16eFDK1wkM4OVnwtJlmnu5d_JN6X0Y/s1600/DSC_0515.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1064" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgDFUPfM5AOf07WlLE3bwBhRaBcniAzIIpWZqx0tUyBTAu31gXf3cVhoyyrz-9mav7yCNSKRL2TAA8522BfaUp3CuNVbBFmOLQYhR40yz16eFDK1wkM4OVnwtJlmnu5d_JN6X0Y/s320/DSC_0515.JPG" width="320" /></a></div>
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Não quero acreditar e no entanto ali está. Um dos logotipos mais reconhecíveis em todo o mundo, resistindo a desaparecer no barulho e bulício da estação de comboio de Lanzhou. Passei a viagem quase toda, esta semana em meia em território chinês, fazendo piadas com aquilo e nesta cidade que marca praticamente a fronteira entre as duas Chinas - uma a Oeste, desertificada, onde temos passado os nossos dias; outra a Leste, urbana, dinâmica, onde a ponta final da travessia se desenrolará - surge por fim um McDonalds. Depois de jornadas a contornar os perigosos rochedos da comida chinesa, do orientalismo gastronómico que tem sido uma experiência e desnivelada para o meu estômago, a promessa de familiaridade. Há tempo para almoçar. Apesar de alguns atrasos com a camioneta, que encontrou alguns problemas mecânicos à saída de Xiahe, a viagem correu tranquila. Pelo meio, as temperaturas frias do Tibete, com o céu carregado e de fronha zangada, deram lugar a um calor abafado, a um sol que nos recebeu no terminal de camionagem de Lanzhou. Onde, diga-se, ainda nos perdemos um bocadinho com o sistema chinês de conduzir os passageiros até à saída. Chinesices. Mas precisando todos de almoço, o movimento comum é rumo aqueles dois arcos dourados armados em estrada de tijolos amarelos rumo a Oz. Sim, nós sabemos que as corporações são más. Sim, a McDonalds tem um historial muito questionável no tratamento de animais. Sim, estamos num páis cuja reputação de higiene na zona de restauração é ruinosa. Mas depois de chop suey, zhajiang mian, pidan dofu ou gao dian, entre outras dezenas de pratos igualmente impronunciáveis, sinto-me pronto para não ser surpreendido. A não ser que os Big Mac aqui na China sejam estufados e com carne de cabra. É possível. Afinal, outra especialidade do país é pegar numa patente industrial, retransformá-la com ligeiras alterações e apresentá-la como um produto novo. Isto até pode nem ser um McDonalds, de facto, mas um MingDonalds, uma versão chinesa da <i>franchise</i> estaduninense. De malas a reboque, entramos no restaurante como turistas. Está cheio e vamos esperando para que lugares vaguem de maneira a podermos sentar-nos. Alguns vão já pedindo. Os funcionários percebem zero de inglês e encaminham-nos para um menu geral com imagens, embora todas as legendes se apresentem em mandarim. Quando me toca a vez, tenho de recorrer à memória visual. As minhas idas a esta cadeia de <i>fast food </i>são raras e inserem-se sempre numa lógica prática de comer algo para enganar a fome quando estou em território desconhecido ou pior, num centro comercial. Invariavelmente, opto pelo pelo Big Mac, porque assim como assim aquilo sabe (ou não sabe de todo) ao mesmo. Espera-ns uma viagem de oito horas até Pequim e não quero ri de estômago vazio. Acho que encontro a imagem do que procuro. Peço. Só há Coca-Cola, bebida que não aprecio, e como tal, requisito água. Indicam-me que vai demorar, o não percebo de imediato. Alguns minutos depois, chamam-me. Testo pelo olfacto: o <i>hamburguer</i> chinês tem um cheio muito parecido com que posso encontrar em Portugal. Abro a caixa . o mesmo design, apenas muda a linguagem - e ali está ele, uma cópia de uma cópia. Ao lado, batatas fritas. É a minha primeira tentação e pecado a que cedo. Já não comia isto há algum tempo. Abençoados belgas. O meu estômago deve ter entrado em choque, traumático provavelmente, mas não vacila. Desaparece em poucos minutos e por momentos, saí da China e sinto-me algo revigorado, pronto para aguentar os últimos três dias na capital chinesa, imerso na comida local, disposto a aguentar as últimas refeições agridoces e de molhos fortes, com proteínas que não reconheço e apenas lido com instinto. Senti-me libertado.<br />
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Oito horas até Pequim. Parte do meu cérebro acaba de ler o "Easy riders, raging bulls", a outra vai percorrendo a investigação que fiz acerca daquela que é, segundo algumas estatísticas, a cidade mais habitada no planeta: vinte e um milhões e meio de habitantes (vinte e quatro, se contarmos a zona metropolitana). O aumento da influência chinesa no mundo pode verificar-se até pela maneira como o nome da cidade mudou nas referências ocidentais. Os aeroportos costumavam, por exemplo, anunciar a cidade como Peking, que foi uma anglicização do nome em mandarim. A versão portuguesa é aquela que usarei nesta e nas próximas crónicas. No entanto, os Chineses nunca ficaram muito satisfeitos com isso. Mais um sinal de prepotência ocidental. Quando o rumo da economia planetária começou a virar a Oriente, os países ocidentais mudaram o ritmo e seguiram outra pauta. Porque actualmente esta não é apenas uma cidade chinesa, mas planetária. Xangai continua a ser o centro económico da China, mas os turistas estrangeiros dirigem-se a Pequim, procurando a tradição chinesa como ela é filtrada para o exterior. É o ponto fulcral da cultura, da sociedade, da arte, da educação, da ciência. É a única cidade em todo o país que é governada directamente pelo próprio Comité Central. Mas para além de todas estas modernices, e o que é mais importante, Pequim apresenta-se como uma das cidades mais antigas do mundo. nem sempre como capital dos reinos e impérios que antecederam a actual nação comunista. O seu nome significa aliás "capital do Norte" e é um de entre vários pelos quais a conheceram: Jixian, Yanjing, Najing, Zhongdu, Shuntian... Apenas em 1949, numa reunião do Partido Comunista Chinês, a versão actual se tornou orbigatória no uso público dentro do país. É também o ano onde é escolhida como capital única da nação chinesa. A cidade é uma colecção de máscaras, uma projecção de séculos e dos homens que os habitaram; e de todas as Quatro Grande Capitais da China, o quarteto de urbes maiores que a certo foram o foco de toda a vida política da nação nas suas várias versões, é a única que ainda conserva o seus estatuto. As restantes (Xi'an, Luoyang e Nanjing) assumem hoje o seu papel mais secundário na vida do país.A China é Pequim, de certa maneira e o futuro passa por lá. Não é à toa que existem no seu espaço noventa e uma universidades. Tenho-me tentado preparar mentalmente para esta enormidade. A maior cidade onde passei até hoje deve ter sido Lima, cuja população não é metade da de Pequim. Questiono a sua organização - ou falta dela - a circulação, a enxurrada assustadora de pessoas, que é afinal aquilo de que fujo. No entanto, ninguém me obrigou a viajar para a China. Sou aquele paradoxo semi-giro. </div>
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A minha primeira impressão de Pequim, quando saio do comboio de alta velocidade após a chegada, é de um calor opressor. Estava avisado que esta zona é árida, rodeada de montanhas, mas também com um clima desértico. Tenho ideia de suar um lago interior enquanto me encaminho para a praça de táxis, que está à pinha. "À pinha" é, acredito , o lema não oficial da cidade. O comboio estava à pinha, a estação também, os corredores e passagens e cantos igualmente. Estou crente de que se abrisse agora uma tampa de esgoto, brotaria do interior uma multidão de olhos em ecrãs de telemóveis, escolhendo direcções várias, ignorando dificuldades ou sociedades. Pequim é gente, gente que quer entrar em táxis, gente que procura rumo, gente que na sua vidinha quer apenas chegar ao fim do dia. É nesta Pequim que nos enfiamos. O nosso condutor é já idoso e não sabemos bem sequer se entendeu as direcções que lhe demos para o hotel. Assentiu que sim, mas com aquele ar inexpressivo e olhos vítreos que já encontrei com alunos a quem faço perguntas que começam com o verbo "explicar". Mais certo fico desta suposição quando reparo que segue com fidelidade canina um colega que levando outros do nosso grupo lusitano, mostrou lidar muito melhor com o idioma de Shakespeare e principalmente com a aplicação do Google Tradutor. São dez e meia da noite, a humidade faz-se sentir nos corpos pingados e o trânsito é o de uma hora de ponta em Lisboa multiplicada por dez. A Pequim que percorremos é de longas avenidas que não aparentam ter um ponto final, nem de fuga. As luzes dos semáforos perdem-se na neblina do fumo industrial e do rádio brota a suavidade dos estilo pop arcaico chinês, instrumentos de sopro histéricos e voes que parecem lamentar perdas de vida durante os tempos em que o Exército de Terracota era apenas lama no chão. O nosso homem ao volante perdeu um pouco a noção e os nossos olhares cruzam-se na conclusão de que perdeu o colega de mira. Há um momento de reorientação do GPS cerebral, umas palavras ditas em chinês num tom que adivinha asneiredo mandarim e de súbito, uma guinada e aceleração por entre o trânsito. Entre perguntar-nos novamente o destino e uma busca desesperada pelo colega, a segunda opção protege o orgulho de qualquer beliscão. Entre tantos faróis e barulhos e movimento, interiorizo essa lição que aprendi neste gigante país: deixar-me ir porque controlo zero e uma vez chegado onde quer que esta onda me transporta, preocupar-me com as coisas por lá. Não adianta muito stressar. Já basta o que existe palpável de cada vez que abrimos a janela. O silêncio no carro existe porque sinceramente, estamos todos cansados deste esticão de oito mil quilómetros a que nos sujeitámos. Um mundo, quase. Dez Portugais de norte a sul; e nós fizemo-lo semana e meia apenas para deambularmos no trânsito pequinês sem grande noção se vamos parar à Coreia do Norte ou à Talândia quando o táxi parar e a porta abrir.<br />
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Mas a porta abre e o que nos espera é a rua. O nosso taxista vem ajudar-nos a tirar as malas, com rapidez e algum despacho; deve estar doidinho por voltar a aturar compatriotas, daqueles que se expressam em mandarim. Procuramos o Jiangshan Garden Hotel, um hotel que pelo mapa fica algures no meio dos labirintos de ruas estreitas que fazem parte da Pequim mais antiga, São os Hutong, os bairros históricos, decadentes, típicos, patuscos e cheios de personalidade de uma metrópole cada vez mais engolida por aquilo que se tem convencionado chamar de progresso. Estradas pouco mais largas do que um carro originam becos apertados onde passamos dois a dois, enfiando por habitações baixas e pequenas, portas que parecem de cofre e muitas vezes me põem a adivinhar acerca do que se esconde do outro lado. Quando abertas, contemplo jardins interiores ou uma divisão apenas de espaços amontoados e habitantes suados, com pouca roupa. A origem deste género de casas e ruas é medieval, do século XIII, dividindo os bairros da cidade de acordo com o estatuto social. Quanto mais perto vivia da cidade proibida, mais importante seria o cidadão; e os Hutong que vejo hoje, palavra mongol que significa "poço de água", começavam a alguns quilómetros da residência do imperador. São minúsculos e de materiais humildes e comuns, o contrário daqueles que pertenciam às altas castas imperiais, normalmente com grandes jardins, telhados coloridos, decoração com materiais caros e raros. A esmagadora maioria foi desenhada de Este para Oeste, pois as suas entradas procuravam a direcção da luz do sol para melhor iluminação. Quando terminou a era imperial, no início do século XX, este sistema social colapsou. A proliferação deste tipo de bairros perdeu personalidade e organização e eles foram aparecendo, sem regras por toda a periferia de Pequim, sem qualquer tipo de distinção entre si. Boa parte foi destruída durante os períodos de guerra civil consecutivos que resultaram na Revolução Comunista de Mao-Tse Tung em 1949. A modernização de Pequim, onde as largas avenidas e os edifícios residenciais com vista a acomodar uma população cada vez mais crescente, ajudaram a que a maior parte dos originais desaparecesse. Mas alguns continuam a existir. Como aqueles em que circulo nesta noite. Luzes tépidas, animais que cosem as sombras, o barulho muito difuso de televisores e transístores, com alguns berros entre cortados de famílias que discutem. Existem um pouco pelo encanto turístico da viagem no tempo. Como se até os próprios burocratas percebessem que no centro de poder, neste símbolo do país que é uma capital milenar, é mais difícil exterminar culturas antigas. Estamos a falar de locais com personalidade própria, cada bairro com uma história particular, figuras, mitos, folclore. Afastados da opulência da Cidade Proibida e do Palácio de Verão, a verdadeira Pequim viveu aqui à sombra de séculos. Onde a cultura é popular e a gastronomia próxima dos gostos mais comuns refinados pelo paladar do tempo.<br />
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O hotel localiza-se no hutong de Sanyanjing, perto do centro, mas quase um mundo à parte. Juro que já nem consigo ouvir o bulício do trânsito que me consumiu na viagem até aqui. É como se alguém desligasse o ruído com um simples aperto. O nome significa "Poço das três bocas" e forneceu durante água ao Palácio da Cidade Proibida durante vários séculos. Esta área ainda é nobre nos tempos actuais: de Deng Xiaoping, antigo Presidente chinês, até Rupert Murdoch, actual presidente das fake news, muitos famosos têm casa na zona exterior a Sanyanjing, um bairro conhecido por Jiangshan. É precisamente esse o nome do nosso hotel. Quando chegamos, eu sou o primeiro. Toco a uma campainha do meu lado direito e estaco olhando as portas de madeira que se abrem para dar a conhecer a sorridente cara de uma hora chinesa. Num inglês relativamente ágil, saúda-nos e convida à entrada ajudando com as malas. Uma outra jovem surge para acompanhá-la. O check-in demora alguns minutos. Despachamo-nos e outra porta leva-nos a um pátio interior com mesas, sombrinhas sofás, iluminado por trémula iluminação de velas, espantando para um longe próximo a noite que nos envolve. Sinto.me cansado de te estar sentado a maior parte do dia, da extensão das ligações de viagem, dos transportes. Do lado sujo de viajar, resumindo. Preciso de cama e quarto e do meu espaço interior. De descanso, basicamente. Minutos depois, as minhas coisas estão prostradas no chão e eu esticado na cama, ar condicionado ligado, um planeta a destruir pelos meus impulsos e caprichos egoístas de ocidental acomodado. Antes de tomar banho, informo a minha família de que estou bem e dou graças ao VPN. O Hélder mostra-me então uma nota escrita de forma macarrónica, desejando-nos uma boa estadia, agradecendo a nossa escolha, saudando a presença do Vítor Costa... o dono da empresa com a qual costumo viajar. Nesta noite em Pequim, somos todos Vítor Costa de uma maneira ou de outra, os donos da viagem. Devia ir jantar, mas não me apetece. Como qualquer coisa que tenho na mochila para ir enganando o estômago. Há-de chegar até amanhã de certeza. Quem nunca viajou para fora de resorts eou cidades europeias bonitas ignora o quão penoso para o corpo se torna uma viagem para quem decide calcar fora dos trilhos mais comuns do viajante. É uma escolha assumida, mas que se paga e aqui deitado, na noite quente, começo a entender o preço. Deixo-me ficar mais uns minutos, a tentar perceber se tenho saldo. Amanhã a volta vai ser</div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-18217727034366908822020-03-01T22:16:00.003+01:002020-03-01T22:16:51.523+01:00Fachinação 21: Daqui para ali<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
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Um tempo houve em que a natureza humana pedia mudança constante. Sem raízes, tribos de primatas que se tornariam humanos vagueavam em busca de recursos e vivendo um dia de cada vez, um lugar a cada dia. Com o advento da civilização, cidades e aldeias foram fundadas pelo desgaste que um estilo de vida nómada causava nos nossos corpos e nas nossas relações um com o outro. Em vez de rivalidades móveis, passámos a implicar de maneira estacionária; e é dessa forma que a casa se tornou um monumento à inércia. A qualquer um que se ofereça um emprego ideal, a maioria terá como condição um local para assentar e passar a vida na rotina do mesmo. Algo que eu entendo muito, sendo por enquanto professor - função que me obriga a ser uma espécie de emigrante dentro do meu próprio país à conta do Ministério da Educação. Apela-me pouco, mesmo sendo de História nem todos os apelos do meu humano primitivo ainda batem fundo, mas tenho um amigo que tem feito dos últimos anos uma imensa tômbola de países e não quer agora outra coisa. Trabalha para viver os dias, para viajar, para comer e se hoje está, por exemplo, na Austrália, amanhã pode aparecer no Vietname e duas semanas depois na Macedónia. Sente-se feliz por vaguear sem vagabundear, por conhecer. Quando me gabam a coragem de embarcar para países longínquos, diferentes, sinto.me sempre um berlinde. Porque coragem tem ele: ele vive de facto, eu apenas estaciono e pago tarifa para ir estando. O nomadismo, apesar do que pensamos, não é assim tão incomum. Deverão existir ainda hoje entre vinte a trinta milhões de nómadas em todo o mundo, a maior parte na Ásia. Vão desde os mongóis que passeiam<i> yurts</i> de um lado para o outro até às tribos removidas da civilização das selvas amazónicas ou indonésias. A palidez da roupa beduína sobressaindo no calor dos desertos africanos; a adoração fiel que os Tingit do Alasca têm pelo mar e seus recursos; os Nukak-Maku, que nas profundezas da Amazónia colombiana ainda vivem como caçadores recolectores de há milénios. Ainda é um grupo numeroso de gente que prescinde de compromisso com um local, e nem sempre porque sejam forçados a isso. Na verdade, o avanço do chamado progresso quer muitas vezes, e à força, retirar estes errantes de algo que herdaram de gerações, e conhecem no seu sangue num depósito cultural de séculos, essa vontade inegável de partir e buscar, de trânsito permanente de sítios. Mas eles resistem; e penso sempre que eles têm aquela vantagem que perdemos com a nossa confiança cega em tecnologias, aquela manha de sobreviver que hoje entregamos a circuitos de silicone e sinais de satélite. Na eventualidade de um cataclismo, serão estes habitantes da realidade que reerguerão o mundo, não a nossa inépcia perante o desastre, procurando com desespero a muleta do telemóvel como solução para todo. O mundo é dos nómadas, e não apenas nos seus caminhos.<br />
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Por isso sempre me despertaram curiosidade. Quando visitei o Quirguistão, em 2016, pude observar o seu modo de vida, a maneira como Inverno e Verão não são apenas ocasiões para mudar roupa do armário. Marcam um ciclo, marcam um momento: a altura de mudança. Seguem o ritmo das estações e da Natureza, não sendo menos empáticos ou pais por isso. Têm as mesmas preocupações do que eu ou tu que estás a ler, honestas e preocupadas. Apenas escolhem outro meio de cuidar delas. No planalto tibetano, este estilo de vida ainda está presente, o que acaba por me fazer sentido pois as condições naturais são muito semelhantes: relevo montanhoso, vales de planalto verdejantes, cursos de rio e lagos produto do degelo das neves e dos glaciares. Viver aqui significa perceber como estamos dependentes do planeta. Talvez fizesse bem a alguns decisores umas semaninhas afastados de tudo. Depois de conhecer o lado místico desta região, o dia foi tirado para visitar o Tibete real. Num passeio algo fora de tudo, vamos visitar algumas comunidades nómadas que ainda vivem nas planaltos montanhosos, num estilo de vida muito puro e próximo daquilo que era há dezenas de anos, centenas até. Saímos a meio da manhã e antes de nos aventurarmos para lá as casas e aldeias, paramos junto ao Lago Gahai, uma pequena área pantanosa localiza na reserva natural do mesmo nome. É um local de biosfera muito específica e pode ser observado a partir da estrada. Aproveitamos para umas fotos, com uma vista que fantástica muito verde. Uns passadiços de madeira contornam umas das margens do lago, com pontos de observação espalhados por um percurso que se espalha por meio quilómetro. Conseguimos observar alguma aves pernaltas, nomeadamente a garça de pescoço negro, uma das aves mais raras do continente asiático. Acredito, pela quantidade de água aqui localizada e o número de pequenos rios e riachos que aqui desaguam, que este deve ser um local muito importante para as comunidades locais, agricultores e pastores à cabeça. Mas para mim, que só vejo tudo isto como um festim para os olhos, descanso a vista e até algo mais. Depois da melancolia da tarde anterior, sinto uma necessidade visceral de acalmar; e para mim, o bálsamo maior é a distância do mundo e a essência do mesmo. A paisagem, a minha reunião comigo. No regresso aos carros, más notícias para alguns: avaria. Os condutores dão voltas debaixo do <i>capot</i> mas o problema não se resolve assim. Esperamos uns minutos pela chegada de uma nova viatura. A nossa sorte foi de estarmos ainda a pouca distância de Xiahe, o que não atrasou muito o tempo que temos para passeios e explorações. A estrada recebe.nos novamente e depois de quilómetros de pavimento lisinho e bem tratado, um desvio para a direita leva-nos a um pequeno aldeamento centrado numa escola e num recinto de feira. A partir daqui, a civilização passará a ser gradualmente um rumor. A estrada continua, mas os buracos dão-lhe o aspecto do couro malhado de uma vaca.</div>
