A cidade moderna como exemplo de decadência é um cliché deprimente da arte moderna. Seja em "Blade Runner" ou "Se7en", a visão das nossas urbes surge contaminada por um mal-estar semelhante ao provocado pela visita a um balneário masculino que não é lavado há uma semana. O motivo apresentado, por regra, é a desumanização que a vida nas cidades provoca no ser humano. Parvos intelectuais. A razão é muitíssimo mais simples e é simbolizada por uma criatura que vagueia entre nós, mais perigosa do que um terrorista muçulmano, mais irritante que a criança nascida da união entre o Quimbé e o Nuno Eiró, mais sebosa do Jorge "Jabba, the Hut" de Brito: o arrumador de carros.
Nuca escondi o meu ódio particular a esta espécie de criatura. A palavra "ódio" não é hipérbole, pois dentro das minhas entranhas, misturam-se sucos gástricos e mentais que produzem o arreganhar de dentes típico de quem não pode ver determinada pessoa, coisa ou ameba à frente. Conduzir é, por acaso, algo que me relaxa. Adoro meter-me num carro, colocar música a tocar e conduzir, nem que seja para aviar uns recadinhos aqui perto. No entanto, quando, preparando-me para atracar o veículo, me deparo com uma dessas criaturas, a onda zen esbate-se no areal e dá lugar a caranguejos que me apertam o cérebro. Podem dizer que tenho problemas com homens de aspecto oleoso, mas não acontece isso. De facto, se me aparecer à porta um desses indivíduos a representar uma associação de não sei quê que recupera toxicodependentes, lido com eles com calma e pose. Posso não lhes dar dinheiro algum (porque desconfio de quase toda a gente que, não me conhecendo, me bate ao portão e me quer falar sobre droga), mas permaneço a menos de um metro e dispenso atenção. Corrigindo, eles roubam-me a atenção. Mas é por uma boa causa: por dois minutos, pareço humano.
O meu problema com o arrumador é o mesmo que tenho com mafiosos: são criaturas que se movem em franjas da sociedade onde a lei existe, mas se finge que não. Quando paira sobre nós a ameaça de danos materiais no veículo que tanto estimamos, caso não paguemos a moedinha costumeia, isso tem um nome: extorsão. Aliás, estamos a pagar o quê? A minha mãe dotou-me de dois olhos para encontrar o lugar que essa criatura das trevas me aponta! A moeda premeia a familiaridade com que o arrumador me berra à distância "Hei" como se fôssemos amigos? Não percebo bem. Nem sei quem se lembrou de cobrar às pessoas por absolutamente nada, a não ser o não cumprimento de uma ameaça nunca exprimida, sempre subentendida. É o que esquema perfeito: não podemos ir à polícia queixar-nos, porque não há nada a queixar.