quinta-feira, dezembro 19, 2019

Fachinação 14: O vento que leva, o vento que passa


É o ponto sem regresso. Pelo menos, assim surgiu o seu nome: o enorme deserto de Taklamakan envolve este ponto da província de Xinjiang e espalha-se para Sul praticamente até ao Paquistão. O seu tamanho corresponde ao da Alemanha, portanto imaginem só tal imensidão de areia mesmo no coração da Europa. Não conseguimos. Não existem desertos na Europa continental; e o mais curioso é que o seu aspecto não é fixo. Muda sempre. As suas dunas erguem-se e desfazem-se com a passagem do tempo e dos elementos. Ou seja, se voltasse cá no próximo ano, provavelmente veria uma paisagem completamente diferente. Penso nas minhas aulas de Teoria da História e na obsessão que o professor Fernando Catroga tinha pela forma do tempo, pelos seus ciclos, a circularidade de Santo Agostinho e a música das esferas de Herder. Talvez seja de ser muito cerebral em pontos. Não sendo um deserto de emoções, embora por vezes gostasse de secar ao ponto de tudo ser areia que escoa, de fazer desaparecer tudo no ritmo da ruína. Este ponto sem regresso foi na Antiguidade estrada de comerciantes, cujas probabilidades de ultrapassar Taklamakan eram tão boas que o baptizaram desta maneira: um local onde uma vez entrado, a saída não é certa. Animador. A única salvação possível nestas viagens pela desolação eram os vários oásis espalhados pelas areias, ponto de refúgio e acima de tudo, água. Muita água. Com o tempo e a afluência de pessoas, esses oásis deram lugares a cidades que funcionavam em seu torno, pontos de fixação de gente, de vida, de negócio, de cultura. Quase todas as grandes cidades da Ásia Central começaram assim e aqui na China, já visitei Kashgar e Turpan, dois exemplos. Água é vida. Se isto hoje é um chavão, imaginem em territórios onde esta só se encontra em recantos desérticos conhecidos de alguns. Depois da visita aos Budas cavernosos, a estrada leva-nos a uma dessas cidades oásis, que a certa altura foi uma das grandes metrópoles dos antigos reinos chineses: Gaochang.


Surgida como entreposto de comerciantes, Gaochang sempre foi uma cidade cobiçada pela sua função e posição a norte de Taklamakan. Hoje, só existem algumas ruínas, incluídas num museu. Gaochang é património mundial e considerada uma da cidades mais bem conservadas da China Antiga, dizem. Quando chegamos ao edifício da recepção, chove. Chuva numa das zonas mais secas da Ásia. É quase um sinal colonialista, ocidentais aparecem e vida surge. Enquanto esperamos pelos bilhetes, reparamos num velhote que toca cítara com vontade e galhardia, acompanhado por outro que dá uns batuques. Estão quase a terminar um mini concerto. Unplugged in Gaochang. Atrás de si, duas mesas preenchem-se de pratos cheios de uvas. Têm um ar apetitoso, com a sua cor verde amarelada evidente, sumarentas no aspecto, convidativas na fome que tenho. Um funcionário deve ter reparado no meu ar esfaimado e com um sorriso, empunhando o inglês macarrónico que aprendi a amar na função pública chinesa, explica-me que elas estão ali para serem comidas por quem queira.
Por esta altura, Turpan vive a Festa da Uva, essa fruta que tem um papel tão central nesta região como já expliquei. É tradição por esta altura oferecer a estranhos, estrangeiros e conhecidos doses generosas deste fruto como sinal de agradecimento aos deuses pelas colheitas e também porque, segundo ele, a prosperidade deve unir as pessoas e não separá-las. Todas as casas de Turpan, conta, participam e as pessoas gostam de dar a conhecer algo que as orgulha tanto. Calculo que vivendo num deserto esquecido pelo governo central, não haja muitos motivos de orgulho a que se agarrem. Uma uva é algo tão válido como qualquer outra coisa. E são muito boa: trinco uma e logo a casca estala entre os meus dentes, uma das minhas sensações preferidas quando como fruta. O sumo é doce e arranjo logo o descaramento de tirar dois cachos e entregar-me assim à gula. Enquanto nos dirigimos ao espaço de visita, como-as e passo por um conjunto de estátuas que representam figuras importantes da História da cidade. Nem todas são homens, há mulheres, o que costuma ser uma raridade nas representações do passado.