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Ainda são algumas dezenas de quilómetros nisto. A velocidade diminui em obrigatoriedade, a paisagem não muda, mas acalma. O único toque da mão humana está em cercas de arame e casebres de madeira. Mesmo as habitações se tornam portáteis: é frequente vermos montadas tendas iglo à beira da estrada, abrigos de pastores que saíram para dar um giro com os seus rebanhos. Em ocasião, carrinhas com antenas de televisão, sinais de habitação da maneira mais liberal de usar a palavra. Mas para mim, a principal mudança é a liberdade total de câmaras e microfones. Não se vê um único poste que não seja de electricidade. O Estado chinês demitiu-se das tarefas de vigilância, ainda que a sua presença seja sentida pelos nómadas tibetanos de outras maneiras. Primeiro, numa manobra que percorreu todo o Tibete e até zonas próximas como Sichuan - conhecida como a província dos pandas - tentou forçar todos os nómadas a instalar-se nas cidades. Não resultou, porque, como seria de prever, estamos a falar de uma cultura de milénios que nem o todo poderoso estado chinês pode terminar por decreto. E porque é que não resultou? Porque embora toda a esta gente aproveite o Inverno para usufruir de todas as comodidades oferecidas pela vida urbana, como electricidade e a beleza que é o consumismo, chegado o Verão as suas casas ficam desertas e lá regressam eles aos prados e às montanhas. Na verdade, se perguntarem a alguns, nem gostam de viver em casas. O mundo é a sua casa, e chega e já é muito. Têm uma responsabilidade maior para com os seus animais, levá-los até aos pastos férteis e fartos para que não morram à fome. A partir da estrada que percorremos, algumas manadas são bem visíveis e em ocasião, abrandamos ainda mais para que algum grupo de iaques se abra de par em par como se fosse o Mar Vermelho bovino. Imagino que ser nómada é também não ser egoísta, perceber que se faz parte de algo muito maior e que somos apenas um pecinha que faz tudo funcionar se fizermos o que nos cabe. Há algo de humildade nisto, uma espécie de submissão diferente da religiosa. Na verdade, é abdicar do controlo para tomarmos conta de coisas muito mais importantes do que o ego. Nalguns pontos do Tibete Chinês, o Governo construiu uns parques aventura para que qualquer um possa ver <i>in loco</i> como se vivem estes costumes ancestrais... ainda que, à vista de todos, faço os possíveis por eliminá-los. Mas aqui em Gansu, não encontraremos nada disso. Do lado direito vejo um pequeno ribeiro que atravessa um verde vivo que flui e existe bem. Torna-se também visível um conjunto de <i>yurts</i>, guardados por cães e rodeados de animais. À porta de um, algumas pessoas trabalham, lavam louça. O céu ameaça chuva, carrega de nuvens o ambiente. É o nosso primeiro ponto de paragem.<br />
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Somos recebidos por um homem jovial, mas que já deve ter uns quarenta anos. Abre-nos a porta da sua tenda e é como se nem fossemos estranhos. Há uma divisão em duas partes: do lado esquerdo, o espaço de trabalho, principalmente culinário. Existe um fogão a lenha, com uma chaminé que sobe até desaparecer por um buraco no topo da tenda. Do lado direito, tapetes espalhados pelo chão indicam a sala de estar, espaço para receber e onde nos convidam a sentar. Reparo imediatamente, porque se torna impossível de ignorar, num armário mesmo à nossa frente onde se destaca uma fotografia A3 do Dalai Lama, sorrindo, abençoando. Ali mesmo à descarada, sem medo. Um sinal óbvio de que as autoridades chinesas não devem passar aqui muitas vezes; ou então um gesto de coragem e arrojo que marca uma posição bem vincada. De que, afinal a uniformização cultural não tem lugar aqui onde a civilização é só fumo branco. Para nos aquecermos, oferecem uma tigela de leite que passa entre nós. Experienciado por outras aventuras, presumo que é leite fermentado, e é mesmo. Oportunidade de passar a quem está ao meu lado. Uma mulher, enquanto nos aquecemos, vai amassando algo que, descubro depois, é um pão feito com leite de cabra. Pelo menos não é de égua. Apesar do frio que faz lá fora, e de um vento que ruge na violência dos sopros e faz tremer a lona, o espaço e o ambiente é bastante acolhedor. Vamos perguntando acerca de como vivem a vida e o homem que nos recebeu, num inglês fluente, esclarece e responde. É incrível como no fim do mundo se domina melhor uma língua estrangeira que nesses locais onde há escolas e meninos que vivem como deve ser. Questiono-o mesmo acerca disso e explica que aprendeu na tenda, com uma professora que percorre as comunidades nómadas e dá aulas aos meninos e meninas que assim queiram. Diz que hoje em dia já há menos professores, mas que ele próprio vai ensinando os próprios filhos nas coisas básicas e também na cultura e religião dos seus ancestrais. Quando chamado à atenção do descaramento da foto do líder religioso budista, encolhe os ombros. Ninguém nota; e também, quem é que vem aqui? Estamos a quarenta quilómetros da cidade mais próxima e não há aqui nada que interesse. Aqui estamos sossesgados, livres e sem chatear ninguém. E penso que, se calhar e enquanto não chatearem, também podem por ali estar. Noutras regiões tibetanas, têm acontecido demonstrações públicas de descontentamento, nomeadamente episódios de auto-imolação de monges em templos. Mas aqui não. Tudo tem estado relativamente calmo; e por isso mesmo, o pão que a mulher elabora não deve ter rugas de tensão.<br />
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Mas enquanto não há pão, cria-se agitação. Como a chuva parou, inventa-se o passeio, só mesmo para sentir este ar puro da montanha e mergulhar os pés no verde da erva. Um pequeno percurso até ao topo de um montículo aguarda-nos e a guia será a filha do casal, uma jovem que desde que cheguei não deixou o telemóvel por um segundo. Uma túnica púrpura envolve-a e por cima dela, um kispo da mesma cor. Pelo menos, faz <i>pendant</i>. Saimos do yurt e ela aponta-nos o topo do monte que será o destino dos nossos passos. A distância não deve passar os seiscentos, setecentos metros e é linear o suficiente: primeira parte plana até a terra inclinar gradualmente. Este é também um parte da zona de pasto, pelo que devemos ter cuidado não apenas com animais, como com cercas. Nem todos se dispõem ao desafio, somos oitos. O frio arrepia e o vento forte continua constante, logo parecemos múmias. No entanto, entre piadas e boa disposição, os elementos são enfrentados e a nossa guia, negligente para com a sua tarefa, continua vidrada no ecrã do telemóvel. A China não chega cá de uma maneira, mas planta-se de outra. Espertos. A altitude sente-se, mas de fininho e como tal, engreno um passo que me permite distanciar do resto do grupo. Olho para trás e alguns meteram conversa com a jovem; esta mostra-lhes qualquer coisa no seu aparelhinho móvel, que mais tarde me contam ser uma foto do namorado e algumas outras imagens dela mesma em cenários bem mais de veraneio do que este e com bem menos roupa. Estranha como a noção de privacidade se mantém por aqui, embora reflectida de outra maneira diferente. Depois de alguns desvios - porque a nossa guia não guia, é apenas esguia - atingimos o objectivo. Alguns deitam os bofes, mas não dão o tempo por mal empregue, pois a paisagem é incrível. Conseguimos observar um verde que se estende por dezenas de quilómetros, sem grandes elevações, mas num vale articulado extenso, onde ocasionalmente se vêem iaques e cabras em rebanhos e manadas pastando. São reticências num mundo que se nos abre sem finais ou parágrafos, apenas exclamações. Fotografo o que parece monotonia, mas é na verdade uma terra que respira, numa liberdade condicionada, mas ainda assim liberdade. Percebo o apelo de não permanecer num só local, a vontade de expandir o horizonte e descobrir o que existe para lá do limite da visão. A paisagem cria apetite, recusar o sedentarismo é uma maneira de matar a fome. Enquanto bato umas chapas. a dama do telemóvel surge à minha frente, de um lado para o outro. Imagino que procura o melhor local para ter rede. Quando pára, cria um contraste de cores incrível, que lhe é alheio porque só existe o que vê num pequeno quadrado com luzes e <i>pixels</i>. Mas fico com ela numa imagem, e com uma terra que é dos seus pais e que será talvez sua, embora me pareça que a sua cabeça é nómada para outro género de vida diferente daquela que a sua família escolheu como sua e os orgulha. No regresso, ninguém cai. Nem mesmo ela. O corpo, mesmo sem ver, já deve ter criado um piloto automático seguro.<br />
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O pão estava óptimo. Mas não nos enche o bucho. Continuamos
a precisar de algo mais substancial. De um almoço. Despedimo-nos dos
hospitaleiros nómadas e seguimos a estrada dos mil buracos. Não tem tijolos amarelos, mas, como descobrimos uns quarenta minutos mais tarde, vai dar a Oz. Uma espécie, pelo menos. Um conjunto de casas a que hesito chamar de aldeia, sem ruas organizadas, mas claramente com uma população, por muito transitória que seja. São habitações do fim do mundo, ou pelo menos do entroncamento que pode levar ao vim do mundo. Quatro caminho chegam aqui e em qualquer um que a vista repouse, não encontra um fim. É como se conduzissem todos aos infinito, embora saiba que isso não é possível, quanto mais não seja porque acabámos de chegar aqui através de um. O condutor do nosso carro aponta-nos para um casebre, paredes de cimento e telhado de madeira com placas de zinco. Um alpendre exterior está coberto e por isso, alguns homens, com vestimentas que para mim são exóticas, beberricam chá e umas cervejas. Ergo o braço em jeito de saudação e os olhares de estranheza dão lugar à curiosidade sobre a minha figura. Instalamo-nos num espaço interior e após sentarmo-nos à mesas, separados conforme os lugares existentes, tenho vagar para estudar este micro-cosmos. Quase toda a gente tapa a cara, seja com máscaras cirúrgicas ou com panos e lenços. Se não soubesse melhor, diria que entrei na série "Naruto". Chapéus de feltro altos, grossas samarras, casacos pretos e dourados. O tecto em padrão xadrez vermelho e branco, paredes cobertas com um papel saído do século XVI: Mas há televisão e é LCD. Aliás, tecnologicamente nem me queixo, uso a rede <i>wifi</i> mais confiável da viagem até agora. Alguém vem à mesa informar sobre as duas únicas hipóteses de refeição e escolho <i>noodles</i>, naquela que será a minha estreia. Sim, nunca comi <i>noodles </i>e vou fazê-lo pela primeira vez na China. Sou mesmo patrão. Todas as mesas têm pauzinhos à disposição, logo não preciso de me preocupar com isso. Então, a sala pára com a entrada de três figuras, das quais se destaca com naturalidade um homem que só posso descrever como um Johnny Depp chinês. Apolíneo na pose, esplendoroso no guarda-roupa, é um rebelde sem causa na estepe. Quando se senta, fixa os olhos nestes ocidentais que ocupam o espaço. Não mostra qualquer tipo de distância, lida connosco como se lhe fôssemos naturais. A comida chega e já ele aceita pedidos de fotografias. Dez minutos depois, senta-se junto ao Mário e olha-o embevecido enquanto este fala e se explica numa língua que ele não entende. Ainda que não peça isso, domina tudo e acho que até me esqueci dos <i>noodles</i> (recordei-me agora, estavam bons) enquanto observo a cena decorrendo. Isto é uma espécie de <i>Cheers</i> tibetano e esta figura, não sendo empregado de balcão, é o Sam Malone do sítio, concentrando atenções, piscando o olho às garotas. Dono deste fim do mundo, representa o exotismo que encontramos quando abandonamos o caminho seguro e trilhado, quando vamos um bocadinho para lá da realidade. Encarna muito do que me faz viajar, mesmo quando me sinto no poço, mesmo quando me sinto estrumeiro. Pela oportunidade de estar onde o inusitado acontece e não apenas vê-lo através de um ecrã ou ouvido numa história contada.<o:p></o:p></div>
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No regresso a Xiahe, o tempo não melhora e a chuva forte fustiga várias pessoas que caminham no nosso sentido. São peregrinos, que ainda têm umas boas dezenas de quilómetros para fazer, sem qualquer abrigo de permeio. Ainda apanhamos alguns ciclistas também, mais equipados. A minha mente regressa à relação entre religião e dor, mas rapidamente se dispersa na beleza da paisagem, na liberdade da mesma. De como mesmo com aquela dor do lado esquerdo que circula também na minha barriga, é a paisagem que me torna nómada, pelo menos nessa difusa noção que é a alma. Preso a mim próprio, e a pesos que há demasiado tempo me contorcem e estacam, talvez seja nesta busca pela próxima visão que encontro algum tipo de solução para o problema. Não considero isso um motivo suficiente para peregrinar ou me converter, mas pelo menos, é algum tipo de epifania. Buda já devia contentar-se com isso. </div>
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Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-40312813178994654712020-02-24T23:42:00.002+01:002020-02-25T14:27:28.572+01:00Fachinação 20: Negócios<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOyHdb8tuA1FR3EaWi7sS9TM_zlOG5_8WkmusDyseJ0C_NUwsLeP6GVKbswOwbmPAke9lTOlg1UWGsF12Wf6iLS1PLMobdKT7bY9yoXf-UERhaIixhmAN0EzW6sv6hJ84Z4oXN/s1600/DSC_0286+-+C.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1600" data-original-width="1065" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOyHdb8tuA1FR3EaWi7sS9TM_zlOG5_8WkmusDyseJ0C_NUwsLeP6GVKbswOwbmPAke9lTOlg1UWGsF12Wf6iLS1PLMobdKT7bY9yoXf-UERhaIixhmAN0EzW6sv6hJ84Z4oXN/s320/DSC_0286+-+C.jpg" width="212" /></a></div>
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Ainda sinto a crepitar na boca a sensação picante, entre o violento e o deleite, mas definitivamente a precisar de água. Ou leite, segundo dizem os médicos, como melhor remédio para eliminar o problema. Não dói, mas mói. No entanto, o raio dos camarões até eram bons e nessa raridade que tem sido encontrar comida chinesa que me saiba apetitosa, tratei de aproveitar. O almoço seguiu essa regra da minhda vida que é o erro na sofreguidão, a procura do que me sabe bem, mas mal sei no mal que me trará. Quer dizer, até sei; mas ignoro, finjo ignorar pelo menos, porque a realidade batendo de frente é demasiado desconfortável. E rouba o prazer. Importante isso. Os monges no mosteiro à minha frente bem falam do quanto expectativas e hedonismo são na verdade inimigos da felicidade. Mas camarões são camarões. E a dor é o que acontece quando transgredimos a felicidade; ou pelo contrário, queremos encontrá-la. Seja de que maneira for. O que pode explicar porque é que estão a chegar, enquanto reentro no espaço do mosteiro de Labrang, centenas de pessoas aos poucos, cansadas, algumas arrastando-se, outras com a vtitalidade de quem cumpre uma missão de vida. São peregrinos. Como local de extrema sacralidade no mundo budista, Labrang é o foco de várias peregrinações. Aliás, a zona à volta da cidade de Xiahe destila uma atmosfera religiosa tão difusa quanto uma lanterna de incenso fumegante. Há aqui perto fortes comunidades muçulmanas, e adoradores de Confúcio. Mesquitas e mosteiros convivem a pouca distância, fiéis encaminham-se à sua casa devota de preferência pessoal. A maior celebração decorre durante o primeiro mês lunar do ano, invariavelmente Fevereiro: inclui actividades com nome tão pitoresco quanto a Festival dos Animais Livres ou Festa do Buda apanhando Sol; mas o que salta mais à vista, e atrai muitos visitantes, é o culminar deste último ritual. Uma longa thangka, um pano colorido, pintado, desenhado, medindo trinta por vinte metros é transportado até ao topo de uma elevação sobranceira do mosteiro, tapando-a por completo. Uma longa procissão de fiéis segue-o, cantando e orando, sofrendo também - carregar aquilo não deve ser uma tarefa agradável. Das estepes distantes e próximas, nómadas budistas chegam com roupas coloridas, os sues melhores fatos, para participarem deste momento solene. Deste apelo a Buda. Tudo isto decorre em vários dias. No segundo, uma dança com trinta e cinco mascarados é protagonizada por Yama, entidade que simboliza a Morte, como um exorcismo do agouro defunto. É um momento alto em Xiahe e para toda a comunidade budista. No entanto, não é Fevereiro, mas sim Agosto. Estes que aqui chegam não esperam espectáculos ou panos gigantes. Em algo que nos é familiar no Ocidente, vêm simplesmente cumprir promessas ou colocar à prova a sua fé nas palmas dos pés. A dor como promessa a Deus.<br />
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Uma coisa que explico sempre aos meus alunos, quando dou Mitologias pela primeira vez, é a razão pela qual o ser humano abraçou a espiritualidade. Não a Religião em si. Uma Religião não tem de ser espiritual, pois é simplesmente um conjunto de valores, ideias, teorias e crenças reunidas num corpo de saber que pretende explicar o mundo e encontrar um sentido final na vida. A Ciência, por exemplo, é em si uma Religião, embora explicar este conceito a ateus empedrenidos e orgulhosos seja complicado pelo facto simples de a palavra ter adquirido uma conotação tão negativa ao longo dos séculos que, numa ironia incrível, os mais anti-religiosos têm comportamentos muito semelhantes ao dos prosélitos mais potentes: ambos crêem numa verdade imutável; ambos ridicularizam o lado contrário; ambos descartam factos que mudam o mínimo do seu evangelho; ambos têm gosto em espezinhar e perseguir aqueles com ideias diferentes. A crença em algo de transcendente surge, ainda assim, de um outro princípio que ambos partilham: a ilusão do controlo. Num mundo infestado de fantasmas sob a forma de fenómenos naturais inexplicáveis e uma sucessão de dias e noites que não obedecia a uma lógica ou explicação, o ser humano na sua infância viu-se na necessidade de pensar no que, afinal, se passava. A resposta foi simples. Algures num local qualquer, desconhecido e tapado, uma ou mais entidades super poderosas e sobrenaturais possuíam as rédeas deste planeta na mão. Caprichosos, punham e dispunham destes inferiores bípedes que se sujeitavam aos acasos e humores dos gigantes ou, como lhes chamaram, deuses. Num instinto básico, de quem pretende dominar o indominável, o ser humano chegou à epifania esperada: se não posso mandar, ao menos negoceio; e assim nasceu a necessidade de aplacar o desconhecido que ruge em nós mesmo que nos achemos racionais e materialistas. Pensou o ser humano que oferecendo sacrifícios, talvez os deuses, enfim, encaminhassem o controlo da grande máquina terrestre para o caminho do benefício humano. Quando pequenos sacrifícios não chegavam, faziam-se grandes; e no sentido comunitário, não bastava que um ou dois cumprissem as regras. As divindades exigiam um espírito comum e portanto, a escolha pessoal não é tida nem achada. Todos obedecem aos mesmos princípios e comportamentos. As diferenças não serão toleradas, porque os deuses não têm sentido de humor, ou então sentido de humor a mais, negro, daquele que castiga ao desvio mais pequeno. Quando tudo o mais falhava, dava-se o que de mais importante cada um tinha - a própria vida, o próprio bem estar. Contavam-se histórias de dores de cada deus, de cada profeta; e o bípede humano sentia-se na necessidade de entregar também a dor como homenagem, como justa troca. Várias civilizações na História fizeram dos sacrifícios humanos peça central das suas devoções (os Aztecas serão, talvez, o caso mais conhecido, e quantas guerras foram cometidas em nomes de religiões, num secreto desejo de que cada morto fosse uma oferta alvejando a benevolência superior) e hoje em dia, onde a degradação da vida humana é muito mais subtil e menos óbvia, sobra a dor do corpo, o sofrimento como pagamento, como MB Way entre o que não se vê mas tudo sabe e aquele que está visto, sabe tudo, menos aquilo que devia conhecer.<br />
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjTbsv400ElIyVY4UZK0q8DqXO-vN0SDMRDudZzFjwdS6epXc4_FB4siC5GW4nHSLBTgt0viPg1dInFCvuE_k8tx2xuLrGOEjD2aeMDwD-aZQOxLMdWog1ewytOs_OsqXtQ2e8M/s1600/DSC_0345+-+C2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1065" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjTbsv400ElIyVY4UZK0q8DqXO-vN0SDMRDudZzFjwdS6epXc4_FB4siC5GW4nHSLBTgt0viPg1dInFCvuE_k8tx2xuLrGOEjD2aeMDwD-aZQOxLMdWog1ewytOs_OsqXtQ2e8M/s320/DSC_0345+-+C2.jpg" width="320" /></a></div>
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As peregrinações são um exercício deste princípio. Um pouco como muitas das guerras militares passaram para campos desportivos, a nossa morte em nome de deuses oferece o seu lugar sentado à aceitação de doer é bom. Fortifica e frutifica; ajuda e lá em cima gostam e apreciam o esforço. Por isso há quem faça Fátima de joelhos. Nossa Senhora adora rótulas escanzeladas. Eu consigo entender racionalmente esta associação de ideias, porque a estudei. O que não me cabe é que numa sociedade moderna e tecnológica ainda persistam estes hábitos de um tempo em que nem sequer concebíamos a roda. Depois de uma adolescência bastante irreverente na minha relação com a religião, ainda que tenha estado perfeitamente inserido num grupo de escuteiros - quero dizer, tão inserido quanto eu, uma criatura estranha, pode estar - os meus anos seguintes passaram-se a tentar entender porque é que se acredita em algo que está fora de ser compreendido. Talvez seja esse apelo, o de tomar nos braços da incerteza e deixarmo-nos ir. Vários amigos meus, pessoas que respeitam, encontram um consolo e um sentido em religião. Com o tempo, e também conhecendo as pessoas certas que não fazem da sua fé uma cruzada contra ideias que todos devíamos encontrar com normais e evidentes, o meu respeito foi surgindo. Também a aceitação de que aparte uma franja que quer fazer de Deus uma projecção dos seus desejos tacanhos de submeter os outros à sua vontade e de não confrontar o seu desconforto com um mundo em mudança. Por isso, ao ver toda esta gente em chegada de uma longa peregrinação, procedendo a ritos milenares individuais, hesito em rir e escarnecer. Sigo apenas. Independentemente da origem, cada peregrino partilha o percurso final, uma volta de quase cinco quilómetros em torno do mosteiro. Essa volta inclui pontos de passagem obrigatórios, incluindo alguns pequenos templos e corredores de <i>kora</i>, placas giratórias com um paralelípedo no meio. São coloridas, com figuras estilizadas de paraísos budistas e lamas em poses meditativas. Cada peregrino, ao passar, faz girá-las, todas, obrigatoriamente. Na outra mão, segura um colar de contas chamado <i>malas</i>, que aperta e conta a cada <i>kora</i> que faz mover. É uma tarefa longa. Cada corredor deste género tem seguramente umas cem maquinetas pelo menos, e existem vários espaços deste género ao longo do percurso marcado. Uma pessoa deve chegar ao fim com calos manuais do tamanho de bolas de futebol. Mas todos cumprem, religiosamente - em mais do que um sentido. Tiram os chapéus e ajeitam as túnicas coloridas com que vieram protegendo do vento. E seguem. Mulheres de longas tranças e faces encovadas da inundação da longa vida que trazem por arrasto maquinam mantras para si enquanto percorrem uma via que é sacra também. Os sapatos estão gastos, poeirentos, mas nada os detém. Vejo gente muito desgastada, até de existir. Mas insistem e continuam a percorrer.<br />
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Esta volta pretende imitar a revolução da Terra em torno do Sol. O templo é vida, o templo é luz. E o templo é também o destino de uma jornada que nalguns casos, encerra um capítulo final doloroso. Por entre corredores, certos peregrinos, selectos, entregam-se a um ritual fascinante de ver, duro de fazer: em vez de caminharem apenas, conduzem-se por uma série de gestos medidos e contados. Dão três passos, erguem os braços, juntam as mãos por sobre a cabeça e ajoelham-se. Sem perder o balanço, prostram-se e estendidos sobre o chão durante alguns segundos, nunca perdem a ligação entre as mãos. Por fim, regressam à posição original revertendo a ordem dos gestos. Repetem. Quase cinco mil metros disto nas próximas horas. A maior parte envolve a face num lenço que me impede de ver as caras; mas não as expressões, uma firmeza inabalável nos olhos, a certeza de que chegarão ao fim por mais que custe. Como se depois de tudo, o plácido e sempre razoável Buda lhes exigisse uma última portagem, um último pagamento. Há tábuas de madeira espalhadas, caso queiras fazer estes movimentos fora do caminho. Fazes alguns parado, mas contam na mesma como se os fizesses em andamento. Ali ao lado, o rio corre e talvez ofusque todos os restantes ruídos neste exercício em masoquismo. A minha tentativa de não julgar cai cedo, mas ainda assim, admiro uma disciplina que nunca terei. Não por ser ocidental, mas por ser eu. Quanto mais viajo, ainda assim, menos julgo o que é diferente. Aprendo também que não tenho ambições em ser uma daquelas pessoas que acha não n<br />