A tour pela ruínas da cidade é simples, até porque não sobra grande coisa da mesma. Foi destruída no século XIV em definitivo e abandonada desde então. Boa parte dos edifícios que restaram foram destruídos ao longo do tempo por gente que necessitava de material de construção. Vamos dar uma voltinha num veículo descapotável com 30 lugares, onde os melhores são aqueles que ficam atrás, porque permitem uma visão quase a 360 º. É num deles que me sento. Logo percebo que Gaochang era enorme no seu auge, a julgar pela longa muralha que rodeia o espaço onde antes se localizavam as casas. Há espaços claramente divididos: a moradia real; a zona religiosa; o centro da cidade; e uma periferia onde, somos informados, moravam por norma os seguidores das religiões minoritárias, normalmente variando entre os Islamismo e o Budismo. É muito complicado explicar a História de Gaochang sem que exista um conhecimento mínimo da própria História da China ou mesmo da Ásia. A nossa obsessão ocidental de criar uma narrativa histórica eurocêntrica fecha o conhecimento que temos - bem, aqueles que o têm - à complexa evolução dos reinos chineses e asiáticos.

 Não vou tentar entrar aqui em pormenores, mas fica uma versão para idiotas como eu: houve quatro dinastias antes de Cristo e um período de Guerra Civil. A mais duradoura foi a primeira, que se estendeu por quase um milénio; no entanto, pequenos reinos ocuparam partes do espaço chinês actual, que só começa a ter esta dimensão com as campanhas militares e expansão da dinastia Han, a primeira depois que JC quina. Depois de, em 220, o reino Han se ter dividido em três, há um período em que o país se divide, algo que só temrina em 581, no início da curta dinastia Sui. No entretanto, o verdadeiro ponto unificador do país era o comércio da Rota da Seda, em cujas estradas os reinos chineses foram sucedendo e caindo, mas mantendo uma unidade fictícia no meio de religiões e culturas muito diferentes entre si. Depois de um novo período de divisão, devido às disputas decorridas após a morte de Genghis Khan - que conquistara todo o território chinês - há nova união no início da dinastia Yuan, em 1271. Nos sete séculos seguintes, o reino atravessa momentos de apogeu e declínio, principalmente devido à intervenção das potências ocidentais, durante os períodos Ming e Qing, dinastia que encerra o período monárquico na China com a deposição do último imperador, Pu Yi, em 1911. Desde então, o período da República tem permanecido, com a maior alteração a surgir em 1949, quando após um período de revolução, o Governo Chinês democrático se exila em Taiwan, ainda hoje reclamada pela China como território, e Mao Tse-Tung inicia a era da China comunista.


Claro que mesmo com isto percebo zerinho do que vejo. Para mim, é uma imensa planície de areia encarnada, com reconhecíveis escombros e destacado, lá ao fundo e aproximando-se com o movimento do veículo, um único edifício de pé. Do que me apercebo, Gaichang era um quadrado, a julgar pelas muralhas que ainda se mantêm de pé e pela linha evidente daquelas que foram sumindo vítimas dos vários conflitos tribais que se desenrolaram nesta área mesmo depois do desaparecimento da cidade. Existem ainda as nove entradas originais da cidade, embora aquela voltada a Oeste seja a melhor preservada e a única onde a porta é, de facto, evidente. A construção isolada que mencionei ergue-se a sudoeste e sem que esteja perto, pela forma cónica e vertical, arriscaria que é um templo de uma qualquer religião - o meu conhecimento de arquitectura não cristã é reduzido, infelizmente. Han, o guia de que vos falei na crónica anterior, é uma cátedra de passado chinês e também sabe muito sobre tudo isto. Explica os ires e vires de Gaochang e alerta que vamos fazer duas paragens: uma no tempo budista - o meu palpite revela-se correcto - e outra no palácio imperial, que não consigo ver a partir de onde me encontro. Bem, lá chegaremos. O templo, que é um de dois (informam-nos que o outro não pode ser visitado, mas mistura religião e justiça), é circular e tem apenas uma entrada. Não sobra inteiro, mas consigo ter uma ideia do que seria no seu tempo áureo. O Han refere que antigamente, era completamente pintado em redor, de azul e dourado. Hoje, sobra a cor dos tijolos. Parece que um conhecido monge budista chamado Xuanzhuang. que soa à onomatopeia de um beijo de velha parou aqui, a caminho da Índia e proclamou uns sermões que devem ter sido tão bons que ainda hoje se lembram dos mesmos.
Rodeio o templo e subo umas escadas que conduzem à entrada. A porta está fechada, mas permite uma espreitadela. Vejo uns murais e pouco mais. Talvez tenhamos mais sorte no Palácio. Cinco minutos depois, chegamos a esse espaço. Mais ruínas, a palidez do céu cinzento não ajuda a criar na minha cabeça essa imagem de esplendor que nos querem fazer crer quando falam de Gaochang de maneira tão elogiosa. Há uma estrutura cúbica a meio e paredes que se desfazem, sem personalidade, rodeando. Consigo perceber, pelo menos, o tamanho desta moradia real, era enorme. Não há dúvida que de essa ideia de gigantismo de antigos reinos chineses, de riqueza, de importância histórica é um bálsamo para o ego deste povo. Uma placa de madeira, colocada estrategicamente, lança um lema que pode muito bem ser desígnio nacional: "Sorrir é a nossa linguagem; a civilização a nossa crença". Tudo bem, camarada Xi, mas todo este aparato por umas ruínas, mesmo que imensas, que quase nem ruínas são é demasiado. Conimbriga fica-me mais perto de casa e os Romanos tiveram classe o suficiente para criar uma técnica de mosaico que dura mais de dois mil anos depois.