ter preconceitos. Claro que os tenho. Toda a gente tem; mas andar em viagem torna-me honesto em relação aos mesmos, a conviver com eles e a perceber que são normais e que não afectam a minha relação com o mundo. Exceptuando a comida claro, mas aí tenho desculpa. Com camarões ou sem eles. Na minha humildade, faço também a volta dos peregrinos, mas passo a passo e ao meu ritmo de observação curiosa. Fotografo de quando em vez, mas ao longe e tentando não ser um elemento intrusivo e que estraga o momento. A certa altura chego ao <i>chotren</i>, um pilar branco de algum tamanho, encimado por um pináculo dourado e verde, que é ponto fundamental no percurso. Aqui chegados, os peregrinos contornam-no por mais do que uma vez e só depois prosseguem até ao final. É aí que de um ponto mais elevado, observam então os telhados dos vários edifícios do mosteiro, verdes e dourados dominando a paisagem e com as montanhas tibetanas como pano de fundo. Numa delas, vejo o trilho que os monges sobem quando estendem a gigantesca bandeira do festival do mês lunar. Tento imaginar aquelas imensidão verde dominada por várias cores, figuras. Ainda que este misticismo me diga pouco, acredito que ficaria impressionado e siderado com tudo isto. Miudagem passa por mim a correr, a escola de Xiahe fica por aqui e garotos de mochilas garridas às costas correm em direcção a casa. Digo-lhes adeus e retribuem sorrindo. Para eles, não há fiéis nem romeiros: só obstáculos. Recordo-me de quando fui peregrino, há vinte anos, e segui os quilómetros de Santiago. Já me começara a afastar da espiritualidade, mas a experiência marcou-me, talvez porque a essência de Compostela não é o sofrimento, mas a descoberta e a partilha. Algures, nas mensagens das grandes religiões, esta essência existe lá. Mas descoberta e partilha nunca ajudaram a controlar quem quer que seja. Medo e sofrimento, pelo contrário, são instrumentos muito mais contundentes nessa missão. Quando cheguei a Santiago, não senti qualquer realização; mas fui num grupo de amigos e eles sim, sorriam de par em par, orgulhavam-se, abraçavam-se. Como quase sempre, tinha a alma num caco, acho que se partiu quando tinha dezasseis anos e ainda ninguém a colou, nem eu, nem que veio a seguir. Pergunto-me se de facto é isso que me impede de sentir a profundidade desta vivência. Mas de súbito, passo por um velho que urina contra uma parede e percebo que não é mesmo de mim.<br />
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Até ao jantar, temos tempo livre. Com um receio de ser deserdado e de perder os poucos amigos que ainda tenho - não sei bem até quando - dedico-me a correr algumas lojas e bazares, sem qualquer ideia definida do que comprar. As coisas são bastante baratas, estamos afinal na China, e perco algum tempo de volta de lenços, bem suaves para não causar comichão aos pescoços alheios. Têm muitas cores e custam entre 30 e quarenta yuans. Portanto, oito euros no máximo. Não tenho qualquer sentido de estilo, o que aliás acaba sempre por ser inimigo nas minhas viagens. Estou profissionalizado na compra de livros, mas temo que nenhum dos meus amigos pretenda receber algo que nunca poderá ler na vida, a não ser que se dedique à aprendizagem do Mandarim. Tento imaginar o que gostaria eu de ver numa mulher. Erro, porque penso imediatamente na pessoa errada, em alguém que devia estar enterrada num recanto profundo da minha mente e não sair mais de lá. Mas acaba por ser tornar inevitável, visto que não há mito maior sobre mim do que aquele que sopra, baixinho mas bem audível, que sou incapaz de sentir algo, que me escondo, que fujo e me rebolo. Escolho alguns lenços então e pelo caminho, compro uma colorida e animada mochila para a Beatriz, a segunda prenda de que ela se poderá gabar aos amigos: o meu padrinho faltou ao meu aniversário porque estava na outra ponta do mundo; mas ao menos trouxe-me isto. Fixe, não? As lojas ficam todas na rua central de Xiahe, que lhe serve de artéria e espinha dorsal. São pequenas, normalmente, e por vezes, entrando em pátios interiores, encontramos bancas, montras e mercados pequeninos que oferecem uma catadupa de hipóteses de compras. É também um momento bom para observar como os monges de Labrang vivem a sua vida normal e corriqueira aqui, entre os "civis". Passeiam-se com as suas túnicas religiosas, mas nunca como homens de religião: como homens vulgares, os mesmos gestos e instintos, temores e preconceitos. Dois deles passam por mim, mão por cima do ombro, risada cúmplice de quem conta uma piada que apenas ambos entendem; quando lhes tiro uma foto, surge uma tremideira com ligeira homofobia, pois ao repararem, rapidamente desfazem a posse e criam um espaço entre ambos razoavelmente semelhante ao Oceano Pacífico. Decerto me chamaram, entredentes, filho da Buda... Quase no final do meu devaneio consumista, uma surpresa. Enquanto fotografo três garotos a jogar à bola, surge um quarto que, tímido, nem está no enquadramento. Mas anda ali perto, curioso. Não sei se por mim, se pela oportunidade fotográfica; mas esconde-se agarrado a uma porta. Sorrio-lhe e ele derrete um pouco; aponto para a máquina, ele não se mexe. Fotografia tirada e mostro-lha. Ele agarra-me a mão com força e dispara a correr. Não entendi. Mas não é para entender. Vive-se e mais tarde, escrevo sobe isto e continuo a lembrar-me. Muito da vida é isso: não tanto o que lhe fica, mas mais o que a faz.<br />
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Como ainda sobra tempo e o dia tem luz que contorna as montanhas a fogo, junto-me a alguns rumo ao topo daquela inclinação que em alturas do primeiro mês lunar se cobre com uma bandeira enorme. Estou curioso para descobrir que ponto de vista se pode ter para o Mosteiro, acho que até agora só o vi no interior. É uma subida curta, mas a pique, obrigando a meter um ritmo lento, mas constante. São alguns os turistas que tiveram a mesma ideia, em <i>selfies</i>, em fotos de grupo. Encontramos lá também monges deitados em magote, usufruindo de algum tempo livre, esquecendo Buda por uns tempos. Saudamo-los e Mário, o já mencionado Comendador de Fronteira, Alter do Chão e territórios adjacentes na Extremadura espanhola, rapidamente cria uma conversa, pede fotos, torna-se embaixador do Nordeste alentejano no Sudoeste chinês. Há gente que não tem lata e imediatamente parte a conseguir o que quer. É um talento que me faltam. Como sempre quando a melancolia me bate como um martelo ferroso que pesa, em castigo, fecho-me e nas engranagens da minha cabeça, rapidamente aparecem pedaços fuscos de coração. A máquina põe-se ao trabalho, mas quase em piloto automático. Sinto-me num fundo, nem sei bem de quê; mas apesar de o sol ainda se mostrar, a escuridão em mim galopa. Estes são momentos em que o contacto com outros é simplesmente proibido, pois torno-me tão vulnerável que a única reacção é explodir para fora. No entanto, convocam-me para uma foto de grupo. O grupo budista cedeu aos encantos do Mário e quer que tiremos todos uma foto juntos. Contrafeito, mas aparentando que sou um camarada que alinha em tudo, junto-me. O sorriso é forçado, mas como sou tão pouco fotogénico, acho que a diferença nem se nota. Lá ao fundo, por trás de dois dentes que são picos, a luz solar lentamente se extermina e como que reflectindo este fim de tarde que me lança em memórias e catadupa de gelo mental, vai-se apagando. Como eu. Embora, pelas minhas contas, ainda tenha uns cinco dias onde não me posso afundar, apenas manter à tona. Sofrer, mas não pelo desconhecido: apenas pelo que se conhece demasiado bem. Uma peregrinação cujo santuário final somos nós.<br />
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Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-64952811959483369162020-02-05T20:06:00.002+01:002020-02-06T16:10:27.486+01:00Fachinação 19: Conhece-te a ti mesmo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhF6Q_0wmC5NzRtoPKBi9tonzvIBXtQ35Eeyo8oVocayNtOH2RbXvc-bfgH-lPjXzt0qtdhcrvVY82gNN9mPt0Ot5yJG0iR8LW8_5inFNOQ2pYFCoRTtEO9R1Pj_ApMjkqM2Lnk/s1600/DSC_0159.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1064" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhF6Q_0wmC5NzRtoPKBi9tonzvIBXtQ35Eeyo8oVocayNtOH2RbXvc-bfgH-lPjXzt0qtdhcrvVY82gNN9mPt0Ot5yJG0iR8LW8_5inFNOQ2pYFCoRTtEO9R1Pj_ApMjkqM2Lnk/s320/DSC_0159.JPG" width="320" /></a></div>
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Deixo uma dica aos meus leitores que gostam de saber distinguir uma pessoa que leu umas cenas na Internet de alguém verdadeiramente informado. Cheguem junto de um grupo de pessoas - amigos ou simplesmente seres humanos entre os quais querem lançar a confusão incendiária - e comecem a falar de religião. Deixem o paleio rolar e, invariavelmente, ouvir toda a gente a falar mal ou a defender com unhas e dentes, porque neste tema é raro haver meio termo. o que é sempre engraçado, visto que boa parte dos sistemas religiosos pressupõe tolerância e entendimento, algo que parece existir pouco entre os seus mais acérrimos prosélitos. É neste momento específico, onde o terreno está fértil e bem adubado, que deve ser lançada sem hesitação esta declaração que fica pela metade: "Ah, mas o Budismo...". Prestem agora atenção à dinâmica da conversa. Haverá uns que farão logo a ressalva de que o Budismo não é religião, não tem deuses. Que são só umas ideias, todas boas, todas no sentido da união das pessoas e da felicidade. Esta é a pessoa que leu umas cenas na Internet. Eu duvido seriamente que alguém contraponha algo a esta versão daquilo que o a herança que Buda nos deixou, portanto se encontrarem de facto alguém informado, depois digam-me que tenho curiosidade. Porque o Budismo tem um passe quase inatacável em discussões religiosas.A sua inclusão, e de outros sistemas que se dizem de pensamento (mas que têm inerente um aspecto cultistas mais ou menos subtil) inspirados nas suas ideias, noutras áreas da existência humana torna-a muito apelativa para todos aquele que, fixes demais para se incluírem num sistema de crenças organizado, abraçam as ideias orientais. São um bocadinho como aqueles católicos que são católicos e defendem toda e qualquer ideia cristã, mas "não vão à missa, porque não me identifico com essas coisas". Talvez por não se identificarem também com acordar cedo ao domingo de manhã. Sempre achei curioso este lugar quase isolado que esta doutrina tem na discussão sempre presente acerca do papel da religião na nossa sociedade e do nosso mundo. Interesso-me por estas coisas, e tenho pena que a única razão que atrai tanta gente a este tema seja a errada: defender ou achincalhar, sem entender, se calhar, que a palavra Religião pode designar muitos assuntos que nada têm a ver com espiritualidade. Uma Religião é simplesmente um conjunto de ideias ligadas que usamos para explicar o mundo e que tomamos como factos. A Ciência, com a sua sistematização de conhecimentos e saberes, é uma Religião, por exemplo. Estes sistemas moldam o nosso lugar no mundo e aquilo que nele procuramos e defendemos; e hoje em dia, quando a batalha das ideias está cada vez mais acesa e central naquilo que decidimos como sociedade em relação ao futuro, penso que uma conversazinha clara e definida sobre crenças e fés é o que precisamos. Mas essa conversa não existe. Também porque ninguém está interessado em tê-la. Só há interesse em discutir, esmagar, gozar.<br />
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Em Xiahe, o Budismo domina a vida das pessoas. Basta passearem dois minutos na principal rua da localidade e vêem de imediato as reconhecíveis túnicas encarnadas, com tira amarela, que caracterizam os monges budistas. Estes provêm do mosteiro de Labrang, o segundo edifício mais religioso de todo o Budismo. Fora da Região Autónoma do Tibete, é o maior e funciona em simultâneo como templo religioso e escola budista. Devido a restrições governamentais, mil e quinhentos alunos aprendem hoje em Labrang e juntarmos o corpo docente e outros monges, é provável que habitem dois milhares de pessoas neste complexo que inclui vários edifícios. A ideia é aproveitar a manhã para uma visita guiada ao interior do mosteiro, tirar umas fotos, contactar com quem lá vive e quem visita. Por estas alturas de Agosto, há uma enorme peregrinação a Labrang, um pouco como quem vai a Fátima a pé, e é provável que assistamos à chegada de peregrinos ao seu ponto final. Para terem uma ideias do que visitaremos, todo este conjunto de Labrang estende-se por três quilómetros, o que é de facto enorme. Quase uma cidade dentro de uma cidade. Uma profusão de cores nas paredes e nas decorações, dominadas por telhados verdes e dourados que espreitam este vale. Há capelas e residências, juntamente com seis <i>tratsang</i> (o nome dado às escolas), que tratam de temas como esoterismo budista, Medicina, Astrologia ou Direito que chamaríamos Canónico. Somos avisados desde cedo que fotografias só no exterior. Dentro dos templos, as máquinas são para ficar guardadinhas. Os monges reservam-se ao direito de nos multar em 500 yuan, caso sejamos apanhados. Vamos à boleia de um grupo numeroso de turistas, quase todos orientais, com alguns ocidentais metidos e com projectos próprios. Um casal espanhol escuta a nossa lusa língua e identifica irmãos ibéricos. Numa curta apresentação, revelam que estão a fazer uma longa peregrinação de dois anos por esta zona, aprendendo coisas sobre o Budismo, sobre como chegar à felicidade, abdicando da choldra do mundo moderno. Querem transformar-se, afinal o objectivo final da doutrina de Buda. O monge que nos guiará tem uma daquelas caras sem idade. Tanto pode ser um homem novo gasto pela vida como um tipo de meia idade com a jovialidade de um adolescente. Informa que tem 22 anos, mas juro que um sofá que existe na minha casa em Ceira parece mais novo, Antes de nos conduzir pelos edifícios, um apelo quase automático leva-o a uma pequena palestra sobre a Existência. Assim mesmo, com maiúscula. Prega um sermão em que somos nós os peixes. Como quase todos os que pretendem converter ou doutrinar, usa a linguagem obscura onde cada um pode reflectir as suas inquietações e nunca dás respostas, só perguntas. E mais perguntas. É a melhor maneira de parecer sábio mesmo quando se é inepto. Lança-as ao grupo, descompondo qualquer retorno que lhe demos. É algo fascinante de ver, mas alguns caem na cantiga. </div>
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O espectáculo prolonga-se a cada explicação história e informação arquitectónica. Em 1709, tudo isto foi fundado. O responsável chamava-se Ngaging Tsunde e como todos os líderes religiosos, era uma reencarnação de uma reencarnação. Este trânsito de almas é fundamental para entender o budismo e o guia faz questão de nos recordar isto de cada evez que falas dos seus antecessores e camaradas de túnica. É um dos seis grandes mosteiros da maior Ordem budista, a do Chapéu Amarelo (não estou a gozar) e no seu auge, estudavam aqui quatro mil almas. Que já haviam sido almas também, entenda-se. Almas rodadas. A Revolução Cultural de Mao tratou de resolver essa questão, quando quase limpou o país de qualquer outra cultura que não fosse a comunista e a da Revolução. O guia não fala disso. Há sempre uma câmara a vigiá-lo e e o instinto de auto-preservação também deve estar embutido no DNA tibetano; mas eu sei porque conheço vagamente a história contemporânea chinesa. Ele também não explica que desde então, o mosteiro de Labrang representa um ponto simbólico dentro do desenho de Xiahe. É o centro da divisáo étnica da cidade. No lado ocidental, mais desenvolvido e rico, temos uma maioria Han criando negócio, vivendo, ocupando. No lado oriental, em casas mais pequenas e ténues, os Tibetanos originais, fazendo pela vida, subsistindo acima de tudo da actividade agrícola e da pecuária.. O guia também não refere isso quando, visitando a capela da escola de Medicina, explica que foi ali que se formou, porque sempre viveu com a ideia de usar os seus conhecimentos para ajudar os outros. Que o lugar do Budismo era entre as pessoas, ao seu lado. Em 2008, por exemplo, os monges de Labrang protestarm contra o Governo, numa onda que atravessei todo o Tibete chinês, que chegaram à violência. Mas este homem, pacífico e e tão longe do mundo, tão perto das boas intenções, não está para afrontar. Apenas explicar e converter. Continua a inquirir, com aquele sorriso galifão de quem aprendeu um segredo e sabe que nós estamos completamente à nora. Um bocadinho farto pela pose, respondo quando questiona sobre o que é a Felicidade. Vou tentar transcrever, assim de memória, o curto diálogo.</div>
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- É sentirmo-nos bem connosco e com o mundo.</div>
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- Ah, mas quem és tu? E quem é o mundo?</div>
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- Eu sou a pessoa com quem você está a falar. O mundo é este local onde estamos a conversar.</div>
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- Ah, mas quem sou eu? E o que é esta conversa?</div>
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- Você é a pessoa que está à minha frente. Esta conversa são as palavras que estamos a trocar?</div>
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- Ah, mas será que esta conversa existe neste mundo? E só existe este mundo? O que é existir?</div>
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O problema maior dele é que eu conheço este tipo de caramelos. Crentes e não crentes. Por ter estado quase vinte anos num agrupamento de escuteiros, cruzei-me com todo o género de católicos, desde os aceitáveis aos que só apetece fechar numa sala com um compêndio de humanidade; e por outro lado, formei-me na Faculdade de Letras, porventura o maior antro de presunção de toda a Universidade de Coimbra, com excepção talvez de Direito. O cruzamento entre católicos e ateus, no que concerne tipos de personalidade, é maior do que ambos os grupos gostariam de admitir. Sei os esquemas e os truques, a linguagem, o paleio vazio, a pose de quem tem as soluções, mas está tão perdido quanto qualquer outro. Apenas bebeu um sumo diferente e julga-se invencível. É gente para a qual tenho muito pouca paciência. Eu tenho um ponta ainda notória de arrogância, mas não me apanhem a tourear os outros com vazio. Como tal, respondo-lhe:</div>
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- Para quem está a estudar aqui desde criança, o senhor parece desconhecer coisas muito básicas.</div>
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O sorriso vacila um pouco e ele entende que não é solo onde vá crescer o que seja. Reparo no casal espanhol, que me olha com reprovação. Ela segura um bloco e tira notas. Começo a entender como é que nos livrámos de Espanha três vezes ao longo da nossa História, ainda que sejamos muito mais pequenos em tamanho.</div>
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O Budismo, se analisarmos friamente, está cheio de boas
intenções e se não estivesse, não seria praticamente por mais de meio milhão de
pessoas em todo o mundo. Surgiu na Índia e a sua mensagem, como a cristã, é muito fácil de resumir: trabalha, melhora-te e serás feliz. Baseia-se numa ideia central de mortes e renascimentos constantes até alcançar a perfeição definitiva e por consequência, a mesma Felicidade pela qual o monge me perguntou. A palavra que designa esse estado é conhecida mundialmente, culpa de três rapazes de Seattle: Nirvana. Isto é o principal dos ensinamentos que Siddartha Gautama, um príncipe indiano que abandonou a sua vida de devassidão para procurar o modo de ser feliz e pelo meio mudou de nome para Buda, deixou às gerações futuras. Mas como acontece em todas as religiões, uma vez falecido o fundador, os seus seguidores interpretam cada um à sua maneira e distinção. No caso do Budismo, isso deu origem a duas grandes escolas de pensamento: o Theravada e o Mahayana. Há mais palavras de origem indiana metidas ao barulho, como <i>dharma</i>, <i>sangha</i>, <i>paramitas</i> e coisas do género; mas a principal diferença é que a primeira é mais antiga, conservadora e pretende ser a verdadeira representante da versão original dos ensinamentos de Buda. A sua divulgação deu-se mais para Oriente, na Indochina e países costeiros dessa região asiática, e é também por esse motivo que acontecem aí um número notável de conflitos religiosos. Sim, o Budismo também envolve guerras religiosas. Quê, não sabiam? julgavam que era tudo paz e amor. Não, amigos, não é. Perguntem aos muçulmanos do Myanmar. A segunda escola, a <o:p></o:p>Mahayana, abdica do aspecto mais ritual e doutrinal do Budismo e envereda por caminhos de filosofia e questões existenciais. É o tal Budismo que o ocidental julgar ser o único e o que mais lhe convém. Enquanto que a primeira mantém que o Nirvana só pode ser atingido depois de várias reencarnações e passagem na Terra, a segunda é mais prática e afirma que não, que uma só vida chega para conseguirmos entender isto tudo e abraçarmos a plena felicidade. Talvez pela defesa desta ideia tão apelativa e desejável seja hoje a forma mais popular de ser budista, a mais ensinada, a mais incorporada em técnicas de <i>yoga</i>, meditação, <i>New Age </i>e maneiras de alcançar a celebridade de Hollywood. É também a praticada em Labrang e a base dos seus ensinamentos é a constante questão da realidade que nos rodeia, dos nossos pensamentos, das nossas emoções, do que somos. Quer livrar-nos das inquietações e ânsias, pois a Felicidade última é viver sem ansiedades, desejos, objectivos. É ser com o mundo. O monge pensa que ao colocar-me questões me está a iniciar num caminho em direcção a esta falta de ansiedades. Se me conhecesse, saberia que o meu mundo está carregado de desejos não recicprocados e vidas que não se concretizam, de almas que desejo, de corpos que só passam ao lado, de sorrisos que não se se materializam, de planos que se estampam. Tanta coisa que o próprio Siddartha rotundo que seja, tombaria por terra sob o seu peso. Que tenho muito mais perguntas do que ele, mas sem ilusão de conhecer sequer as respostas. Num certo sentido, sou até mais budista. Vivo cheio de dúvidas. Mas sei perfeitamente que não encontrarão a sua dissipação nestes templos, misturando-se no fumo do incenso. </div>
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Seja qual for a corrente, um aspecto importante do Budismo é a imersão. Imersão de sentidos, principalmente, para ajudar o cérebro a meter travão. Por esse motivo a meditação está carregadinha de <i>mantras</i>, aqueles sons guturais que se repetem à exaustão até serem apenas banda sonora na meninge. É quase impossível entender a importância desta abstracção mental e do quão poderosa consegue ser até termos, de facto, a experiência. Um dos últimos espaços a visitar é o refeitório. Normalíssimo por fora, cinzento de pedra e verdejante no telhado, apenas um beiral amarelo e vermelho lhe traz alguma personalidade. No interior, deparo-me com dezenas de monges sentados no chão, em linhas, em filas. Uma vaga púrpura e amarela, túnica em repouso, faces em inquietação e tédio. À sua frente, todos exibem um tapete quadrado, cores diferentes, em cima um copo. Não estão inactivos: cantam longos mantras de poucas palavras, enquanto num canto escuro, neste espaço que não está iluminado de maneira visível, quatro indivíduos zurzem na nossa mente com instrumentos de percussão. O barulho é agressivo, mas mas sem bater. Só ameaça, lentamente verga-te a esquecer o resto e coloca o mundo em obliteração. Alguns fumeiros, de considerável dimensão, destilam um vapor incensado e de outros aromas que tranca os narizes de qualquer veleidade de fugir do momento. As paredes forram-se de coloridos panos, longos, que no assalto aos sentidos quase saltam as cores do pé coxinho. Como se as formas saltassem das paredes. Já nem noto o grupo onde sigo, parei e vigio os monges, taciturnos e entediados, alguns abraçando a experiência como é seu dever, outros ignorando o momento num aborrecimento vocal. Mas cansa, tudo isto, esta musculação da percepção. Em bom tempo, sou arrastado para uma capela lateral onde um altar domina por completo. É o altar dos Lamas. Pequenas estatuetas representam o espírito dos antigos líderes do Budismo, sucessores de Buda. É o maior que vemos até agora, o que se entende. O guia diz-nos que os Lamas são muito importantes, que enquanto não descem novamente aos terrenos corpos onde reencarnam, aconselham e falam com Buda no tempo para lá da Morte. Se quisermos falar com eles também, podes sentar-nos e reflectir para o altar. Ao meu lado, perguntam se o actual Dalai Lama será aqui representado quando morrer. Muito sério, numa mudança brusca de humor, o guia responde: "Aqui não falamos de política, só religião". O que é bizarro, porque o senhor careca de óculos que está exilado na Índia - bem a calhar para a situação geopolítica asiática - é, final o líder supremo do Budismo em todas as suas formas. Mas a China fez dele um mártir e Lama abraçou esse papel com entusiasmo. Religião e Política são dois primos que tudo fazem que não lhe tirem o prazer de matar pardais à pedrada.</div>
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A última paragem é na escola de Astrologia. A sala que visitamos é pequena e está atulhada de objectos científicos. Ou ditos científicos. Coisas que têm importância para os eruditos budistas, desde livros em sânscritos com ar muito antigo, ícones, gravações em pedra, pergaminhos em pele. Olho-os com alguma curiosidade, como se percebesse tudo o que significam ou até o próprio sânscrito. Nem uma coisa nem outra. Mas no centro da sala, destacado, está um globo terrestre. Observo-o e deduzo que deve ser das peças mais recentes em exibição. Isto porque, numa olhada rápida e com os meus conhecimentos de representação geográfica ao longo da História, noto que África está já dividida nos territórios que saíram da Conferência de Berlim em 1885. Para além disso, observando o fundo do globo, a Antárctica está perfeitamente representada da maneira como a conhecemos hoje. isto é um pormenor importante por dois motivos: em primeiro, oficialmente, este continente gelado apenas foi descoberto em 1818 e as suas primeiras representações mais ou menos fiéis em cartografia datam da segunda metade do século. Em segundo, e isto baralha muitos historiadores, há representações da Antárctida em mapas anteriores - os do período da Expansão portuguesa, por exemplo - mas tal como estaria antes de ficar coberta por gelo. O que aconteceu à volta de quinze mil anos. Assunto para outros textos, prometo. Não sou eu o único a notar. O monge é questionado sobre o globo e garante que este chegou ao mosteiro há uns duzentos e cinquenta, trezentos anos. O que é impossível, pelos motivos que lhe expliquei. Confronto-o com isso. Ele ri, está a segundos de me chamar ignorante e afiança que o seu professor e mestre lho disse e portanto, só pode ser verdade. O que não é. A sabedoria oriental do Budismo incide na auto-descoberta. As questões podem ser lançadas contra o outro, mas nunca devem regressar a quem as fez. O pobre monge parece desconhecer que há vida para lá dos mantras e das quatro paredes do mosteiro. Que uma Religião é um método de explicar o mundo e não de fixá-lo em pedra, imutável. Buda, deitado de lado, medita e o planeta avança entretanto. Em Xiahe, num mosteiro no entanto, o incenso fixou o conhecimento nas palavras de um homem, que as transmitiu a outro. A verdade sobre o mundo feita rumor. Quem disse que precisamos de redes sociais para criar desinformação?</div>
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Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-73468527098843997062020-01-29T21:42:00.003+01:002020-01-30T15:32:50.894+01:00Fachinação 18: Tó (pouco) Zen<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZhsY7N6Eedb9yRfUnGYaLCNnKzYRs7H2NX2Bun5H019lauOGcf9cmIWyBRNaBmD0wLBsRcKS0B8Jn3cThzzFyEsn6DACuQMHEyK6JKDna84y2-M3d_u3r-7gSF1NZlk37ZALR/s1600/DSC_0106+-+C.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1065" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZhsY7N6Eedb9yRfUnGYaLCNnKzYRs7H2NX2Bun5H019lauOGcf9cmIWyBRNaBmD0wLBsRcKS0B8Jn3cThzzFyEsn6DACuQMHEyK6JKDna84y2-M3d_u3r-7gSF1NZlk37ZALR/s320/DSC_0106+-+C.jpg" width="320" /></a></div>
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Ouço o reverberar do rio. Tenho em mim um vago rumor de ter visto uma corrente de água muito perto quando cheguei ontem à noite. Acordei mais cedo do que devia, nem sei bem porque pois sinto-me cansado. Mas quero voltar a dormir e não me forço. Estranho o silêncio, se calhar, como se todos os restantes sons houvessem sumido num vórtice. Já não me encontro em Zhangye. Na verdade, já nem me encontro - ou perco - naquela China capitalista e <i>standardizada</i>. Voltei a sair do mundo real. O Tibete. Depois da Muralha da China, foi talvez a parte da minha viagem que levantou mais perguntas entre as pessoas que conheço. Como eu. cresceram com as histórias secretas da opressão. De uma região outrora independente e agora ocupada. Mas estendido na cama, neste simpático hostel que tem como nome, claro, Nirvana, não me sinto oprimido. Nem pelas recordações. Na verdade, acho que ainda estou a cair em mim depois do stress do dia anterior, das vários novidades e de ter subido um patamar na minha definição de adulto, ao recusar comprimir a cara de alguém contra o pavimento. Para quem acha que o Oriente é zen, é meu conselho é que passe aqui uns dias. Essa ideia desaparece rapidamente.<br />
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Saímos de Zhangye de manhã cedo. O plano era aproveitar a ligação de comboio de alta velocidade até Lanzhou, uma daquelas cidades industriais, carregadinhas de fábricas, que como Zhangye serve essencialmente para registar num mapa que estivemos lá e pouco mais. Quinhentos quilómetros separam as duas cidades e o horário estipula que a viagem se fará em menos de três horas. Para terem uma ideia, o Alfa Pendular demora mais de hora e meia na distância de duzentos quilómetros entre Coimbra e Lisboa. Já aqui descrevi um pouco do funcionamento dos serviços ferroviários na China. Mas é a primeira vez que circulo numa ferrovia tão rápida, que se já foi tornando num mito urbano em Portugal - salientando sempre essa habilidade tão lusa que é a de colocar o carro à frente dos bois: um país onde quase metade do território não tem uma ligação de comboio regular e com qualidade, mas onde futurismos ferroviários e aeroportos são considerados prioridade. Como nas ligações normais, também a China é desigual no acesso aos transportes. O lado Este está muito mais bem servido: primeira geração de alta velocidade, que circular numa média superior a trezentos quilómetros horários, chega apenas a Xi'an, que não fica nem a meio do país; a segunda gerção, com locomotivas que atingem os duzentos quilómetros hora, acaba em Lanzhou. Que também não fica a meio. São prioridades. O Tibete, por exemplo, tem na totalidade apenas uma linha de comboio que chega a Llasa, a capital. Talvez esteja a ser demasiado exigente: afinal, esta expansão de alta velocidade começou apenas em 2011 e por muito que se queira criticar, a China é um país extenso, com uma geografia complicada; e a diferença de de celeridade nota-se dentro do comboio, subvertendo o clássico exemplo dado para explicar a Teoria da Relatividade. A segunda classe não é tão convidativa quanto esta cama onde me deito, mas circulav-se confortavelmente. A carruagem está cheia e há poucos bébés à vista. Aproveito para ler. De quando em vez, espreito a paisagem, verde, fértil. Um ecrã electrónico mostra de quando em vez a rapidez: chegamos regularmente aos trezentos, a visão do exterior apagando-se numa nitidez com traços que acertam onde as minhas pupilas tentam fixar o que já ficou para trás. É um pouco como ver o céu à noite, uma procissão de astros que já não são, mas numa escala temporal muito mais curta.<br />
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Sem dar muito por isso, chegamos a Lanzhou. Aqui entramos na parte mais enervante da viagem, pois devido à maravilha dos serviços rodoviários chineses, que não permitem comprar bilhetes online em carreiras mais curtas e interiores, entramos numa corrida desenfreada para chegar ao terminal de camionetas da cidade em menos de uma hora, de forma a apanharmos a única ligação desse dia para a vila onde ficaremos nos próximos dias: Xiahe. Portanto, é isto: sair do comboio; atravessar o terminal com as malas de arrasto; encontrar um táxi; fazer o caminho; chegar lá; comprar bilhetes; entrar na camioneta. Sete passos sem que se completem sessenta minutos. No entanto, alguns factores chegam para distorcer o tempo, qual Einstein novamente a aparecer nesta viagem. O primeiro é a própria cidade, que alberga quase três milhões de habitantes, o que significa, claro, que o tráfego deve ser maravilhoso; o segundo é o tamanho da estação de comboio, onde cabem bem duas Gares do Oriente e ainda sobra espaço; e o terceiro, claro, é uma mistura de ineptitude e má vontade que torna os taxistas chineses em candidatos a um patamar de desprezo que dedico a gente que não usa pisca quando conduz, a Fátima Campos Ferreira e às pessoas que oferecem como solução da minha melancolia um passeio ao sol. Tenho a responsabilidade de fazer parte do primeiro grupo a sair. Levo o dinheiro e as indicações por alto para comprar os bilhetes para toda a gente. O Hélder e o Tiago, que juram a pés juntos que fizeram meses no Afeganistão e por isso são os mais indicados para me acompanhar nesta demanda, juntam-se. Ao volante, um homem jovem, mas macilento. Aquele tipo de indivíduo que quando chega aos trinta anos, não viveu muito, mas existiu demasiado como autómato. Alguém cuja maior qualidade é a falta de luz nos olhos e que olha para nós esperando o destino da mesma forma que um camponês russ numa novela de Dostoievski reage quando se apercebe que o dia de trabalho acabou e a mulher se esqueceu de comprar vodka. Explico com "Bus", mas é palavra tem tanto efeito nele como a brisa numa parede de betão. O vazio dos olhos lembra-me um pouco a minha carteira ao fim do mês, mas insisto e nada. Com isto, o tempo passa. Atrás, o Tiago presta-se a grandes meios e escreve no tradutor. Depois de visto, algo na cabeça do indivíduo engrena e o táxi arranca. Ok, estamos a caminho; e os primeiros minutos são fluidos. Não há muito trânsito, as avenidas dão para meter uma quinta, olho para o relógio. Com isto tudo, temos quarenta, quarenta e cinco minutos. Faço os devidos descontos do movimento e calculo que dê.<br />
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Mudamos de faixa e no final de uma larga avenida, viramos à direita; e tudo se complica. Uma sequência longa de semáforos provoca um engarrafamento que se agiganta pelo facto de três vias desembocarem nesta. Carros surgem de vários lados, metendo-se, atravessando-se. Em Portugal, quando isto acontece, podemos contar com o taxista para exibir a sua falta de cultura cívica: impedindo qualquer um que seja de lhe tomar o lugar, não pelo nosso interesse mas pelo seu ego e convicção de que "eu é que sou, eu é que estou bem. Que palhaços, não sabem conduzir!" É um garante de que os nossos interesses estão bem servidos pela má educação de alguém, por muito que esse alguém até seja capaz de nos levar a Setúbal quando entrámos no aeroporto e pretendemos sair nas Olaias. Ora, o homem que nos conduz em Lanzhou é aquilo que pode ser melhor definido pela palavra "mono". Toda a gente passa, a ninguém nega o jeitinho. Se há uma oportunidade de avançar no tráfego, pois que se dane, há outra pessoa que de certeza precisa mais disto do que eu. Sempre com a mesma expressão que apenas posso definir como um cruzamento entre a impassividade de uma placa de xisto e o carisma de Jorge Sampaio. No contador digital do meu telemóvel, o tempo passa e também eu me estou a passar. Ainda que não fale patavina de mandarim, chamo-lhes nomes com uma fúria tão evidente e universal que é impossível de não notar. No banco de trás, o Tiago e o Hélder fumegam um pouco também e esta panela com carta de condução militante nota que a cada lugar que concede a carros vizinhos, a nossa paciência decresce ao nível do Confúcio negativo. Faltam apenas vinte minutos, quando começo a apontar vias de saída daquela confusão, literalmente com os meus braços. A morrinha cerebral continua, mas algo no espírito do energúmeno atinge que nós temos pressa e também a possibilidade forte e real, perante a minha tempestuosidade de movimentos, que há uma hipótese séria de atira-lo para fora da viatura e assumir eu mesmo a condução. É então que, pela primeira vez, se decide a ocupar um buraquinho no meio dos carros e avançar lesto. Quase acredito em duendes, unicórnios e que os partidos portugueses se interessam pelo bem da Nação. Como areia numa ampulheta, os segundos deslizam a um ritmo mais rápido do que o trânsito. O Hélder, usando uma aplicação que lhe permite seguir o nosso percurso dentro da cidade, informa que estamos próximos. Não sei se o suficiente. Dez minutos. Vemos, a um longe perto, um edifício alto e antigo. É o nosso destino e não chegamos. Entre este stress e a nossa fúria dirigida ao homem, estamos como uma mola comprimida. A confusão desvanece-se e por fim o carro pode avançar normalmente. Quando chegamos, não somos os primeiros sequer. Foi o quão pasmaceiro se revelou esta criatura dos confins do Hades. Faltam menos de cinco minutos. Ninguém está imune à tensão. Eu descarrego parte do homem do leme que nos foi contemplado, enquanto retiro as malas. Pelo caminho, as pessoas do grupos vão apertando a vontade de descarregarem umas nas outras. O interior do terminal solta um odor que mistura urina, suor e alcatrão oleado. Talvez seja esse o empurrão que algumas pessoas necessitam para atirar chamas pelo ar. Seria o tipo de coisa na qual participaria no meu perfeito estado normal. Mas preveni-me a tempo: auscultadores no ouvido e retiro-me, que já sei que a bílis é um dos meus fluidos preferidos.<br />
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A viagem é para durar duas horas e meia. Mantenho-me afastado de todos isolado no meu próprio mundo sonoro. Vejo que cada um almoça o que pode. Eu vou comendo umas bolachas. Vou recordando aquilo que sei sobre o Tibete. Pátria da nação tibetana, é mais um dos bocadinhos da China que tornam o país num mosaico multi-étnico que apenas é comparável a Rússia. Ainda que, nos últimos anos, a balança se tenha equilibrado com migrações maciças de Han, do que me recordo, numa ocupação efectiva depois da perda de independência em 1959. Sei que existem montanhas, e que são bem altas. Tipo o Evereste, que é basicamente a Capela Sistina da morte em altitude hoje em dia. Lembro-me que foi um império durante vários séculos, até ser conquistado pelos Mongóis e depois Chineses, mas em regime autónomo. No século XX chegaram a tornar-se independentes, mas a China terminou com essa aventura. Sei que o Dalai Lama era a figura mais reverenciada no Tibete, embora não fosse o líder político de facto, e que o Budismo é de longe a principal religião O actual Lama máximo fugiu de lá quando era criança e nunca mais lá voltou, sendo hoje um emigrante permanente numa missão de chamar a atenção para um problema injusto com qual ninguém já se importa hoje em dia. O Governo Central ocupou efectivamente esta larga região e não é previsível que a situação mude. Há iaques, acho, aqueles parentes bem peludos das vacas e que já encontrei no Quirguistão e há uns dias no mercado de Kashgar. Com toda esta história de ocupação - e resistência, penso, tenho memória de protestos e revoltas - espero que sinta no Tibete o senti em Xinjiang: um polegar a apertar uma população diferente, presença policial forte nas ruas, câmaras ao pontapé. As tais pessoas que referi no início presumiram isso também. Que estes coitados deviam ser oprimidos, que até eu devia ter cuidado com o que via e fotografava; e é verdade que no Ocidente, até pela posição pública de algumas vedetas que se converteram ao Budismo, como Richard Gere, a ocupação do Tibete, algures pelos anos 90, assumiu contornos de desígnio mundial. Como bem sabem, nada pode parar a "Belt and road" chinesa e os investimentos públicos de centenas de milhões. A mentalidade chinesa, nisto, é muito mais pragmática. Eles não presumem que há valores humanistas, apenas valores, e principalmente chineses. Que muitas vezes nada têm a ver com direitos humanos ou bem estar geral. Ou individualidade. Cada um está ao serviço de uma causa maior, o país; e no caso do Tibete, uma vez anexado, acredito que a pressão de se converterem a esta outra religião civil tenha sido forte. Ainda assim, do que li, à maneira romana, a China não cortou a influência da religião budista na zona, o que seria aliás idiota. Poderás professar o teu mantra... desde que a tua divindade final seja o Comité Central.<br />
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Xiahe é, neste aspecto, uma cidade simbólica, pois aí se localiza o segundo mais importante santuário budista, a seguir, claro, ao Palácio de Potala em Lassa. Quando chegamos, fica claro que o foco desta localidade é precisamente o edifício religioso: há uma longa avenida, ladeada de lojas e restaurantes, cujo final é a entrada do mosteiro. O nosso hostel não fica longe. A dona é uma holandesa chamada Claire, que há alguns anos se radicou aqui depois de se casar com um local. A casa é onde o teu amor se realiza, para alguns. Para mim, nem sei bem onde é. Longe daqui, talvez. Depois de tudo, subo ao quarto que me está destinado e preciso de me deitar antes de tomar banho. Não só para contactar novamente com o mundo, mas acima de tudo as minhas vértebras. Quando desço, já é só para jantar. Comemos no hostel. A ementa é, previsivelmente, chinesa, mas com algumas reviravoltas: enterrada no fundo do menu, existe a possibilidade de pedir um bitoque. Mas de iaque. É escolha única. Dois de nós mandam vir. Um deles, Mário - comendador de Fronteira - regozija-se com alguma proximidade da comida ocidental, ainda que por interposto bicho asiático. Desde que calcou estas tão santas terras budistas, crepita nas suas palavras uma vontade antiga de reclamar a independência local para si, soltando dos grilhões da opressão este nobre povo de século. A ideia, presumo, será governar como rei filósofo, mas prescindindo de epítetos socráticos. Não resisto a roubar um par de batatas fritas. Sabem-me a tudo o que não sabia que precisava. Lembra-me a minha própria fome. Atiro-me à gastronomia local com uma vontade que julgava impossível, mas se dizem que a fome é negra, certamente se referem à minha própria natureza de humores. Um momento cai na mesa em que todos revêem fotos e existe no ambiente uma latência que se deve certamente ao cansaço acumulado não apenas de hoje, mas dos milhares de quilómetros que já fizemos. Quando se sugere um passeio para resmoer o jantar, nem todos se juntam. Somos um punhado que decide visitar o silêncio nocturno de Xiahe. Faz algum frio, como seria de esperar aos três mil metros de altitude. É um passeio calmo, sem muita conversa. À noite, a vila parece mais mortiça e viva em simultâneo. A iluminação dos candeeiros não disfarça um certo breu que se instalada e olhando para o céu, é bem possível ver o cortejo estrelado com nitidez. É civilização, mas só a meio caminho. De quando em vez, escuta-se uma voz maquinal arranhada que grita algo que não percebemos. Durante uns minutos procuro a sua origem, mas só a encontro no altifalante de uma sapataria que está aberta às onze da noite. Onze. Da noite. Deve querer dizer alguma coisa a propósito de preços baixos e produtos de qualidade, por certo. Mas apercebo-me aí que quero cama.<br />
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Mas ainda antes que me possa nela depositar, julgo já sonhar. No interior do hall de um banco, na zona dos multibancos, onde a forte iluminação não deixa espaço para brincar às escondidas, um homem de meia idade, calças de ganga, camisa de flanela, compõe um telemóvel sobre um banco. Penteia-se com os dedos, enquanto dedilha o aparelho. Demora-se uns segundos neste ritual. Puxa de um comando do bolso e aponta para trás de mim. À frente de uma loja de portas entreabertas, uma pequena coluna desperta. Uma canção triste e romântica toma conta da noite. Fazendo contas ao ritmo, o personagem principal deste momento de filme rouba ao ar um microfone e num playback sentido, sincronizado, treinado, olha o ecrã do celular com pulsão e é a estrela de um <i>live</i> para algures. Não sei se quem lhe guarda o coração; não sei se uma audiência de fiéis seguidores; não sei se é casting para Vasco Palmeirim e Catarina Furtado verem. Mas depois do reboliço que foi este dia, nos confins do Tibete, no meio das montanhas, a vida arranja sempre um espacinho para te dar um calduço e piscar o olho aos intervalos da respiração.<br />