Claro que, viajando pela China, percebemos que as suas visões do passado apenas aguentam pela força simples da vontade e do dinheiro. Tuyok é o exemplo disso. Enquanto por um lado envereda por esforços para acabar com a cultura uigur, o governo chinês anda a recuperar esta pequena aldeia típica desse povo ancestral simplesmente por propósitos turísticos. Fá-lo de forma atroz, violando a beleza simples da arquitectura deste povo e apenas mantendo aqui aqueles que ainda vivem de acordo com tradições milenares pagando-lhes, não dando qualquer outra visão esperançosa do futuro. É triste, muito triste. Almoçamos aqui, cortesia de uma família local. Recembem-nos debaixo de um vinhedo, num caminho a partir do qual acedemos às casas. Aqui, o mundo está longe, algures. A simpatia das pessoas, a disponibilidade da partilha e aquela sensação, mesmo ligeiramente falsificada, de comunhão, existe enquanto comemos do seu pão e da sua fruta, das suas compotas, da sua carne. Tento ao máximos quebrar a ideia de que eles estão ali para me servir, mas percebo, ao logno da refeição, de que tal é impossível. Estão formatados a isso, a verem-me, um estrangeiro, como alguém que paga e espera algo, não como um curioso que chega e quer conhecer, comunicar, ver, trocar experiências. O mundo é cada vez mais a barriga exposta do capitalismo de versão egoísta. Há poucos países como a China para saber estragar uma coisa boa.


Ainda assim, pelo espaço, pela observação desta gente, é um momento de descompressão e de algum prazer que nem a escumalhice consegue estragar. Logo de seguida, damos uma volta breve pela aldeia. Enfiada num vale vinhateiro das Montanhas Flamejantes, é um conjunto de casebres de adobe pequenos. A maior parte tem dois andares, um rés-do-chão e um piso superior habitualmente com varanda, presumo que para colocar as uvas a secar. Por vezes, passamos por gente na rua, mas aparte de dizerem olá, ignoram-nos. É como se nem estivéssemos ali. Existe ainda uma mesquita azul que está fechada. Na curta volta que dou, reparo numa placa que celebra Albert von Coq, arqueólogo alemão que referi na grutas do Buda que os pariu por ter gamado pinturas murais e artefactos. Aparentemente, morou aqui uns tempos e merece ser celebrado por isso. Parece pouco chinês, isto de elogiar alguém que tão claramente explorou o país e é estrangeiro. Ainda nos cruzamos com um velhote que à sombra de um toldo, guarda uma arca frigorífica e quer falar connosco no seu próprio idioma. Percebemos zero, mas o seu entusiasmo e alegria são tesouros à parte, das poucas coisas genuínas que guardo desta visita. Mas é hora de partir. Junto ao autocarro, um de nós tenta comprar uma garrafa de água, mas desiste. O ponto de venda está incluído na esquadra de policia de Tuyoq e querem cobrar 12 yuans por um produto que habitualmente custa dois. Gatunos. A China é comunista, mas quando convém. Como sempre, adapta-se às realidades, explora necessidades e projecta a imagem que conta e favorece. Imagem. Aspecto. São palavras que guardo destes primeiros cinco dias no país.