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Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-26262533151555047952020-01-22T22:51:00.000+01:002020-01-23T03:58:18.986+01:00Fachinação 17: A fábrica de milénios<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgp0tV6_0HJD26uQVN8t0bJ4SmImcrekOhwMEtgGkBfRSxVg_HbBaWVu2hznKRTP1g9BCDuiWMkkJYo0X7YEe1EZqJ46MRclGKKMN8ADISlAjzb0BgmzgBJkFnWe9tdbamicvy5/s1600/DSC_0036+-+C.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1065" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgp0tV6_0HJD26uQVN8t0bJ4SmImcrekOhwMEtgGkBfRSxVg_HbBaWVu2hznKRTP1g9BCDuiWMkkJYo0X7YEe1EZqJ46MRclGKKMN8ADISlAjzb0BgmzgBJkFnWe9tdbamicvy5/s320/DSC_0036+-+C.jpg" width="320" /></a></div>
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Se pesquisarem no Google por montanhas coloridas, encontrarão centenas de imagens. Uma grande parte delas, no entanto, provém de dois locais em pontos opostos do planeta. Um é Vinicunca, parte central das Montanhas Arco-Íris e principal meca dos turistas que no Peru querem ver esse fenómeno geológico bizarro e quase surreal. Já aqui falei dessas Montanhas, a propósito das minhas crónicas peruanas, embora por felicidade tenha feito a visita a uma zona, Pacallpoyo, onde as pessoas não põem os pés porque tal implica uma viagem de quase 45 minutos por estradas de terra batida e por locais onde o ser humano não habita: apenas se passeia e faz vida ocasional. Há que contar também com o factor rebanho: para onde os outros vão, o humano habitualmente segue; e a turba de turistas vai a Vinicunca. Tiram muitas fotografias lindas, postam nas suas continhas fazendo beicinho e permanecem na memória digital que domina o mundo. Uns meses mais tarde, cada um de vós pesquisa pela vossa curiosidade e encontra-as. Quando a imagem não é da América do Sul - e recomendo, quem não leu a minha visita a essas coloridas elevações de Pacallpoyo, que o faça, pode comparar com o que lerá nesta "Fachinação" - invariavelmente chega-nos da China. A norte da província de Gansu, a meia hora de Zhangye, localiza-se o Geopark de Danxia, um local que apesar de ficar na região menos habitada de todo o território chinês, é constantemente realçado como um dos mais belos em todo o país. Divide-se em três partes, embora apenas duas delas sejam visitadas regulamente. Tal como as multicolores massas terrestres da Sudamerica, também em Danxia existem montanhas de brilho especial e variado. Foi o que li antes de chegar. Podia estar aborrecido por repetir a experiência, mas a verdade é que este é o tipo de fenómeno que não cansa; e tenho motivos para um orgulho especial: há apenas três lugares no mundo onde este espectáculo existe. Já visitei dois, faltando-me outro no Kansas, EUA. Qualquer dia posso dar uma cátedra sem ter qualquer tipo de formação sobre Geologia. Ou apresentar um programa só sobre montanhas coloridas. Sonhos.<br />
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Claro que chego alerta para o dedo turístico que estes locais sempre envolvem. As imagens praticamente todas que são apresentadas aos visitantes, ainda antes que estes ponham os cotos no país, pecam pelo abuso dos efeitos digitais. Filtros de Photoshop e alinhamentos cromáticos carregam e exageram as tonalidades dos minerais e um pouco à maneira das imagens de auroras boreais, criam uma expectativa de espectáculo que raramente se cumpre. Pacallpoyo, por exemplo, é um local extraordinário e de deixar os olhos com água, mas a julgar pelas fotografias promocionais, qualquer um esperaria uma capa de álbum saída do psicadelismo da década de 60, com Jimi Hendrix tocando um solo num gigantesco charro e raios de arco-íris saindo dos olhos de Janis Joplin. No entanto, quando no local, a subtileza é maior e o que conquista o visitante é a envolvência total na cordilheira andina, de maciços rochosos enormes e nevados, que me fizeram sentir como se tivesse encontrado um oásis perdido. A certa altura, esperei dinossauros que nunca chegaram. Uma alienação positiva. As cores regressaram a um aspeto menos excêntrico e extravagante, mais terreno. Ou seja, menos alterado pelo estagiário que nessa semana ficou responsável pela alteração dos folhetos. Daí que, à medida que os carros se aproximavam de Danxia e os meus colegas de viatura trocavam impressões sobre as imagens que haviam procurado <i>online</i>, entre alguma expectativa de fotos capaz de ganhar prémios National Geographic - e ocasionais comentários mais coloridos, mas não necessariamente sobre Geologia - eu aconselhasse prudência. Moderação, acima de tudo. Recordei a minha experiência no Peru e contei, de forma muito mais reduzida, o que escrevi aqui em dois parágrafos. Entre os presentes, o Mário, comendador de Fronteira e Perry Mason da planície alentejana, lapida uma frase que precipita no silêncio curto que antecede uma gargalhada explosiva: "Doutor, veja bem o que diz, que todos nós queremos ver o arco-íris a brilhar: não interessa que um marreta nos revele que afinal é apenas a luz batendo nos pingos de chuva. Não nos roube o sonho".<br />
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Milhões de pessoas chegam para ver o sonho. Isso transparece na maneira como o Centro que toma conta desta atracção gere as visitas. Mal compramos os bilhetes, e após um curtíssimo período de espera, indicam-nos até uma plataforma. Aí, mais de dez camionetas já estacionadas abrem as suas portas para os turistas. São camionetas daqueles de cinquenta e tal lugares, o que já me dá uma ideia bem definida do volume de visitantes que este local costuma ter. De outra forma, a organização não se teria prevenido. Com a subida do poder de compra na China, as pessoas podem entregar-se a diversões; e tendo em conta que o horário de trabalho na China ascende regularmente às doze horas e os trabalhadores apenas têm direito a duas folgas por mês - e períodos de férias reduzidos que mal permitem viagens dentro do próprio país, quanto mais o estrangeiro - é normal que os pontos de interesse nacionais tenham prioridade. Por isso, vindos principalmente desta província e das vizinhas, multidões atropelam-se para assistir a todas estas cores e ao vivo. Nunca vi nada assim, não em quantidade de gente (Machu Picchu, por exemplo, bate facilmente este aglomerado em quantidade), mas na lógica maquinal e industrial da <i>tour</i> que nos é proposta. Visitar uma atracção chinesa, seja ela natural e arquitectónica, obedece às mesmas regras e uma delas é a de seguimos o caminho que nos é proposto e pouco mais. Em Portugal, por exemplo, se quiserem visitar, vamos supor, o Covão da Ametade na serra da Estrela, podem chegar a pé ou de carro; por cima ou por baixo; podem simplesmente dar um girinho rápido ou explorar todos os seus recantos. De forma alguma haverá alguém a policiar-vos ou a ditar ordens. Aqui, pelo contrário, há apenas um percurso. Um caminho alcatroado, de uma faixa e sentido, permite às camionetas percorrê-lo. Apenas podemos parar em cinco pontos, predefinidos. Os veículos estacam, o turista sai e vai à sua vida. A camioneta também. Vê, fotografa, faz o pino se assim o entender e depois pode voltar à mesma paragem. Há-de aparecer nova boleia para o próximo ponto. Visitar Danxia é, portanto, como andar de autocarro; e o que há para ver não pode ser mais democrático: velhos ou novos, ágeis ou empenados, todos assistem ao mesmo e dos mesmos locais. Esta é uma das grandes diferenças em relação ao que vivi no Peru, por exemplo, onde a liberdade do espaço contagiava as nossas pernas.<br />
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A segunda grande diferença, e isso é óbvio logo na primeira paragem que fazemos, são as cores. Assaltam os olhos de imediato. As matizes são de fogo, amarelos, laranjas, leves encarnados que na rocha habitam. Entrecortando, veios de cor escura atravessam este oceano berrante. Parece algo de mágico, mas não é: este bolo de camadas rochoso é o resultado indirecto da formação dos Himalaias, Quando a grande cordilheira asiática saltou dos confins da Terra, vítima do choque a ilha que hoje é a Índia com a plataforma continental, o impacto foi tão brutal que provocou enormes deslizamentos de terras e fendas em dezenas de quilómetros. Aqui, precipitou a queda e acumulação de vários depósitos minerais, a maioria derivados de arenito, em montes. Os milhões de anos de tempo, tratados a chuva e vento, esculpiram o resto. Não existem arestas nestas pilhas: são arredondadas, lisas e pequenos canais que as atravessam são o resultado das águas que ocasionalmente caem nesta região. Portanto, esta arrebatadora paisagem está aqui desde sempre; no entanto, apenas a partir de 2011 foram criadas acomodações turísticas e desde então que chegam aqui manadas de mirones. Onde me incluo a partir de hoje. É um circo, a bem dizer. Logo na primeira paragem, três camionetas largam a turba em simultâneo, uma massa disforme de verticais gentes troca os seus olhos pelas lentes e põe em cena um espectáculo que me incomoda sempre, principalmente porque sei, no fundo, que faço parte dele. Não de maneira completa, mas contribuindo com o meu quinhão. Sessões fotográficas de telemóvel, biquinhos para a câmara, fotos de grupo. Agora tiro eu, agora tu, agora juntos. Fotografo o topo, o meio, o fundo, o conjunto. Gritos e estrépitos vários, a incapacidade de desfrutar completamente deste espaço. No Peru, sentei-me no chão durante largos minutos contando os picos montanhosos, pensando naquela que me põe o coração como um forno vidreiro, ingerindo em lento banquete todas as nuances de uma beleza que me era tão superior que no meu pequeno tamanho só me restava prostrar. Aqui, uma feira popular toma conta e em vez de carrosséis há carroças motoras. Ao invés de serem puxadas por animais, trazem-nos. Eu sei que estou a ser algo bruto, mas aqueles que me conhece sabem que odeio ajuntamentos. Que procura a solidão dos espaços, a distância das pessoas. No entanto, como podem notar, escolhi a China. Eu sei, é uma tragédia de minha própria autoria. Mas retira-me a capacidade de desaparecer por completo como tanto gosto. Um chinês activa um drone e o zumbido assombra-me, causa-me uma sarna que nem mil patas caninas conseguem coçar. Recorro o que tenho: <i>headphones</i> nos ouvidos, Einaudi a combater esta peste negra com pés e a máquina como método de me inserir sem que ser engolido.<br />
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Não sei se seguindo conselhos portugueses, cada ponto é visitável através de um sistema de passadiços de madeira. Porventura, a <i>franchise</i> do Paiva, que se foi estendendo ao restante Portugal tornando trilhos pedestres algo em vias de extinção séria, já terá aqui raízes, numa vingança contra o domínio do investimento chinês. Uma pessoa dá uma curta voltinha por plataformas de madeira, recolhe umas imagens e depois regressa para apanhar novo autocarro até ao próximo ponto. São cinco, o mais imponente, segundo contam, é o quatro. Algumas passagens estão vedadas ao público hoje, inclusive uma que me desperta bastante curiosidade, pois inclui uma ponte himalaia e um ponto final num topo que deve oferecer uma soberba vista. Fica para outro dia então... A segunda paragem tem pouco para ver, mas na terceira, depois de subida uma rampa em curva, temos o apogeu da multidão, onde três plataformas de madeira oferecem igual número de posições de observação e claro, todas devem ser religiosamente cumpridas. Na última, assisto a uma <i>livestream</i> de duas adolescentes que no final me pedem que as fotografe com o telemóvel. Uma delas arranha inglês e pergunta-me de onde sou. Os seus seguidores querem saber quem tirou a foto e é visível que sou estrangeiro. À minha lusa resposta, sou recebido por um "Macau!". É simpático ter nascido num país visto como vilão colonialista e no entanto ser recebido com um sorriso como resposta a isso. Mesmo ao lado, há uma sessão fotográfica profissional envolvendo uma noiva e outra modelo, que o fotógrafo capta à vez. O pano de fundo das montanhas coloridas é, de facto, invejável e nesta zona em particular, com um ponto de vista elevado, ainda mais impressionante. Aqui, juntam-se às cores quentes variações azuis, cobalto talvez, que sobressaem das rochas. A certa altura, o céu nublado abre e os raios de sol incandescem as montanhas. Não é bem fogo, mas é como se o cenário tivesse mudado e depois de mudas, as montanhas pudessem por fim falar na força da forja da sua criação. Todos os veios de minério são visíveis a olho nu nas suas variações e um certo canto de milénios e períodos geológicos ecoa e esmaga por completo toda a maralha que insiste em prestar mais atenção a ecrãs e à sua imagem plasmadas nos mesmos. Ali atrás de si, longe de <i>selfies</i> e chamadas de atenção ao mundo de que existem sim e até fazem coisas porreiras, algo muito mais profundo, comovente ressoa. Sei bem, cinco meses depois, que tema ecoava nos meus ouvidos quando parei simplesmente para assistir à comunhão entre o Sol e a Terra (era a "Ascent", de Einaudi) e são estes momentos que na memória me ficam, mesmo quando tudo conspira para criar em mim amnésia.<br />
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A partir daqui, as montanhas ganham espinhaços que a luz solar releva ainda mais. Quase tenho vontade de caminhar até ao quarto ponto e fotografar pelo caminho, mas não tenho tempo. Novamente a motor; e quando chego, multiplico a experiência de multidão por dez. Deve ser, de facto, o local mais recomendado deste <i>tour</i> há longas filas que se rebocam pelos passadiços numa longa volta. Suspiro. Acho que vou tomar o meu tempo por aqui antes de embrulhar com tanta gente. Vejo dois pequenos miradouro, separados por uns cem metros. No primeiro, a vista que se me oferece supera qualquer incómodo que seres humanos me possam causar. É um mar vermelho e laranja, que nas ondas da erosão se estendes por uma longa distância. Distinguem-se com nitidez funda todas as cores e fronteiras entre si. Neste momento, quero descrever e quase não posso, porque é mesmo algo para ser usufruído pela visão em directo e não um tempo depois através de palavras ténues que tentem reflectir algo que claramente não entendem. É um quadro surreal, de paisagens que não podem existir e no entanto, cá estou a eu a guardá-las de várias maneiras. Não há melhor sítio para me entregar ao ritual costumeiro nas minhas viagens. Retiro da mochila a foto do meu pai olhando o mar e aqui, tenho outro tipo de oceano para que ele se entregue, depois de viver uma vez, à contemplação. Procuro um local que não possa ser pisado por gente distraído, mas sobra-me apenas a cerca do passadiço, onde coloco a mochila para apoiar a imagem. Tiro várias versões da foto e na última, acaso incrível, um parapente surge para compor a imagem. Há ocasiões onde até a doença turística pode servir para o Bem. Arrumando a foto, penso se devo fazer algo que me passou pela cabeça. Hesito. Mas faço. Há uns anos, alguém que.. alguém, vamos ficar por aqui, ofereceu-me um calendário perpétuo pendurado num porta-chaves. Uma prenda idiota, sim, mas no genuíno desejo que serviria para marcar todos os nossos encontros. Porque seria eterno. O que nunca é. O que eu sei. E o pior para mim é que não pode mesmo ser e eu insisto eu teimar que algures será. Eu e ela... Somos pessoas de prendas idiotas. Ela ofereceu-me Rennie por rivalidade clubística, eu ofereço Aspergic por ser uma dor de cabeça; ela procura livros velhos em alfarrabistas, eu compro cadernos nos países por onde passo e escrevo-lhe livros exclusivos à mão. É aquele tipo de mão dada sem a qual o mundo treme e soçobra de quando em vez; mas talvez eu esteja a precisar de um terramoto. Essa dúvida tem-me devassado como um lenho nas últimas semanas e este marcador de eternidade chegou até à China para poder cá ficar. Como se pudessemos eliminar alguém cuspindo os fragmentos que nos deixa na boca depois de um beijo. Sei bem que não. Mas na verdade, pouco sei e não sei melhor. Como tal, não tenho coragem de abandonar algo que tem viajado comigo para todo o lado. Ela e o porta-chaves. Pouso-o no mesmo local onde a foto do meu pai esteve e é como se esperasse que uma morte puxasse a outra. Mas percebo que não e que aquela fornalha montanhosa não se compara ao que em mim arde quando penso nela e na angústia de ser um farrapo quando ela me rasga. Arrumo novamente e atiro-me para aquela multidão que sobe as escadas para peregrinar na procissão do umbiguismo. Talvez os seus problemas saltem para os meus sonhos e impeçam que me assombre. A última imagem que guardo é a de uma jovem que se deixa fotografar atirando beijos à paisagem, como se esperançasse que eventualmente crescessem em árvores frondosas que mais tarde viessem consolá-la. Mas sei bem que beijos semeados não serão fruta em mim: quanto muito, caroços.<br />
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Regressados a Zhangye depois de uma tensa viagem, alguns decidem voltar para o hotel sem jantar. Já são quase nove da noite e o cansaço acumulado de toda a viagem começa a argumentar mais do que a lógica nas decisões. Alguns de nós, ainda assim, necessitam de algo no estômago. À noite, existe um mercado de rua aberto e visitamo-lo. É um labirinto ordenado de pequenas montras e espaços fechados reduzidos iluminados por laternins que se estendem pendurados em fios por todo o espaço. Imensos cheiros misturam-se no ar e confundem a escolha. Não existe nada em língua que percebamos. Caracteres de mandarim anunciam as opções, mas tudo isto se resume, basicamente, ao aspecto. Fio-me no meu julgamento de que estou a comprar uma espetada de carne e quando a levo à boca, descubro desolado que se trata de tofu condimentado com a força bruta de um martelo pilão, numa mistura de cominhos, açafrão, pimenta e mais uma série de substâncias que se encontravam num prato fundo que vi bem, mas sem identificar. Outros procuram em bancas diferentes e até se encontra marisco frito e peixe besuntado de óleo. Qual é o peixe? Desconhecemos, mas acabo por provar e é agradável, parecido nas textura com a dourada. Para matar aquele ratito, cravo pão, mais algum peixe, oferecido com simpatia por alguns dos meus companheiros de viagem, porventura para agradecer a importante lição aprendida comigo de que trazer latas de atum é algo incontornável quando se viaja. A movida é forte, com um barulho constante e tanta gente que me leva a crer que este é um ponto habitual de paragem nocturna para quem quer comer fora. De facto, a comida é barata e existe um lado de diversão e distracção necessária para quem tem dias de doze horas a trabalhar. Nem tudo na vida são geoparques, os pequenos momentos devaneio disperso são tão bem vindos quanto as longas viagens. Amanhã teremos duas ligações de transporte - comboio e camioneta - para entrar numa nova zona da China, esta mais conhecida dos ocidentais. O Tibete. A manhã será stressante, mas nenhum de nós sabe ainda. Por enquanto, o mundo é isto. Gente à volta de uma mesa rodeada de ainda mais gente em volta de mesas. No meio tudo tudo isto, não penso em calendários perpétuos ou de como amar alguém pode ser tão eterno e permanente quanto montanhas que mudam de cor quando o sol brilha. Eu também mudava de cor nos beijos daquela que me ofereceu perpetuidade, mas com tempo limite. De rosa passava a vermelho e da vermelhidão, desaparecia entre as partículas do tempo, criando montanhas em mim de tudo o que sou de bom e também colorido, arco-íris, engano de luz que passa pelos pingos de chuva e nas auto-estradas do tempo, acaba aqui, na última espinha de peixe que colo na borda do prato antes de voltar ao hotel.<br />
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Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-79584107182763785882020-01-15T20:46:00.000+01:002020-01-16T15:23:51.329+01:00Fachinação 16: Zhangye e uma outra China<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjw79lGTA8jOAXsSWPvwcy_6rJYecva-zCRwFWtTCyLTSsV4wH1SJ_Et4VfE5Ws1DBR-f1dSV5MnW1V388jpU3OoCA1GKL4b8nGDnzZLpFgEFmDp46wFZCRN2nn5eC83pIslD_h/s1600/DSC_0848.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1064" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjw79lGTA8jOAXsSWPvwcy_6rJYecva-zCRwFWtTCyLTSsV4wH1SJ_Et4VfE5Ws1DBR-f1dSV5MnW1V388jpU3OoCA1GKL4b8nGDnzZLpFgEFmDp46wFZCRN2nn5eC83pIslD_h/s320/DSC_0848.JPG" width="320" /></a></div>
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É uma China diferente. O dia confirmar-me-á isto, mas ainda antes de o comboio parar, dou uma olhada ao mapa do país e algures durante a noite, quando passámos na cidade de Jinquan, abandonámos Xinjiang. Na prática, é como se entrasse noutro país, com pessoas da mesma nacionalidade, mas outra liberdade para obedecer. É o que se faz na China, obedece-se; mas nos próximos dias, de forma menos aparente e com outros... patrões. No entanto, quando saio na estação de Zhangye, a minha primeira impressão, imediata e inescapável, é uma longa caravana ferroviária militar. Soldados e material são transportados para um ponto incógnito. Observo tanques e blindados, jipes também, à vista de toda a gente. Uma lembrança à populaça de que eles andam aí. Uma conspiração aberta, transparente. Jovens fardados de preto olham pela janela, alguns de volta do telemóvel, reparo num que lê. O tédio da fanfarra da tropa. É o que têm na vida e agora, vão para algures. Calculo que sejam exercícios militares, mas podem perfeitamente ser enviados para a mesma província de onde cheguei, mantendo aquela gostosa marcação pessoal que testemunhei. Não sei, também não pergunto. Li algures que pela enorme quantidade de território desabitado, Xinjiang foi, desde 1949, o palco preferido para testes de armas, atómicas inclusive, do exército chinês. É provável que continue a ser o recreio de guerra nacional. Um dos magalas cruza o seu olhar com o meu. Digo-lhe adeus, de forma quase automática, como quando se encontra alguém na rua e não se consegue disfarçar o desconforto da inércia. Para minha total surpresa, devolve-me a saudação. Encolhe os ombros e sorri. Imito-o e cada vez mais entendo que ser humano é universal, que as esfregas de cada um, seja qual for o regime político, são as mesmas. O tédio é a linguagem comum de quem acorda todos os dias. Todos percebemos o preço de um frete. Ele preso ao dever, eu devendo qualquer coisa a mim próprio. Debaixo deste céu nebulado, pergunto-me o que faço aqui. Não na China, mas aqui. Ele viaja algures para onde lhe mandam e vai; eu tenho toda a liberdade para ser eu e não consigo, há sempre algo. Esse algo poderei ser eu talvez. Vamos apanhar um taxi para o hotel e tenho de me ir. Despeço-me daquele desconhecido e ele aponta para um dos olhos e despede-se também. Não sei se é piada, cagança, algo sério. Mas rio-me. Talvez me veja ao longe. Tem muitas câmaras para ajudar.<br />
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Zhangye é uma das cidades mais importantes da província de Gansu, principalmente por centrar uma larga bacia hidrográfica, do rio Heihe, que é um dos celeiros da China. É o maior centro de produção de milho do país e a sua expansão urbana nos últimos anos deve-se à proximidade de uma atracção turística que visitaremos de tarde, o parque geológico de Danxia. Com quase um milhão e meio de habitantes, é uma cidade média naquilo que é o país. Apesar de algumas atracções turísticas, Zhangye é acima de tudo uma cidade de passagem ou paragem para quem se dirige acima de tudo para Sul ou Oeste. Portanto, é um reclinatório. Apesar da sua posição actual, existem várias menções histórica,s nomeadamente por Marco Polo, no tempo em que se chamava ainda Ganzhou - não confundir com o nome da província. Na altura, devia a fama a um oásis que permitia aos viajantes parar para reabastecer água. É aliás o significado do seu antigo nome de Ganzhou: "águas doces". Já devem ter reparado que há um padrão nestas cidades que tenho visitado. Todas elas deveram o seu desenvolvimento a oásis ou lagos, o que dá para terem um ideia, em primeiro, do quão afastadas dos centros de desenvolvimento sempre foram estas regiões; e em segundo, do quão desértica e montanhosa é esta parte da China.<br />
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Antigamente, no tempo dos reino chineses, havia uma clara distinção entre a verdadadeira China e imitação da mesma. Um pouco à maneira romana, que distinguiam claramente o centro do império das suas periferias, e ainda mais tudo o que ficava fora dos seus limites. Zhangye era uma periferia, tratada pelo centro como um posto avançado de civilização, mas sem pertencer à mesma. Uma protecção contra os inimigos, um ponto de resistência ao avanço dos invasores. Dentro do Império, mas bem fora dele. Longe. Foi ocupada por vários povos, dos quais os mais conhecidos serão os Mongóis. Um dos seus líderes mais famosos, Kublai Khan - com quem, aliás, Marco Polo supostamente contacta e serve nas descrições, ahm, dúbias das suas viagens - terá nascido em Zhangye. Uma história local, que mais tarde descobri num livro, mostra como algumas tradições chinesas actuais, como tentar dobrar a Natureza à soberba oficial, sempre se verificaram no passado. Existia perto da cidade um famoso pinhal, de frondoas e belas árvores, que era o orgulho de quem aqui vivia. Mas a sua importância prática era bem maior: rodeada de montanhas, Zhangye estava exposta aos perigos das águas do degelo. Ora, o pinhal ajudava a abrandar o seu avanço para o rio Heihe, impedindo assim inundações. No final do século XIX, no entanto, um oficial do Imperador ordenou o corte das árvores para construir postes da rede de telégrafos da região. No ano seguinte, aos primeiros degelos, a região foi afectada por grandes alagamentos que mataram centenas de pessoas, e para culminar tudo, um Outono sequíssimo pela correspondente falta de água. Naquilo que é um fenómeno recorrente no país: das dez inundações mais mortíferas da História, metade desenrolou-se na China, quase todas uma mistura de incúria humana e inclemência natural.<br />
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Depois de deixarmos as nossas coisas no hotel, o mais modesto onde dormi até agora (exceptuando os vagões ferroviários, claro), ocupamos a manhã com um passeio pela cidade. Há desde logo uma grande diferença que se nota: as lojas dominam, não importa que exista, por exemplo, uma de marca igual a cada meio quilómetro - o que é mais notório, por exemplo, na Huawei. Aqui, compra-se. O sonho capitalista do socialista Mao. Se em Xinjiang a vigilância era intrusiva, forçada, aqui cada um passa o seu tempo em redor do telemóvel. O Governo agradece. A maior parte das pessoa que vejo estão constantemente presas ao ecrã, falando, filmando, escrevendo. Estejam a andar no passeio, a atravessar a estrada ou a conduzir, o telemóvel é o seu grande mestre. Passear nestas ruas, esbaforidas de gente, dominadas pela publicidade e marketing, pelas montras, por algo que só se reconhece culturalmente pelos caracteres e linguagem diferentes, é uma experiência algo desapontante. De súbito, percebemos todos que temos fome e depois de umas voltas, entramos numa zona da cidade cheia de restaurantes e mercados. Está vazia. A hora de almoço deve ser diferente no fuso horário local. mas o nosso estômago não está adiantado. Comemos numa casa de dois andares, que não tem menus em inglês, mas imagens que ajudam e empregados de mesa que nada explicam. Ainda assim, atinamos e chegam seis pratos diferentes para petiscarmos. Ainda não me habituei a comida chinesa - nem me habituarei, não vou criar suspense - mas já entendi o que pode ser adequado e o que não pode. Frango, por norma, marcha de qualquer forma, ainda que os restaurantes locais abusem em demasia dos molhos picantes e agridoces, que nada têm a ver com o que se encontra nas versões portuguesas. Carne de vaca, varia, que de vez em quando apanham-se umas misturas com vegetais que não são a minha praia. Há um porco frito que também é fixe; cogumelos, depende da preparação. Há uns camarões fritos pequeninos que não me molestam nadinha, mas certos pratos de peixe são para esquecer. O mesmo para patos e afins. Gansos também. O arroz podia ser um bocadinho mais simplificado, que de vez em quando aparecem umas mixórdias com passas e cereais e verduras que tiram o direito de escolha e irritariam os membros da Iniciativa Liberal. Mas no geral, com algum cuidado e olho vivo, não se passa muita fome dentro dos restaurantes. Quando se trata de comer fora deles, no entanto, o paleio é outro. Felizmente, o pão é uma benesse universal.<br />
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Para resmoer o almoço, a nossa deriva leva-nos ao parque de Ganquan, um espaço verde grande, com um laguinho no meio. Há um imenso portal em kitsch chinês que marca a entrada. O tecto exibe pinturas de motivos campestres e florais, rematados por um quadro circular onde dois dragões azuis circundam um sol vermelho intenso. Os portões vermelhos estão cravejados de bolas de bronze dourado. Quando olho o parque, a primeira coisa que me salta à vista são vários grupos de idosos do lado esquerdo. Reúnem-se em torno de mesas e jogam... o que há. Há quatro que se despicam em torno de uma partida de Mahjong. Um dos jogadores enverga um chapéu de palha e antes de iniciar aquela que deve ser uma jogada particularmente complicada, tira-o e descansa-o no ramo de uma árvore atrás de si. Limpa o suor da testa com um lenço de pano e ri muito, o que contagia os colegas de partida. Aproximo-me placidamente e de mãos atrás das costas, para não criar a ideia de que vou fotografá-los. Quero fazê-lo, mas o melhor é ganhar a confiança em primeiro, deixar-me envolver. Fotografar pessoas é diferente de captar paisagens, as paisagens não respondem de volta, nem podem mandar-te uma peça de Mahjong ao nariz. Numa mesa lateral, um estranho jogo que envolve longas tiras de papel branco com pintas vermelhas e negras em cada extremidade. Cada jogador segura um molho delas e não consigo discernir lógica. Lembro-me como como jogava dominó com o meu avô e o jogo era muito simples de entender. Talvez seja por isso que os orientais parecem ser tão bons a Matemática. Já fazem cálculos complexos em tenra idade e quando chegam a velhos, para eles isto é como jogar ao Burro. Entretanto, ainda não reuni coragem para bater umas chapas e vou dar uma voltinha pelo parque para dar ao dedo. Há vários motivos de fotografia, ainda que este parque tenho pouca personalidade: uma imitação do "David" de Miguel Ângelo à beira de um lago sujo, vingança contra as imitações orientais bacocas que Joe Berardo colocou nos seus parques de lavagem de dinheiro; uma idosa que guarda a entrada da casa de banho do jardim, esperando para recolher o seu dízimo a quem quiser usá-la. Enquadrada com o um fundo de flores amarelas que brilham ao sol, veste uma dignifica maior do que a sua função, ou se calhar igual, visto que haverá poucas coisas mais dignas do que ajudar quem em indignas aflições acorre àquele local. Há também uma mutiplicação da famosa escultura fálica que Cutileiro criou para o Parque Eduardo VII, que me faz pensar se na China o famoso mito da pilinha pequena não terá criado uma obsessão nacional. Volto aos jogadores. Ganho arrojo e levantando a máquina com vagar, fotografo. Mais uma vez. Outra. Desta vez as mãos, desta vez as peças e as tiras. Numa e noutra reacções de jogadores. Percebo que não tenho grande talento para captar pessoas, mas que me sinto brutalmente atraído pela maneira como a luz lhes guia as mãos a cada jogada.<br />
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Depois de uma voltinha para alguns beberem café - e aproveitar para descobrir que um bar local exibe como especialidade da casa aquilo que designa por "Cock beer" - encaminhamo-nos por entre o trânsito para o Pagode de Zhangye, que desilude ao não ser uma gigantesca festa municipal. É uma torre que sobra como único vestígio de um antigo templo chamado Wanshou. Há-de ter alguma importância para estas pessoas, porque desde a sua construção em 521, tem sido destruído e reconstruído dezenas de vezes, a últimas delas em 1926. Dos seus trinta e três metros de altura, octogonal no formato, domina uma larga praça com campos de jogos e bancos onde se pode passar o tempo da sorna pós-comida. Várias pessoas, idosos acima de tudo, usam aparelhos de manutenção fúsica azuis e amarelos, que permitem exercícios simples só para dizer ao corpo que não se desistiu e este ainda tem uso. Olho para o pagode de madeira, alto mas com aquela impressão de poder voar se rajadas de vento mais fortes insistirem na sua opinião, e entendo esta relação próxima que as pessoas têm com ele. As fragilidades reflectem-se, mas apesar de tremerem, nenhum deles cai. No centro da praça, há courts de basquetebol onde adolescentes ensaiam a tarefa de se tornarem no próximo Yao Ming. Enquanto não nos notam, driblam distraidamente e quando atiram a bola, é com a mesma despreocupação que exibo quando um aluno me diz "Professor, não estudei para o teste". Mas ao erguer da minha máquina, acorda uma atitude competitiva acelerada. As bolas disputam-se com vigor e cresce o número de lançamentos de longa distância, cada vez com mais floreados e tropelias. Olham para mim e confirmam se estou a fotografá-los, mas até nem estou. Capto imagens do pagode, mas deixo que se enganem, ao menos exercitam-se a sério. Um arrepio frio sobe pela minha espinha e não me abandona a sensação de que me observam. Não uma câmara. Alguém. Continuo na minha e tento criar uma rotina natural que me permita virar o corpo. Não sei se fui bem sucedido, mas contemplo o que estava atrás de mim. A alguma distância, uns duzentos metros, uma mulher de óculos escuros, chapéu cor de rosa, cara tapada por uma <i>echarpe</i> violeta, olha na minha direcção enquanto segura uma cadeira de rodas onde um homem vegeta. Na mão, ela segura uma gabardine beije e não se mexe um milímetro. Uma estátua de olhos fixos, expressão escondida, inexprimível na sua vontade e um mistério na sua intenção. Não sei se me observa. Talvez ao pagode, mas duvido. Fotografo-a e não há reacção. A mesma posição. Não sei se vive ou é uma aparição, se sou o único que a vê. Talvez daqui a sete dias salte de uma televisão para me apertar o pescoço. Talvez de seguida vá bater umas peças no parque com os restantes velhos. Não sei. Aos meus pés bate uma bola de basquete. Um lançamento mal calculado e veio ter comigo. Devolvo a bola. Quando procuro novamente a mulher, desapareceu. Ela e o homem. Sinto-me num <i>thriller </i>de Brian de Palma e antes que apareça Michael Caine vestido de mulher, quero ir embora dali.<br />
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O local mais visitado da cidade, no entanto, é o Templo de Dafo, também conhecido como o Templo do Buda reclinado. Não fica a muita distância do pagode, aliás menos de dez minutos de caminhada e encontramo-nos às portas. Grupos alargados de turistas, com o tradicional bandeirinha no meio sinalizando a sua presença para que ninguém se perca, aguardam a sua vez para entrar. O templo data do século XII, depois de a cidade ter sido tomada pelo reino de Xia, seguidores do Budismo. Segundo a linda, um monge terá ouvido belas melodias acompanhando luzes proféticas numa colina a pouca distância do centro da cidade. Investigando os fenómenos, este corajoso encontrou enterrada uma caixa com uma estátua de um Buda deitado e decidiu logo ali dedicar a sua vida à construção de um templo à imagem desta preciosidade. A história pode ser tosca e risível, mas a verdade é que as imagens que existem no interior do templo, supostamente fazendo parte do mesmo tesouro original do monge, tiveram muitos patronos e protectores ao longo da História. Os habitantes de Zhangye levam-nas muito a sério e conseguiram a proeza de impedir a sua destruição durante a Revolução Cultural de Mao Zhedong. Conhecendo o fervor com que os seus prosélitos arruinaram o património histórico de um país sob a égide de uma China moderna e socialista, isto é um exemplo. As pessoas, na maior parte das vezes, podem não acreditar em outras pessoas; mas têm a vantagem de se agarrar à imaginação e suas criações. Nunca desprezem esse poder, é o que nos separa realmente dos animais irracionais. Terá sido aqui que o tal Kublai Khan nasceu e que um antigo imperador se tornou monge neste templo mais tarde na vida. Ambas as histórias não têm suporte documental, mas a sua presença no imaginário popular mostra o quanto os habitantes de Zhangye se colam à tradição deste edifício para legitimar a sua importância. É algo de bastante básico e compreensível em História. A cidade de Guimarães, por exemplo, anda há séculos a usar este estratagema e a figura de D. Afonso Henriques com o mesmo objectivo. A busca pelo prestígio é universal, uma verdadeira ponte entre Ocidente e Oriente. Quando, em 2006, o Governo chinês voltou a permitir actividades de culto no tempo, uma multidão compareceu à primeira cerimónia, a maior concentração de pessoas neste local em séculos. Vigiando-as, relaxado em posição, o gigante Buda de madeira, onde a figura maior do Budismo mostra o que é sentir o nirvana (falta-lhe a meu ver, uma cabeça balouçando ao som de "Smells like teen spirit", mas é uma opinião), abençoou certamente a cerimónia. Tenho curiosidade em entrar e principalmente contemplar as famosas pinturas murais publicitadas no exterior. No entanto, está quase na hora de seguirmos para o Parque Geológico de Danxia, o motivo que nos trouxe a esta região, e qualquer visita teria de ser feita em corrida.<br />
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No regresso ao hotel, enveredamos por uma rua que não visitámos pelo caminho. É comercial, cheia de lojas de luxo. Roupa, jóias, grandes marcas internacionais e locais, incluindo uma chamada Spider King. Peter Parker de coroa na cabeça, é o que imagino. Ao fundo da rua, existe um templo ortodoxo, todo encarnado. Não sei se devido a um disfarce comunista. Mas o que me chama a atenção é um <i>slogan </i>inscrito em letras douradas na base da montra de uma loja de roupa. Mais uma vez, as grandes traduções de chinês para inglês macarrónico assumem protagonismo cultural nas Letras chinesas. Esta diz simplesmente "Origin from create. Enjoy the personailty. It is the fashion. Lapidar, eloquente, definitivo. E depois surpreendem-se com as minhas dificuldades em lidar com ementas de restaurantes chineses.<br />
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<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-85176532550317640032020-01-08T21:49:00.000+01:002020-01-09T15:02:13.317+01:00Fachinação 15: Intervalo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEif8Q7JF0GYCZZUJz01YP6Dx2j63eCzTnGlV4wdUk3Kc6lMRanEDh9Cs2N6MqE8vZ6OWMvqBlC9i1vgTVqxYd4L_fuCimxvdXheI1Gz9dNCxZxz2_IDpmXSYmo3Qem_PKYyYJa5/s1600/81859116_1084997005226256_6966185930453417984_n.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1152" data-original-width="864" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEif8Q7JF0GYCZZUJz01YP6Dx2j63eCzTnGlV4wdUk3Kc6lMRanEDh9Cs2N6MqE8vZ6OWMvqBlC9i1vgTVqxYd4L_fuCimxvdXheI1Gz9dNCxZxz2_IDpmXSYmo3Qem_PKYyYJa5/s320/81859116_1084997005226256_6966185930453417984_n.jpg" width="240" /></a></div>
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Há um enorme falatório em meu redor, um barulho que não pede licença e simplesmente me arromba os ouvidos. Tenho alguns segundos para me relocalizar e estendido na horizontal, sei que estou deitado. Vejo os meus pés mexendo-se debaixo de um lençol branco. Não fosse o barulho podia ser numa morgue. Em meu redor, as pessoas mexem-se e só não o fazem mais porque o espaço é apertado. Estou numa carruagem de comboio e acabadinho de acordar, começo a lembrar-me do contexto. Fizemos uma viagem nocturna novamente, desta vez saindo de Shanshan, uma daquelas pequenas cidades chinesas com nomes que fazem lembrar coisas não chinesas - no caso, e talvez seja a minha imaginação febril trabalhando a energia atómica, uma procissão de rumba abanando a anca ao som de uma orquestra de percussão e sopros. Há a vaga ideia de que o nosso destino é Zhangye, uma urbe com dois milhões de habitantes. Duas Lisboas, portanto. Tudo isto apesar de ter metade do tamanho. Talvez vos pareça estranhos, mas esta viagem de comboio fez-me perceber que os chineses, na verdade, não vêem problema na concentração de tantas pessoas num espaço tão pequeno, porque, e esta é apenas uma conclusão pessoal, possuem uma definição de espaço pessoal que é bastante lata. O que me levou a concluir isto foi a noite da viagem, as particularidades dos passageiros e acima de tudo, a disposição do género de camaratas - e vamos usar esta palavra para facilitar, porque na verdade é uma má descrição - que os comboios daqui usam na segunda classe. Para um país comunista, que pretende a igualdade entre todos, as diferenças de classes são notórias e pedem, claramente, a cada um que trabalhe mais para que o seu salário seja alto.<br />
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Mas tudo começou no dia anterior, logo após sairmos do chá no deserto. Shanshan não fica muito longe do deserto de Kumtag, onde vos deixei na minha companhia contemplativa. Depois de comprar comida numa lojinha local, onde podem encontrar todo o tipo de sopas chinesas instantâneas contempladas pela Humanidade, cada um arruma no saco aquilo que serão, afinal, os seus mantimentos nas próximas doze horas. Como já referi, o nosso próximo destino será Zhangye, a quase 1150 kms de distância. Para aqueles que não conseguem imaginar esta distância no abstracto, é um bocadinho como se eu fosse de Coimbra para Barcelona. A bitola da linha chinesa permite que nesta viagem possamos atingir os 300 kms horários, ainda que não seja esta a tão falada linha de alta velocidade com que o Governo promete rechear o país - e tentar calar alguns críticos de que anda a desprezar as regiões afastadas nos grandes centros financeiros da Costa Leste. Se olharem para a imagem abaixo, que representa a distribuição do caminho de ferro no país, poderão ter uma ideia mais próxima do que esta diferença significa. Xinjiang, esta província que tenho visitado até este momento, é a mais afastada do poder central. Reparem bem no suspeito vazio de traços que podem encontrar no lado Oeste. Diz-vos bastante acerca de onde passam as prioridades da modernidade do antigo reino do dragão. Claro que, como português, sinto-me pouco à vontade para posições de superioridade para fazer comentários à política ferroviária de outros países. Bem sabemos como os comboios deixaram de surgir em tantas regiões portuguesas sob o pretexto de que ou não eram necessários ou havia alternativas ou que não são rentáveis. A rentabilidade, na China, um país em que cada buraco tapado é uma possível saída para 500 habitantes que por lá estavam à espera de aparecer, não se coloca; e apesar dos meus comentários, é impossível não ficar espantado pelo facto de, num espaço de setenta anos - com várias crises políticas, económicas e humanitárias pelo meio - a rede ferroviária ter crescido mais de cem mil quilómetros quadrados.<br />
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A estação de comboio de Shanshan é igual a todos os edifícios públicos chineses: um enorme mamarracho branco com inscrições chinesas a encarnado. Damos umas voltas até percebermos a entrada, mas com malas arrastadas e mochila às costas, orientamo-nos. Uma vez mais, cumprimos o ritual da prisão. Os nossos pertences atravessam máquinas de verificação; pedem-nos passaportes e bilhetes; fazem-nos questões sobre a nossa estadia no país e se eu ficasse lá mais tempo, ainda me questionavam acerca do que tenho achado do Cinema este ano. Quando chega a altura de ser revistado, os polícias não têm em consideração o nosso pudor. No meu caso, mandam-me que suba um banco e mesmo havendo um homem disponível, é uma jovem chinesa que me passa mão pela roupa. Ela sorri e eu sorrio de volta. Há que dizer que aqui são muito mais simpáticos do que em Kashgar. Pelo menos pronunciam palavras e não rosnam. Prefiro até que ela me sorria, porque evita aquele inglês atabalhoado que os nativos utilizam à laia de comunicação. As minhas mala e mochila encontram-se já no chão. Desta vez, ninguém implicou. O garfo continua no mesmo local, as latas de atum também. Talvez o grande inimigo chinês seja mesmo a higiene. Talvez desodorizantes sejam vistos aqui como armas atómicas, prontas a destruir um certo destilo de vida oriental que exclui a paz do sovaco. O conforto do sovaco. Talvez tenha a ver com a semelhança entre a pelugem que desponta dessa área e a barba hirsuta de um convicto muçulmano. Afinal, esta é a gente que olha para mim e vê um terrorista. Qualquer pessoa que me tenha conhecido sabe que me as minhas bombas são outras. No interior da estação, procuramos um local para, por fim, alaparmos. Teremos muito tempo para isto, penso. Uma noite e várias horas mais. Vou dar uma voltinha a pé, observando as pessoas. Sempre pensei que as famílias chinesas viajavam ao monte, mas o que mais vejo aqui são indivíduos em modo solitário esperando, contando segundos no relógio. Esperar é igual em qualquer lado do mundo. Fones são produto comum, há menos quem leia e um ou outro, normalmente mais velho, passa um pouco pelas brasas. Ser recebido pela polícia à entrada assusta um ocidental, mas garante aos já habituados que deverá haver pouco quem se atreva a ser amigo do alheio.<br />