No último ponto do dia, regressamos ao deserto. Embora, na verdade, nunca o tenhamos abandonado. Depois de uma longa recta que atravessa um campo de extracção petrolífera, aquelas garças mecânicas em constante movimento sugando o interior do planeta, entramos numa pequena aldeia de portões desenhados, todos. Depois disso, a carrinha estaciona num largo parque e à nossa frente, areias amarelas distinguem-se a algumas centenas de metros. Kumtag. A montanha de areia. Um planalto desértico que se prolonga até à Mongólia e é uma extensão de Taklamakhan. Que continua a expandir-se. Se observarmos um mapa de há dez anos, a área de Kumtag correspondia a dois mil e quinhentos quilómetros quadrados. Hoje, é quase o dobro. Como noutras alturas, os caprichos da Natureza ameaçam cidades e povoações e as primeiras vítimas, neste caso, podem ser precisamente ruínas antigas como as de Gaochang. Este é um problema que tem afectado o nordeste da China, com o avanço das areias a obrigar a leis anti-emigração e desperdício de água, pairando o medo de que nalgumas décadas, todos estes locais que visitei hoje possam estar completamente enterrados. Quando em Portugal falamos de desertificação e seca, nunca pensamos nestes efeitos. Mas aqui, a escala é diferente em tudo. Até na malapata. Somos transportados até um ponto a partir do qual começam as visitas. Porque temos horas contadas para apanhar um novo comboio nocturno, dispomos apenas de pouco mais de meia hora. Desperdício, claro, porque este parece um deserto como deve ser. Viajo para fotografar, não para correr atrás de transportes. Ponho por isso pés à areia rapidamente. À minha frente, uma encosta picada arenosa contempla-me zombateira. De cabeça, calculo que sejam pelo menos uns 400 metros. Talvez mais. Bem, de certeza mais. Não tirei as férias para fazer cardio, mas já que aqui estou...


Meto um ritmo regular e lento. A cada 50 passos, paro uns segundos. Respiro. Há muita gente aqui, este é um popular lugar de turismo. Ainda assim, não são muitos o que, como eu, se entregam às dores fisicas do prazer da visão. Há quem se deite aqui como quem está na praia, mas o mar existe milhares de quilómetros longe das sensações. Mulheres passeiam de sombrinha, adolescentes fazem selfies parolas, vejo até alguém que lê descontraidamente. Lembro-me que no ano passado, no Peru, havia quem surfasse as ondas de areia. Aqui, não existem esses corajosos Chego ao topo e tenho de me desligar durante uns segundos. Numa longa extensão, fico com a impressão de que um grupo de serpentes deslizou pelo solo e o que vejo são esses rastos fundos e bruxuleantes, que o sol se encarrega de transformar num espectáculo de marionetas das sombras. O relevo criado pelos fortes ventos que aqui circulam criou uma cordilheira de pó cristalino e mineral, amontoado numa amarelecida luz que o sol expande nos meus olhos. É imaginar os vossos pés na orla do mar, mas numa multiplicação por cem. Kumtag não é um deserto grande na métrica dos tamanhos desérticos, mas impressiona e captura o olhar, afunda-o como os meus dedos do pé se afundam no solo.

Quero sentar-me e ficar um pouco, fotografar como bem me apetece, mas não tenho mesmo tempo. Alertam-me que mais cinco minutos e temos de ir embora. No entanto, aqui consigo pensar de desligar-me, é a primeira vez que tenho espaço mental para isso desde que me envolvi com as montanhas da estrada de Karakoram. Daqui a três horas, abandono Xinjiang e começo a pesar bem tudo o vi aqui, no quão diferente é de mim e do que conheço. Mas nem consigo engrenar a reflexão como quero. Estamos à pressa, estamos a correr. No regresso, o que inclina de uma maneira agora vira ao contrário. Enquanto os meus colegas de viagem descem cuidadosamente para não cair, largo numa corrida desenfreada e sem qualquer pinga de comportamento civilizado. Não vejo câmaras ou polícias, nem ninguém a vigiar-me. Neste deserto, sou livre por momentos, na minha estupidez tão desmesurada quanto este campo de areias. Pode haver sinais de vida em desertos. Quero acreditar que neste segundo em que me torno idiota, sou um deles, e bem forte.


quinta-feira, dezembro 12, 2019

Fachinação 13: O Buda que os pariu


Abro os olhos e vejo vermelho. Perdes-se na distância, na minha vista. A extensão é longa e a certa altura, é tão compacto que se torna impossível de escapar. Mas se o vento sopra com mais força, desfaz-se em pó fino e maleável. Areia. Um deserto encarnado com planícies e dunas altas. Não desperto de um sono, apenas me fui afastando de quem viaja comigo na carrinha, perdido entre as notas musicais que nos meus headphones se tornam escapatória da China. É-me complicado tantas vezes estar num sítio por inteiro. Ou estar com pessoas a toda a hora. Preciso de mim e ouvir música é talvez a maneira mais educada de mandar pessoas à merda. Quero que saibam que não é nada de pessoal. Se não forem estas pessoas, são outras. Porque preciso mesmo de fugir de quando em vez. De pensar, de reflectir, de recordar. A memória faz muito parte de nós e acho que tem sido um dos temas principais das crónicas que fui escrevendo ao longo dos anos, viajasse eu à América do Sul ou ao Círculo Polar Árctico: interessa-me muito o que nos constrói como pessoas e como grupos, grandes ou pequenos. Acho que também por isso que acabei em Historia, que lá jazi durante quatro anos e ainda hoje ando em exumações.

Na China, a memória é entendida como reinterpretação. A tarde do dia anterior foi preenchida pela visita a uma espécie de parque de diversões do vinho, um museu que supostamente nos apresentaria uma resenha histórica da produção vinícola por Turpan e quando damos por nós, parece que Joe Berardo abriu aqui um Buddha Park ainda mais parolo. Localizado no vale que produz as mais conhecidas bebidas alcoólicas da região, é um daqueles museus onde não se aprende nada daquilo que se quer ensinar, porque o professor não só não preparou a aula, como dispensa qualquer tipo de matéria a leccionar. Faz uns números de malabarismo, engole umas espadas e conta assim que saiamos mais enriquecidos. Aqui, é a mesma coisa: do edifício da recepção, somos transportados por um comboinho que faz uns três quilómetros até à atracção principal, recriações de algumas casas dos tempos em que se fazia vinho a sério por aqui. Cores berrantes, estuque barato, imitações de objectos, murais sem qualquer gosto. A China reescreve-se e entrega essa visão à população que a consome. Quando organizei mentalmente estes textos de viagem, poderei seriamente se valeria a pena dedicar tempo a esse local. Talvez tivesse um interesse kitsch, mas no geral o que sobra é esse elemento de feira popular bacoca que agrada tanto aos chineses. Vê-se pouco e o que se vê assombra pelo desfasamento da realidade. É o que há e não é muito; e o que há é o aproveitamento de uma cultura que se quer exterminar, o que dá um toque muito sui generis a tudo isso.


Mas hoje, pelo menos em teoria, visitarei locais de real interesse histórico. O guia chama-se Han e no início da viagem automóvel, foi debitando alguns factos interessantes: falou da geografia de Turpan, de como fica numa depressão e de como tal originou uma das lendas mais fortes de Xinjiang, a de que o Apocalipse final do mundo se dará nesta cidade perdida no deserto. Olhando pela janela, vendo desolação e areia, quase consigo acreditar, embora tenha para mim de que a Besta apreciaria mais areia junto ao mar. Contou-nos também o mistério de alguns painéis electrónicos que já viramos em Kashgar, com uma contagem decrescente. Trata-se um projecto governamental de erradicação de pobreza. Os números nos painéis são a quantidade de dias que faltam para que desapareça a indigência no país. Diz isto com um ar sério e sorridente em simultâneo. O Han não é historiador, mas sim engenheiro; no entanto, está desempregado e faz estes biscates porque se interessa muito por livros e por saber coisas. Deve ter uns 45 anos, é baixote e largo e fala num inglês bastante bom. Foi de ler muitos textos em estrangeiro quando tirou um curso, o que mostra ou uma estranha abertura do aparelho chinês ao Ocidente ou o funcionamento pleno da espionagem industrial do país. Mostra-se também muito preocupado com o aquecimento global e os motivos não são apenas superficiais.