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Oito e vinte. Regresso ao grupo, estamos quase a sair. Nesse exacto momento, um dos funcionários de estação vem ter connosco. Uma saudação rápida e pede bilhetes. Quer saber se somos quem eles pensa, e somos. Um grupo de doze estrangeiros, não deve haver outro ali. O homem fala zero de outro idioma que não o mandarim, mas é incrivelmente expressivo com os braços. Tragam as malas, sigam-me, percebe-se de imediato. Assim fazemos. Entrega.nos a outro colega, a quem dá indicações. Este saúda-nos com um sorriso maquinal e volta a atenção para o tempo. Por cima de nós está o quadro de chegadas e partidas, é grande e com números e letras fluorescente amarelo. O nosso comboio é logo o primeiro, o próximo a sair. Quando pisca, somos quase puxados pelo diligente homem, conduzidos com profissionalismo e intenção até à nossa plataforma. Subimos escadas e estamos ao lado da linha de comboio. A sua precisão é muito séria: olhando para o chão estaca de repente e indica-nos a posição devida. Faz-nos perceber que não devemos mexer-nos um centímetro, aquele é o nosso local e pronto. Bem sei que tenho passado estas crónicas a queixar-me dos Chineses, mas achei este gesto extremamente simpático. Não sei se fazem isso com todos os tótós que vistam de fora, mas pelo menos, tirou-nos uma preocupação de fora. Então, some na noite que caiu e que tapou tudo em redor. As luzes da estação são a única protecção que temos contras as trevas, como um amuleto de Dungeons & Dragons. Felizmente, a temperatura amena torna a noite num colchão no qual apetece encostar e simplesmente estar. Desponta então, bem lá na distância do breu, um triângulo de círculos brancos. Num gradual vagar, aproximam-se e a sua aparição provoca reacção em quem espera. É o comboio. Tudo preparado, basta-me entrar. As carruagens diminuem a sua marcha, num barulho resfolegante, mas que não incomoda. Quando param, a porta da carruagem que nos corresponde está imediatamente à nossa frente. Que eficácia incrível. Não sei se é coincidência ou planeamento perfeito, mas o pouco que existe em mim capaz de acreditar em magia agarra-se à segunda como Rúben Dias a um adversário contrário. Não consigo deixar de ficar espantado. Olho para as restantes plataformas e aconteceu exactamente o mesmo. Não admira que os Chineses apreciem tanto estas virtudes de organização do seu estado autocrático.<br />
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Uma surpresa aguarda-me no interior da carruagem. Contrariamente ao conforto e privacidade das cabines que nos receberam na primeira viagem nocturna, desta vez vamos em segunda classe. O que significa desde logo uma série de coisas. Em primeiro, que este é mais um episódio da série "Tudo ao molho e fé em Deus, ou Deuses, ou aquilo a que seja que te agarres". Há uma multidão aqui metida neste caixote de de metal comprimido e circulam todos para cima e para baixo num corredor onde cabe um homem de pé e sem se atrever a expirar o ar com vigor. São crianças, velhos, adultos de meia idade, toda a gente. Dançamos todos quando decidimos circular e mesmo quando nos sentamos em redor das pequenas mesas que estão disponíveis, a operação de levantar e alapar é garantida. Pelo menos, faço exercício activo e agachamentos constantes. Em segundo lugar, a dormida é muito mais comunitária. Existem dez espaços abertos, cada um deles com seis pranchas de madeira - três de um lado, três do outro - que a trepam pela vertical. As separatórias são apenas laterais. Ou seja, a minha vigília de sono estará exposta ao mundo. O que é incrível. Ninguém parece importar-se. O meu lugar está numa das pranchas do meio. Quando trepo até lá que nem um macaco de Java, por uma escada que tem pouco de prático, ninguém treme ou pestaneja, ainda que tenha dado um ligeiro pontapé ao infortunado que dorme por baixo de mim. Leito estreito, lençóis de risco. A almofada é baixa e existe um cobertor curto para me tapar. Embora, e isto especulo eu com a quantidade de gente que dorme nesta carruagem, não me pareça que sofra de problemas de frio esta noite. Tiro as medidas à "cama". Dá para me esticar sem ficar corcunda. É uma vantagem. A mala está arrumada no meu campo de visão. Confio na passagem constante de um polícia balofo, com corte de cabelo militar, mas ondas de suor a escorrer pela cara à medida que a noite avança. No entanto, e por muito que a opressão chinesa me mereça respeito, não entrego a protecção da minha mochila à Virgem Maria da Conchichina. A ideia de despertar no pesadelo do roubo da minha máquina é quase suficiente para nem pregar olho durante a noite. Na, vá lá, parede ao meu lado, um gancho de metal desafia-me a acordar subitamente sem sofrer um galo. Talvez passe por ali a solução dos meus problemas.<br />
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Enquanto me dão encontrões, como uma lata de atum à maneira
de jantar. Ao sexto dia de viagem, os meus colegas de jornada já começam a
olhar com alguma inveja para as garfadas que levo à boca, como se este peixinho
que parece carne fosse o pitéu mais desejado. Sem ter provado os produtos
chineses que se compram em supermercados, tiro a conclusão de que talvez não
sejam a refeição saborosa da Ásia. Confesso que me acontece sempre, depois destas viagens, evitar ao máximo manjares de atum durante o resto dos meses, pois não é de todo o meu prato de eleição. Mas o facto é que me tem ajudado, a um esquisitinho com comida, nestas explorações mais exóticas que tenho feito. Eu, que não gosto de nada de comida chinesa, vim à China. A conclusão era por demais óbvia. Mas até me tenho surpreendido. Vão-me puxando conversa, aqui e ali. Dou uma olhada no plano dos próximos dias: temos atracções geológicas, visitas ao Tibete Chinês e alguns dias na capital. Prometedor. No entanto, acho que ninguém está bem para ficar ao paleio, até porque em nosso redor, os passageiros vão recolhendo. Neste género de viagens, conta-me o Zé Luís, as luzes fecham aí pelas dez e meia. O que até faz sentido. Recolho ao meu belo refúgio e descubro um pequeno candeeiro. Enquanto ao meu redor a claridade se extingue e consigo escutar um senhor velhinho que dorme paralelo a mim ressonando, continuo o meu livrinho sobre os diabinhos de Hollywood. Mas a certa altura, até eu começo a sentir o peso das horas, ou o efeito mágico do embalo do comboio. Arrumo o livro e a minha mochila vai logo para o tal ganchinho. A minha posição de dormida está calculada para roçar sempre esta guardiã dos meus tesouros - inclusive o meu passaporte, o mais importante de todos, a minha defesa máxima contra a Magia Negras das autoridades chinesas. Num estado de vigilância relaxada, recupero o que vivi neste canto que, na altura em que visito, está tão longe dos olhos do mundo. Quando, meses depois, escrevo estas crónicas, várias informações sobre as opressões e maquinaçãoes em Xinjiang se tornam públicas, surgem em jornais, através da publicação de documentos secretos e testemunhos sempre ignorados. Um dos principais exilados uigures que vem chamando a atenção para este problema será até recompensado com o prémio Sakharov da União Europeia. Mas quando aqui venho, sou abençoado com o dom de ver no futuro, de viver tudo sem saber minimamente ao que vou. Tenho a noção de que o pior me passou mesmo ao lado, mas vi ainda assim coisas assustadoras. Nunca estivera num país onde visse pessoas amedrontadas pelo simples facto de existirem. Que me dizem, sempre em sussurros, que podem ser levadas, que conhecem quem foi e que alguns nunca mais voltaram. É como viver num perverso jogo de escondidas com consequências graves. Senti que nalguns pontos, via uma realidade com filtro à frente, sem contactá-la. Um museu de cera, mas irreal. As câmaras e as abordagens nos edifícios públicos impressionaram-me, mas não tanto quanto uma sensação de quase vergonha em ser-se, de pedir licença para simplesmente prolongar uma cultura milenar ou sequer ousar viver de forma digna. Mais do que a liberdade, o roubo chinês foi o da dignidade, ou pelo menos a tentativa de fazê-lo. Porque ainda não conseguiram. Nem aos uigures, nem aos próprios chineses. É sempre tentador, numa ditadura, acharmos que todos os cidadãos reflectem os ideias do seu governo; mas encontrei na China gente aberta e acessível também, curiosa pelo que vem de fora, disponíveis para dar a conhecer algo de que também se orgulham e é seu. E a resistência dos uigures não está em manifestações, mas naquele olhar que indica uma espera pelo momento em que, atravessando a distância que nos separa, nos dispõe num gesto simpático e acolhedor, na palavra hospitaleira, na disponibilidade para ajudar. Enquanto o espírito humano resistir ao veneno do ódio, a maldade não triunfa. Não pode. Nem sequer o poder absoluto que põe e dispõe conforme o vento lhe manda.<o:p></o:p></div>
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E regresso ao meu despertar que começou esta crónica. Quando abro os olhos como deve ser, a primeira coisa que vejo é um garoto. Tem talvez uns quatro anos. Camisola vermelha, da cintura para baixo apenas cuecas e sapatilhas. Ao lado, um irmãozinho com metade da idade, talvez. Descasca uma laranja e vai alimentando o pequeno, com indicações da mãe. Estão todos sentados na plataforma mais próxima do solo. O miúdo olha-me fixamente enquanto estende simpatia ao mano. Sorri e eu não se consegui retribuir tão pouco tempo depois de ter acordado. Mas faço umas caretas e cria-se uma pequena empatia entre nós. A minha mochila ainda está comigo. Depois de ter sido desarmado por aquele momento espontâneo, o meu coração, definitivamente, também.</div>
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-39072721824253401892019-12-19T23:02:00.006+01:002019-12-20T13:57:41.295+01:00Fachinação 14: O vento que leva, o vento que passa<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh5Y-19nvHRrlm05vpQHh3jEmXx6AIvau2iQWMd8wfLokD77TmTX9A1Y2yXxiaiYIleoyh5D67QCe7KrJ_MoCASv9J2lqciOzE3lMi52uflli_R7O_viEuNY3z5qnvTz9jSV-U7/s1600/DSC_0824+-+C.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1065" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh5Y-19nvHRrlm05vpQHh3jEmXx6AIvau2iQWMd8wfLokD77TmTX9A1Y2yXxiaiYIleoyh5D67QCe7KrJ_MoCASv9J2lqciOzE3lMi52uflli_R7O_viEuNY3z5qnvTz9jSV-U7/s320/DSC_0824+-+C.jpg" width="320" /></a></div>
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É o ponto sem regresso. Pelo menos, assim surgiu o seu nome: o enorme deserto de Taklamakan envolve este ponto da província de Xinjiang e espalha-se para Sul praticamente até ao Paquistão. O seu tamanho corresponde ao da Alemanha, portanto imaginem só tal imensidão de areia mesmo no coração da Europa. Não conseguimos. Não existem desertos na Europa continental; e o mais curioso é que o seu aspecto não é fixo. Muda sempre. As suas dunas erguem-se e desfazem-se com a passagem do tempo e dos elementos. Ou seja, se voltasse cá no próximo ano, provavelmente veria uma paisagem completamente diferente. Penso nas minhas aulas de Teoria da História e na obsessão que o professor Fernando Catroga tinha pela forma do tempo, pelos seus ciclos, a circularidade de Santo Agostinho e a música das esferas de Herder. Talvez seja de ser muito cerebral em pontos. Não sendo um deserto de emoções, embora por vezes gostasse de secar ao ponto de tudo ser areia que escoa, de fazer desaparecer tudo no ritmo da ruína. Este ponto sem regresso foi na Antiguidade estrada de comerciantes, cujas probabilidades de ultrapassar Taklamakan eram tão boas que o baptizaram desta maneira: um local onde uma vez entrado, a saída não é certa. Animador. A única salvação possível nestas viagens pela desolação eram os vários oásis espalhados pelas areias, ponto de refúgio e acima de tudo, água. Muita água. Com o tempo e a afluência de pessoas, esses oásis deram lugares a cidades que funcionavam em seu torno, pontos de fixação de gente, de vida, de negócio, de cultura. Quase todas as grandes cidades da Ásia Central começaram assim e aqui na China, já visitei Kashgar e Turpan, dois exemplos. Água é vida. Se isto hoje é um chavão, imaginem em territórios onde esta só se encontra em recantos desérticos conhecidos de alguns. Depois da visita aos Budas cavernosos, a estrada leva-nos a uma dessas cidades oásis, que a certa altura foi uma das grandes metrópoles dos antigos reinos chineses: Gaochang.<br />
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Surgida como entreposto de comerciantes, Gaochang sempre foi uma cidade cobiçada pela sua função e posição a norte de Taklamakan. Hoje, só existem algumas ruínas, incluídas num museu. Gaochang é património mundial e considerada uma da cidades mais bem conservadas da China Antiga, dizem. Quando chegamos ao edifício da recepção, chove. Chuva numa das zonas mais secas da Ásia. É quase um sinal colonialista, ocidentais aparecem e vida surge. Enquanto esperamos pelos bilhetes, reparamos num velhote que toca cítara com vontade e galhardia, acompanhado por outro que dá uns batuques. Estão quase a terminar um mini concerto. Unplugged in Gaochang. Atrás de si, duas mesas preenchem-se de pratos cheios de uvas. Têm um ar apetitoso, com a sua cor verde amarelada evidente, sumarentas no aspecto, convidativas na fome que tenho. Um funcionário deve ter reparado no meu ar esfaimado e com um sorriso, empunhando o inglês macarrónico que aprendi a amar na função pública chinesa, explica-me que elas estão ali para serem comidas por quem queira.<br />
Por esta altura, Turpan vive a Festa da Uva, essa fruta que tem um papel tão central nesta região como já expliquei. É tradição por esta altura oferecer a estranhos, estrangeiros e conhecidos doses generosas deste fruto como sinal de agradecimento aos deuses pelas colheitas e também porque, segundo ele, a prosperidade deve unir as pessoas e não separá-las. Todas as casas de Turpan, conta, participam e as pessoas gostam de dar a conhecer algo que as orgulha tanto. Calculo que vivendo num deserto esquecido pelo governo central, não haja muitos motivos de orgulho a que se agarrem. Uma uva é algo tão válido como qualquer outra coisa. E são muito boa: trinco uma e logo a casca estala entre os meus dentes, uma das minhas sensações preferidas quando como fruta. O sumo é doce e arranjo logo o descaramento de tirar dois cachos e entregar-me assim à gula. Enquanto nos dirigimos ao espaço de visita, como-as e passo por um conjunto de estátuas que representam figuras importantes da História da cidade. Nem todas são homens, há mulheres, o que costuma ser uma raridade nas representações do passado.<br />
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A tour pela ruínas da cidade é simples, até porque não sobra grande coisa da mesma. Foi destruída no século XIV em definitivo e abandonada desde então. Boa parte dos edifícios que restaram foram destruídos ao longo do tempo por gente que necessitava de material de construção. Vamos dar uma voltinha num veículo descapotável com 30 lugares, onde os melhores são aqueles que ficam atrás, porque permitem uma visão quase a 360 º. É num deles que me sento. Logo percebo que Gaochang era enorme no seu auge, a julgar pela longa muralha que rodeia o espaço onde antes se localizavam as casas. Há espaços claramente divididos: a moradia real; a zona religiosa; o centro da cidade; e uma periferia onde, somos informados, moravam por norma os seguidores das religiões minoritárias, normalmente variando entre os Islamismo e o Budismo. É muito complicado explicar a História de Gaochang sem que exista um conhecimento mínimo da própria História da China ou mesmo da Ásia. A nossa obsessão ocidental de criar uma narrativa histórica eurocêntrica fecha o conhecimento que temos - bem, aqueles que o têm - à complexa evolução dos reinos chineses e asiáticos.<br />
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Não vou tentar entrar aqui em pormenores, mas fica uma versão para idiotas como eu: houve quatro dinastias antes de Cristo e um período de Guerra Civil. A mais duradoura foi a primeira, que se estendeu por quase um milénio; no entanto, pequenos reinos ocuparam partes do espaço chinês actual, que só começa a ter esta dimensão com as campanhas militares e expansão da dinastia Han, a primeira depois que JC quina. Depois de, em 220, o reino Han se ter dividido em três, há um período em que o país se divide, algo que só temrina em 581, no início da curta dinastia Sui. No entretanto, o verdadeiro ponto unificador do país era o comércio da Rota da Seda, em cujas estradas os reinos chineses foram sucedendo e caindo, mas mantendo uma unidade fictícia no meio de religiões e culturas muito diferentes entre si. Depois de um novo período de divisão, devido às disputas decorridas após a morte de Genghis Khan - que conquistara todo o território chinês - há nova união no início da dinastia Yuan, em 1271. Nos sete séculos seguintes, o reino atravessa momentos de apogeu e declínio, principalmente devido à intervenção das potências ocidentais, durante os períodos Ming e Qing, dinastia que encerra o período monárquico na China com a deposição do último imperador, Pu Yi, em 1911. Desde então, o período da República tem permanecido, com a maior alteração a surgir em 1949, quando após um período de revolução, o Governo Chinês democrático se exila em Taiwan, ainda hoje reclamada pela China como território, e Mao Tse-Tung inicia a era da China comunista.<br />
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Claro que mesmo com isto percebo zerinho do que vejo. Para mim, é uma imensa planície de areia encarnada, com reconhecíveis escombros e destacado, lá ao fundo e aproximando-se com o movimento do veículo, um único edifício de pé. Do que me apercebo, Gaichang era um quadrado, a julgar pelas muralhas que ainda se mantêm de pé e pela linha evidente daquelas que foram sumindo vítimas dos vários conflitos tribais que se desenrolaram nesta área mesmo depois do desaparecimento da cidade. Existem ainda as nove entradas originais da cidade, embora aquela voltada a Oeste seja a melhor preservada e a única onde a porta é, de facto, evidente. A construção isolada que mencionei ergue-se a sudoeste e sem que esteja perto, pela forma cónica e vertical, arriscaria que é um templo de uma qualquer religião - o meu conhecimento de arquitectura não cristã é reduzido, infelizmente. Han, o guia de que vos falei na crónica anterior, é uma cátedra de passado chinês e também sabe muito sobre tudo isto. Explica os ires e vires de Gaochang e alerta que vamos fazer duas paragens: uma no tempo budista - o meu palpite revela-se correcto - e outra no palácio imperial, que não consigo ver a partir de onde me encontro. Bem, lá chegaremos. O templo, que é um de dois (informam-nos que o outro não pode ser visitado, mas mistura religião e justiça), é circular e tem apenas uma entrada. Não sobra inteiro, mas consigo ter uma ideia do que seria no seu tempo áureo. O Han refere que antigamente, era completamente pintado em redor, de azul e dourado. Hoje, sobra a cor dos tijolos. Parece que um conhecido monge budista chamado Xuanzhuang. que soa à onomatopeia de um beijo de velha parou aqui, a caminho da Índia e proclamou uns sermões que devem ter sido tão bons que ainda hoje se lembram dos mesmos.<br />
Rodeio o templo e subo umas escadas que conduzem à entrada. A porta está fechada, mas permite uma espreitadela. Vejo uns murais e pouco mais. Talvez tenhamos mais sorte no Palácio. Cinco minutos depois, chegamos a esse espaço. Mais ruínas, a palidez do céu cinzento não ajuda a criar na minha cabeça essa imagem de esplendor que nos querem fazer crer quando falam de Gaochang de maneira tão elogiosa. Há uma estrutura cúbica a meio e paredes que se desfazem, sem personalidade, rodeando. Consigo perceber, pelo menos, o tamanho desta moradia real, era enorme. Não há dúvida que de essa ideia de gigantismo de antigos reinos chineses, de riqueza, de importância histórica é um bálsamo para o ego deste povo. Uma placa de madeira, colocada estrategicamente, lança um lema que pode muito bem ser desígnio nacional: "Sorrir é a nossa linguagem; a civilização a nossa crença". Tudo bem, camarada Xi, mas todo este aparato por umas ruínas, mesmo que imensas, que quase nem ruínas são é demasiado. Conimbriga fica-me mais perto de casa e os Romanos tiveram classe o suficiente para criar uma técnica de mosaico que dura mais de dois mil anos depois.<br />
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Claro que, viajando pela China, percebemos que as suas visões do passado apenas aguentam pela força simples da vontade e do dinheiro. Tuyok é o exemplo disso. Enquanto por um lado envereda por esforços para acabar com a cultura uigur, o governo chinês anda a recuperar esta pequena aldeia típica desse povo ancestral simplesmente por propósitos turísticos. Fá-lo de forma atroz, violando a beleza simples da arquitectura deste povo e apenas mantendo aqui aqueles que ainda vivem de acordo com tradições milenares pagando-lhes, não dando qualquer outra visão esperançosa do futuro. É triste, muito triste. Almoçamos aqui, cortesia de uma família local. Recembem-nos debaixo de um vinhedo, num caminho a partir do qual acedemos às casas. Aqui, o mundo está longe, algures. A simpatia das pessoas, a disponibilidade da partilha e aquela sensação, mesmo ligeiramente falsificada, de comunhão, existe enquanto comemos do seu pão e da sua fruta, das suas compotas, da sua carne. Tento ao máximos quebrar a ideia de que eles estão ali para me servir, mas percebo, ao logno da refeição, de que tal é impossível. Estão formatados a isso, a verem-me, um estrangeiro, como alguém que paga e espera algo, não como um curioso que chega e quer conhecer, comunicar, ver, trocar experiências. O mundo é cada vez mais a barriga exposta do capitalismo de versão egoísta. Há poucos países como a China para saber estragar uma coisa boa.<br />
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Ainda assim, pelo espaço, pela observação desta gente, é um momento de descompressão e de algum prazer que nem a escumalhice consegue estragar. Logo de seguida, damos uma volta breve pela aldeia. Enfiada num vale vinhateiro das Montanhas Flamejantes, é um conjunto de casebres de adobe pequenos. A maior parte tem dois andares, um rés-do-chão e um piso superior habitualmente com varanda, presumo que para colocar as uvas a secar. Por vezes, passamos por gente na rua, mas aparte de dizerem olá, ignoram-nos. É como se nem estivéssemos ali. Existe ainda uma mesquita azul que está fechada. Na curta volta que dou, reparo numa placa que celebra Albert von Coq, arqueólogo alemão que referi na grutas do Buda que os pariu por ter gamado pinturas murais e artefactos. Aparentemente, morou aqui uns tempos e merece ser celebrado por isso. Parece pouco chinês, isto de elogiar alguém que tão claramente explorou o país e é estrangeiro. Ainda nos cruzamos com um velhote que à sombra de um toldo, guarda uma arca frigorífica e quer falar connosco no seu próprio idioma. Percebemos zero, mas o seu entusiasmo e alegria são tesouros à parte, das poucas coisas genuínas que guardo desta visita. Mas é hora de partir. Junto ao autocarro, um de nós tenta comprar uma garrafa de água, mas desiste. O ponto de venda está incluído na esquadra de policia de Tuyoq e querem cobrar 12 yuans por um produto que habitualmente custa dois. Gatunos. A China é comunista, mas quando convém. Como sempre, adapta-se às realidades, explora necessidades e projecta a imagem que conta e favorece. Imagem. Aspecto. São palavras que guardo destes primeiros cinco dias no país.<br />