Uma boa parte da água que tornam Turpan num literal oásis no deserto vem do degelo de glaciares e cumes nevados das montanhas próximas da cordilheira do Tian Shan. A população tem beneficiado da gradual renovação desta fonte de água desde a sua origem. No entanto, o mesmo aumento de temperatura planetário que tem dizimado as calotes polares e virado do avesso o clima em muitos países acelerou este processo, levando a que as reservas de água gelada tenham diminuído assustadoramente. O Governo Chinês mostra-se, por uma vez, verdadeiramente preocupado com uma parte de Xinjiang por outros motivos que não sejam sinistros. Por ser o maior fornecedor de vinho do país, e falo de produção real e não folclórica - também existe - é de todo o interesse que continue aqui a florescer agricultura. É um pouco complicado fazer crescer vinhas sem rega. A China sabe perfeitamente que controlar este fenómeno está longe do seu controlo. Também sabe que é um dos grandes responsáveis pelo mesmo, pela sua irresponsável política industrial de há trinta anos para cá. Mas a população não necessita saber. Para a imagem pública, fica o papel que têm desenvolvido ultimamente como grande paladino do carbono zero e da tecnologia ao serviço da ecologia e de soluções para resolver o problema. Também para deixar os EUA mal visto, mas tal é apenas um bónus. Pergunto ao Han se ele acha que é possível, se tem esperança. Uma pausa. Diz que sim, Que o Governo tem sido bom e que a China tem pessoas muito inteligente. Que também é do interesse dos políticos tratar da questão. Que todos devem ajudar, naquele espírito comunitário que não é fantochada e existe mesmo nos chineses. Sinto na voz dele que não diz por dizer, que acredita mesmo. Que mesmo no meu de manobras canalhas, podem surgir emoções e sentimentos positivos. Uma crença no futuro, mesmo quando o presente é envenenado.


Saímos da estrada principal e metemos por outra secundária, mas de bom alcatrão. É de turista de certeza. A vermelhidão da paisagem mantém-se. São mais uns cinco quilómetros até pararmos. Saio do autocarro, procurando ligar-me novamente ao mundo real. Torna-se difícil quando a paisagem saiu de um filme de Jodorowski. Montanhas Flamejantes é o nome que deram a este local, elevações de areia e rocha sangue, nalgumas zonas como vítimas da paisagem desenfreada de uma manada de elementos. Uma enorme garganta à minha frente conduz a um parque de estacionamento, onde deverá encontrar-se também, calculo, a nossa primeira paragem do dia. Mas a garganta não é árida: uma mancha verde forte, de árvores e vinhedos, repousa no seu fundo, indicando que algures há um curso de água a passar. Na encosta, observo o que sobra de um sistema de elevadores que ajudava as pessoas a subir a inclinada vertente. Mas nesta manhã, estão parados. É provável que nem funcionem. Serviam principalmente um conjunto de pequenos edifícios de barro castanho triste, paredes arejados com vários espaços quadrados. Servem ainda para deixar as uvas a secar, no seu processo de transformação em passas. O ar quente desta zona tórrida, juntando à secura da areia, tornam este vale no local ideal para que tudo isto seja natural e que a única intervenção humana seja a de trazer as uvas e levá-las posteriormente. Tiramos fotos num miradouro que dá para a garganta e descomprimimos. Há uma beleza própria nesta monocromia, que talvez fosse até mais bonita num dia de luz. Com o céu cinzento, torna-se apenas triste; mas as rugas da passagem do tempo, do vento e da água são ainda mais insolentes. Atrás de mim, um monte de areia mais ou menos da minha altura cria um milagre e dá à luz ovos. São dezenas, cabecinha de fora, metade enfiados na areia. Dois marmanjos guardam-nos. Um segura uma placa indicando um preço de 5 yuans. Do que entendo, a ideia é que os ovos estão a cozer na areia quente, de forma lenta. Um método bem natural e ecológico de cozinhar. Claro que, dizem-me depois, a coisa é um bocado treta. Na maior parte dos casos, trazem-se cozidos em casa e ali colocados, com casca e tudo, para o logro ser ainda mais verdadeiro. Uma ilusão. Ah, China...