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No último ponto do dia, regressamos ao deserto. Embora, na verdade, nunca o tenhamos abandonado. Depois de uma longa recta que atravessa um campo de extracção petrolífera, aquelas garças mecânicas em constante movimento sugando o interior do planeta, entramos numa pequena aldeia de portões desenhados, todos. Depois disso, a carrinha estaciona num largo parque e à nossa frente, areias amarelas distinguem-se a algumas centenas de metros. Kumtag. A montanha de areia. Um planalto desértico que se prolonga até à Mongólia e é uma extensão de Taklamakhan. Que continua a expandir-se. Se observarmos um mapa de há dez anos, a área de Kumtag correspondia a dois mil e quinhentos quilómetros quadrados. Hoje, é quase o dobro. Como noutras alturas, os caprichos da Natureza ameaçam cidades e povoações e as primeiras vítimas, neste caso, podem ser precisamente ruínas antigas como as de Gaochang. Este é um problema que tem afectado o nordeste da China, com o avanço das areias a obrigar a leis anti-emigração e desperdício de água, pairando o medo de que nalgumas décadas, todos estes locais que visitei hoje possam estar completamente enterrados. Quando em Portugal falamos de desertificação e seca, nunca pensamos nestes efeitos. Mas aqui, a escala é diferente em tudo. Até na malapata. Somos transportados até um ponto a partir do qual começam as visitas. Porque temos horas contadas para apanhar um novo comboio nocturno, dispomos apenas de pouco mais de meia hora. Desperdício, claro, porque este parece um deserto como deve ser. Viajo para fotografar, não para correr atrás de transportes. Ponho por isso pés à areia rapidamente. À minha frente, uma encosta picada arenosa contempla-me zombateira. De cabeça, calculo que sejam pelo menos uns 400 metros. Talvez mais. Bem, de certeza mais. Não tirei as férias para fazer cardio, mas já que aqui estou...<br />
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Meto um ritmo regular e lento. A cada 50 passos, paro uns segundos. Respiro. Há muita gente aqui, este é um popular lugar de turismo. Ainda assim, não são muitos o que, como eu, se entregam às dores fisicas do prazer da visão. Há quem se deite aqui como quem está na praia, mas o mar existe milhares de quilómetros longe das sensações. Mulheres passeiam de sombrinha, adolescentes fazem selfies parolas, vejo até alguém que lê descontraidamente. Lembro-me que no ano passado, no Peru, havia quem surfasse as ondas de areia. Aqui, não existem esses corajosos Chego ao topo e tenho de me desligar durante uns segundos. Numa longa extensão, fico com a impressão de que um grupo de serpentes deslizou pelo solo e o que vejo são esses rastos fundos e bruxuleantes, que o sol se encarrega de transformar num espectáculo de marionetas das sombras. O relevo criado pelos fortes ventos que aqui circulam criou uma cordilheira de pó cristalino e mineral, amontoado numa amarelecida luz que o sol expande nos meus olhos. É imaginar os vossos pés na orla do mar, mas numa multiplicação por cem. Kumtag não é um deserto grande na métrica dos tamanhos desérticos, mas impressiona e captura o olhar, afunda-o como os meus dedos do pé se afundam no solo.<br />
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Quero sentar-me e ficar um pouco, fotografar como bem me apetece, mas não tenho mesmo tempo. Alertam-me que mais cinco minutos e temos de ir embora. No entanto, aqui consigo pensar de desligar-me, é a primeira vez que tenho espaço mental para isso desde que me envolvi com as montanhas da estrada de Karakoram. Daqui a três horas, abandono Xinjiang e começo a pesar bem tudo o vi aqui, no quão diferente é de mim e do que conheço. Mas nem consigo engrenar a reflexão como quero. Estamos à pressa, estamos a correr. No regresso, o que inclina de uma maneira agora vira ao contrário. Enquanto os meus colegas de viagem descem cuidadosamente para não cair, largo numa corrida desenfreada e sem qualquer pinga de comportamento civilizado. Não vejo câmaras ou polícias, nem ninguém a vigiar-me. Neste deserto, sou livre por momentos, na minha estupidez tão desmesurada quanto este campo de areias. Pode haver sinais de vida em desertos. Quero acreditar que neste segundo em que me torno idiota, sou um deles, e bem forte.<br />
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<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-15235348.post-8983295443403034062019-12-12T01:06:00.003+01:002020-01-20T17:58:21.685+01:00Fachinação 13: O Buda que os pariu<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhNlX_NwEMA6luWrteVYvd3FZeEBavPWpcD6EliFQrznGIXStMCgmk1FDwbYIc_RjZlUo4dY2TGsutmfZmTqhfvlDAtv8MCTwxSzq4vTebG9KE4bx8sMhzEubfs7_EjwZH_53Xw/s1600/DSC_0714.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1064" data-original-width="1600" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhNlX_NwEMA6luWrteVYvd3FZeEBavPWpcD6EliFQrznGIXStMCgmk1FDwbYIc_RjZlUo4dY2TGsutmfZmTqhfvlDAtv8MCTwxSzq4vTebG9KE4bx8sMhzEubfs7_EjwZH_53Xw/s320/DSC_0714.JPG" width="320" /></a></div>
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Abro os olhos e vejo vermelho. Perdes-se na distância, na minha vista. A extensão é longa e a certa altura, é tão compacto que se torna impossível de escapar. Mas se o vento sopra com mais força, desfaz-se em pó fino e maleável. Areia. Um deserto encarnado com planícies e dunas altas. Não desperto de um sono, apenas me fui afastando de quem viaja comigo na carrinha, perdido entre as notas musicais que nos meus <i>headphones </i>se tornam escapatória da China. É-me complicado tantas vezes estar num sítio por inteiro. Ou estar com pessoas a toda a hora. Preciso de mim e ouvir música é talvez a maneira mais educada de mandar pessoas à merda. Quero que saibam que não é nada de pessoal. Se não forem estas pessoas, são outras. Porque preciso mesmo de fugir de quando em vez. De pensar, de reflectir, de recordar. A memória faz muito parte de nós e acho que tem sido um dos temas principais das crónicas que fui escrevendo ao longo dos anos, viajasse eu à América do Sul ou ao Círculo Polar Árctico: interessa-me muito o que nos constrói como pessoas e como grupos, grandes ou pequenos. Acho que também por isso que acabei em Historia, que lá jazi durante quatro anos e ainda hoje ando em exumações.<br />
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Na China, a memória é entendida como reinterpretação. A tarde do dia anterior foi preenchida pela visita a uma espécie de parque de diversões do vinho, um museu que supostamente nos apresentaria uma resenha histórica da produção vinícola por Turpan e quando damos por nós, parece que Joe Berardo abriu aqui um Buddha Park ainda mais parolo. Localizado no vale que produz as mais conhecidas bebidas alcoólicas da região, é um daqueles museus onde não se aprende nada daquilo que se quer ensinar, porque o professor não só não preparou a aula, como dispensa qualquer tipo de matéria a leccionar. Faz uns números de malabarismo, engole umas espadas e conta assim que saiamos mais enriquecidos. Aqui, é a mesma coisa: do edifício da recepção, somos transportados por um comboinho que faz uns três quilómetros até à atracção principal, recriações de algumas casas dos tempos em que se fazia vinho a sério por aqui. Cores berrantes, estuque barato, imitações de objectos, murais sem qualquer gosto. A China reescreve-se e entrega essa visão à população que a consome. Quando organizei mentalmente estes textos de viagem, poderei seriamente se valeria a pena dedicar tempo a esse local. Talvez tivesse um interesse <i>kitsch</i>, mas no geral o que sobra é esse elemento de feira popular bacoca que agrada tanto aos chineses. Vê-se pouco e o que se vê assombra pelo desfasamento da realidade. É o que há e não é muito; e o que há é o aproveitamento de uma cultura que se quer exterminar, o que dá um toque muito <i>sui generis</i> a tudo isso.<br />
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Mas hoje, pelo menos em teoria, visitarei locais de real interesse histórico. O guia chama-se Han e no início da viagem automóvel, foi debitando alguns factos interessantes: falou da geografia de Turpan, de como fica numa depressão e de como tal originou uma das lendas mais fortes de Xinjiang, a de que o Apocalipse final do mundo se dará nesta cidade perdida no deserto. Olhando pela janela, vendo desolação e areia, quase consigo acreditar, embora tenha para mim de que a Besta apreciaria mais areia junto ao mar. Contou-nos também o mistério de alguns painéis electrónicos que já viramos em Kashgar, com uma contagem decrescente. Trata-se um projecto governamental de erradicação de pobreza. Os números nos painéis são a quantidade de dias que faltam para que desapareça a indigência no país. Diz isto com um ar sério e sorridente em simultâneo. O Han não é historiador, mas sim engenheiro; no entanto, está desempregado e faz estes biscates porque se interessa muito por livros e por saber coisas. Deve ter uns 45 anos, é baixote e largo e fala num inglês bastante bom. Foi de ler muitos textos em estrangeiro quando tirou um curso, o que mostra ou uma estranha abertura do aparelho chinês ao Ocidente ou o funcionamento pleno da espionagem industrial do país. Mostra-se também muito preocupado com o aquecimento global e os motivos não são apenas superficiais.<br />
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Uma boa parte da água que tornam Turpan num literal oásis no deserto vem do degelo de glaciares e cumes nevados das montanhas próximas da cordilheira do Tian Shan. A população tem beneficiado da gradual renovação desta fonte de água desde a sua origem. No entanto, o mesmo aumento de temperatura planetário que tem dizimado as calotes polares e virado do avesso o clima em muitos países acelerou este processo, levando a que as reservas de água gelada tenham diminuído assustadoramente. O Governo Chinês mostra-se, por uma vez, verdadeiramente preocupado com uma parte de Xinjiang por outros motivos que não sejam sinistros. Por ser o maior fornecedor de vinho do país, e falo de produção real e não folclórica - também existe - é de todo o interesse que continue aqui a florescer agricultura. É um pouco complicado fazer crescer vinhas sem rega. A China sabe perfeitamente que controlar este fenómeno está longe do seu controlo. Também sabe que é um dos grandes responsáveis pelo mesmo, pela sua irresponsável política industrial de há trinta anos para cá. Mas a população não necessita saber. Para a imagem pública, fica o papel que têm desenvolvido ultimamente como grande paladino do carbono zero e da tecnologia ao serviço da ecologia e de soluções para resolver o problema. Também para deixar os EUA mal visto, mas tal é apenas um bónus. Pergunto ao Han se ele acha que é possível, se tem esperança. Uma pausa. Diz que sim, Que o Governo tem sido bom e que a China tem pessoas muito inteligente. Que também é do interesse dos políticos tratar da questão. Que todos devem ajudar, naquele espírito comunitário que não é fantochada e existe mesmo nos chineses. Sinto na voz dele que não diz por dizer, que acredita mesmo. Que mesmo no meu de manobras canalhas, podem surgir emoções e sentimentos positivos. Uma crença no futuro, mesmo quando o presente é envenenado.<br />
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Saímos da estrada principal e metemos por outra secundária, mas de bom alcatrão. É de turista de certeza. A vermelhidão da paisagem mantém-se. São mais uns cinco quilómetros até pararmos. Saio do autocarro, procurando ligar-me novamente ao mundo real. Torna-se difícil quando a paisagem saiu de um filme de Jodorowski. Montanhas Flamejantes é o nome que deram a este local, elevações de areia e rocha sangue, nalgumas zonas como vítimas da paisagem desenfreada de uma manada de elementos. Uma enorme garganta à minha frente conduz a um parque de estacionamento, onde deverá encontrar-se também, calculo, a nossa primeira paragem do dia. Mas a garganta não é árida: uma mancha verde forte, de árvores e vinhedos, repousa no seu fundo, indicando que algures há um curso de água a passar. Na encosta, observo o que sobra de um sistema de elevadores que ajudava as pessoas a subir a inclinada vertente. Mas nesta manhã, estão parados. É provável que nem funcionem. Serviam principalmente um conjunto de pequenos edifícios de barro castanho triste, paredes arejados com vários espaços quadrados. Servem ainda para deixar as uvas a secar, no seu processo de transformação em passas. O ar quente desta zona tórrida, juntando à secura da areia, tornam este vale no local ideal para que tudo isto seja natural e que a única intervenção humana seja a de trazer as uvas e levá-las posteriormente. Tiramos fotos num miradouro que dá para a garganta e descomprimimos. Há uma beleza própria nesta monocromia, que talvez fosse até mais bonita num dia de luz. Com o céu cinzento, torna-se apenas triste; mas as rugas da passagem do tempo, do vento e da água são ainda mais insolentes. Atrás de mim, um monte de areia mais ou menos da minha altura cria um milagre e dá à luz ovos. São dezenas, cabecinha de fora, metade enfiados na areia. Dois marmanjos guardam-nos. Um segura uma placa indicando um preço de 5 <i>yuans</i>. Do que entendo, a ideia é que os ovos estão a cozer na areia quente, de forma lenta. Um método bem natural e ecológico de cozinhar. Claro que, dizem-me depois, a coisa é um bocado treta. Na maior parte dos casos, trazem-se cozidos em casa e ali colocados, com casca e tudo, para o logro ser ainda mais verdadeiro. Uma ilusão. Ah, China...<br />
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O ponto a visitar são as cavernas budistas de Bezeklik. Cavernas é uma palavra muito liberal. Podem classificar-se perfeitamente de buracos na rocha. Desde o século V ao século XIV depois de Cristo, seguidores de Buda, homens sérios comprometidos com os ideais de solidão e ascetismo do senhor Gautama, o Buda original, isolaram-se neste vale arenoso para se purificarem, buscar o sentido da vida e evitar andar sem roupa interior de maneira a proteger as virilhas. Este último aspecto é apenas especulação minha. A maior parte datam dos três últimos séculos de permanência. Ora, porque é que a coisa acabou no século XIV? Por intervenção desse grande motor da História humana que são as guerras religiosas. Estes monges foram enviados a partir do Tibete para evangelizar a população de Turpan e arredores. Durante um tempo, foram bem sucedidos. O Budismo chegou a ser, aliás, a principal religião de Xinjiang, com Turpan no seu centro servindo de ponto de peregrinação para todos os seguidores de Buda que calcorreavam a Rota da Seda. Findo esse tempo, e perante o crescimento da comunidade muçulmana, zelotas e fanáticos fizeram aquilo que melhor sabem: perseguir pessoas diferentes só pela diferença e só para não deixar a coisa a meio, matá-las. Como se tal fosse considerado negligência, avançaram um pouco mais e destruíram todas as grutas que encontraram. O que sobra hoje dá apenas uma pálida ideia do que seriam estas grutas no seu tempo maior de glória. A aversão islâmica à representação religiosa não foi o único motivo pela destruição. Superstições na comunidade muçulmana local sopravam que aquelas figuras pintadas apareceriam à noite nos sonhos dos incautos habitantes para lhes roubar a alma.<br />
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O interesse maior está num conjunto de pinturas murais que cruza iconografia budista, de cores garridas e dourados feitos com outro real, e a história da região. Nalgumas figuras que ainda sobram, é possível reconhecer alguns reis e governadores de Turpan que se fizeram representar neste local sagrado. Fazem-se acompanhar por Buda e por monges importantes, numa representação do Paraíso e Inferno budista, uma religião que ainda que sem divindades, tem a sua escatologia de Bem e de Mal, por muito que o seu principal atractivo seja precisamente a representação por um conjunto de ideias filosóficas que aparentam não ter irrealidade. Mas tem. No Budismo, reencarna-se e essa reencarnação obedece a uma lógica de bons comportamentos e outros reprováveis. Portas-te bem, reencarnas depressa e no Brad Pitt; armas-te em parvo, podes muito bem reviver no corpo de um besouro dourado. Claro que, como de costume, os Europeus também estão metidos ao barulho quando o assunto é o desaparecimento de arte de outros continentes colonizáveis. Os murais mais bem preservados que escaparam à destruição foram removidos por um arquitecto alemão de nome curioso- Albert von Le Coq - e transportados para o seu país natal, onde ainda hoje permanecem num museu. Pode questionar-se, claro, se a permanência no museu não foi o factor chave para que ainda hoje pudessem ser admirados. Ainda assim, se quiserem viajar até Berlim para admirá-las, é melhor meterem travão nas intenções. Foram obliteradas durante a Segunda Guerra Mundial, quando so Aliados bombardearam a capital alemã. Mas esse é outro assunto. No entanto, foi um toca a todos: japoneses e britânicos vieram atrás e não se limitaram às pinturas. Tudo o que fosse artefacto ou livro desapareceu dali e um local cujo nome significa literalmente "Gruta pintada"deve ter parecido uma surpresa chocante para quem esperava ali desenhos coloridos.<br />
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Quando exploramos as grutas, lamentamos ainda mais que a selvajaria religiosa tenha vencido. Os traços que sobram, as pinturas murais são, mesmo danificadas, de grande beleza e significado, de muita ostentação até para monges que queriam viver despojados de bens materiais. No entanto, como templo real, calculo que quisessem transformar este complexo dos mil Budas pintados num exemplo para todos os locais religiosos do reino. Existem ao todo setenta e sete grutas, mas visitamos talvez um quarto delas. São aquelas que se conservaram melhor. Em quase todas vemos ainda figuras humanas, de olhos riscados, cara apagada. O preceito muçulmano contra a representação de figuras divinas aplicado na realidade, os perigos de uma colagem demasiado próxima e literal a leis que são inventadas por homens, mas justificadas por entidades invisíveis nas quais projectamos o melhor e o pior do que somos. Como em quase tudo, quando ambas entram em conflito, o pior vence. Mas as representações apelam exactamente ao contrário. Representam pessoas de raças diferentes, etnias Han e Uigur convivendo pacificamente ao redor de mesas com boa comida e música sendo tocada. Nalguns, temos até europeus, o que é uma aparição relativamente bizarra. Alguns dos murais representam gigantes Budas rodeados de figuras importantes naquele tempo; outros são representações mais abstractas dos mundos fora deste que definem a religião budista, embora se notem, nos cenários e representações, influências persas e um pouco de arte indiana.<br />
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Depois da visita guiada, temos alguns minutos para admirar o resto do complexo, um conjunto de casas com cúpulas e escadas ligando os vários patamares desde o rio até à entrada, construções à base do barro castanho triste que domina esta zona. Enquanto fotografo estes locais para a posteridade, a minha lente apanha uma cara familiar. O amigo americano. Michael, a omnipresença não divina. Não é paranóia se andarem de facto atrás de ti. Mas como...? O que de início me pareceu uma teoria da conspiração absolutamente tresloucada vai-se transformando lentamente numa possibilidade real a qual não se pode fugir. Estou quase certo de que notou o meu espanto. Desconfio, porque me aborda com a frase "Sim, sou eu outra vez. O senhor CIA", ao que respondo "Diria mais senhor NSA. Eles têm o melhor equipamento."<br />
"É o que nós queremos que eles pensem..." E como não consigo morder a língua quando devo e tenho a tendência de me desbocar como a Boca do Inferno, acrescento:<br />
"Claro que estamos na China, não é? Já que me estás a vigiar..."<br />
O Michael seria o perfeito candidato a encarnar o Gato Cheshire de Lewis Carroll, a julgar pelo sorriso.<br />
"Se calhar é verdade. Se calhar estou a seguir-vos. Quem sabe..."<br />
Eu não. Mas posso desconfiar. Acompanham-no um casal belga e um rapaz francês. Explica-nos que se cruzou com eles acidentalmente em Turpan e decidiram vir até cá. Que provavelmente ainda vai dar umas voltas com eles, que pode ser que nos vejamos novamente. Acredito em tudo. Acredito ainda mais na expressão esfíngica com que diz isto. Eu li umas coisas sobre a esfinge. Algures num passado remoto, a cara humana que hoje lhe conhecemos era de leão, a combinar com o resto do corpo. Não sei com o que é este moço combina. Mas tenho a ligeira impressão que a partir do momento em que deixarmos hoje esta província de Xinjiang, não voltaremos a vê-lo.<br />
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Quando saímos do parque dos Budas, este não do Berardo, uma colina que leva a um plano mais elevado mesmo à nossa frente convida-me. Temos meia hora, quarenta minutos a matar até que a carrinha saia. Decido fazer-me ao caminho. O Zé Luís partilha da ideia. Mais ninguém do grupo quer vir. Olhando para a inclinação, talvez já imaginem uma fogueira nos seus pulmões ou falta de tempo para ir e voltar. O que é um bocadinho exagerado, a distância não é assim tanta. Depois de várias demandas e discussões com um grupo de uigures que guardam camelos, e um portão que nos dá acesso à subida - queriam cobrar-nos dinheiro por algo que nem é bem seu, que apenas usam para levar visitantes nos seus bichos, para se sentirem beduínos durante uma hora - subimos. A areia dificulta a passada e opto por ir de lado, passo a passo, aproveitando os sulcos deixados pelos camelos. Ajuda um bocadinho, mas não muito. Tenho de meter um ritmo alto para dar a mim mesmo todo o tempo possível para fotografar alguns montes que vejo pouco acima de mim. Quando chego, recupero o fôlego durante alguns segundos. Estou rodeado de vermelho, sangue petrificado no tempo em todos os seus salpicos e tonalidades. Este planalto rodeado de elevações é tão fotogénico que me basta apontar a máquina e clicar. O costume em belas paisagens, qualquer um é fotógrafo. No tempo que tenho ainda antes de descer a correr, regresso à sensação de desligar do mundo. Não estou efectivamente sozinho, mas é como se estivesse. Cheguei a um ponto na minha sanidade mental onde eu e a máquina conseguimos criar uma bolha bem fechada que não permite distracções, pensamentos negros, pessoas, tudo o mais. É um outro tipo de gruta onde traço representações dentro de uma câmara. Só eu posso danificá-las com distracções e tento não fazê-lo. Quem pode vandalizá-las está aqui, e quem pode precipitar a vandalização está longe. Enquanto ambas não se juntarem, estou seguro. Estou, à falta de melhor palavra, zen.<br />
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<br />Unknownnoreply@blogger.com0