O ponto a visitar são as cavernas budistas de Bezeklik. Cavernas é uma palavra muito liberal. Podem classificar-se perfeitamente de buracos na rocha. Desde o século V ao século XIV depois de Cristo, seguidores de Buda, homens sérios comprometidos com os ideais de solidão e ascetismo do senhor Gautama, o Buda original, isolaram-se neste vale arenoso para se purificarem, buscar o sentido da vida e evitar andar sem roupa interior de maneira a proteger as virilhas. Este último aspecto é apenas especulação minha. A maior parte datam dos três últimos séculos de permanência. Ora, porque é que a coisa acabou no século XIV? Por intervenção desse grande motor da História humana que são as guerras religiosas. Estes monges foram enviados a partir do Tibete para evangelizar a população de Turpan e arredores. Durante um tempo, foram bem sucedidos. O Budismo chegou a ser, aliás, a principal religião de Xinjiang, com Turpan no seu centro servindo de ponto de peregrinação para todos os seguidores de Buda que calcorreavam a Rota da Seda. Findo esse tempo, e perante o crescimento da comunidade muçulmana, zelotas e fanáticos fizeram aquilo que melhor sabem: perseguir pessoas diferentes só pela diferença e só para não deixar a coisa a meio, matá-las. Como se tal fosse considerado negligência, avançaram um pouco mais e destruíram todas as grutas que encontraram. O que sobra hoje dá apenas uma pálida ideia do que seriam estas grutas no seu tempo maior de glória. A aversão islâmica à representação religiosa não foi o único motivo pela destruição. Superstições na comunidade muçulmana local sopravam que aquelas figuras pintadas apareceriam à noite nos sonhos dos incautos habitantes para lhes roubar a alma.


O interesse maior está num conjunto de pinturas murais que cruza iconografia budista, de cores garridas e dourados feitos com outro real, e a história da região. Nalgumas figuras que ainda sobram, é possível reconhecer alguns reis e governadores de Turpan que se fizeram representar neste local sagrado. Fazem-se acompanhar por Buda e por monges importantes, numa representação do Paraíso e Inferno budista, uma religião que ainda que sem divindades, tem a sua escatologia de Bem e de Mal, por muito que o seu principal atractivo seja precisamente a representação por um conjunto de ideias filosóficas que aparentam não ter irrealidade. Mas tem. No Budismo, reencarna-se e essa reencarnação obedece a uma lógica de bons comportamentos e outros reprováveis. Portas-te bem, reencarnas depressa e no Brad Pitt; armas-te em parvo, podes muito bem reviver no corpo de um besouro dourado. Claro que, como de costume, os Europeus também estão metidos ao barulho quando o assunto é o desaparecimento de arte de outros continentes colonizáveis. Os murais mais bem preservados que escaparam à destruição foram removidos por um arquitecto alemão de nome curioso- Albert von Le Coq - e transportados para o seu país natal, onde ainda hoje permanecem num museu. Pode questionar-se, claro, se a permanência no museu não foi o factor chave para que ainda hoje pudessem ser admirados. Ainda assim, se quiserem viajar até Berlim para admirá-las, é melhor meterem travão nas intenções. Foram obliteradas durante a Segunda Guerra Mundial, quando so Aliados bombardearam a capital alemã. Mas esse é outro assunto. No entanto, foi um toca a todos: japoneses e britânicos vieram atrás e não se limitaram às pinturas. Tudo o que fosse artefacto ou livro desapareceu dali e um local cujo nome significa literalmente "Gruta pintada"deve ter parecido uma surpresa chocante para quem esperava ali desenhos coloridos.

Quando exploramos as grutas, lamentamos ainda mais que a selvajaria religiosa tenha vencido. Os traços que sobram, as pinturas murais são, mesmo danificadas, de grande beleza e significado, de muita ostentação até para monges que queriam viver despojados de bens materiais. No entanto, como templo real, calculo que quisessem transformar este complexo dos mil Budas pintados num exemplo para todos os locais religiosos do reino. Existem ao todo setenta e sete grutas, mas visitamos talvez um quarto delas. São aquelas que se conservaram melhor. Em quase todas vemos ainda figuras humanas, de olhos riscados, cara apagada. O preceito muçulmano contra a representação de figuras divinas aplicado na realidade, os perigos de uma colagem demasiado próxima e literal a leis que são inventadas por homens, mas justificadas por entidades invisíveis nas quais projectamos o melhor e o pior do que somos. Como em quase tudo, quando ambas entram em conflito, o pior vence. Mas as representações apelam exactamente ao contrário. Representam pessoas de raças diferentes, etnias Han e Uigur convivendo pacificamente ao redor de mesas com boa comida e música sendo tocada. Nalguns, temos até europeus, o que é uma aparição relativamente bizarra. Alguns dos murais representam gigantes Budas rodeados de figuras importantes naquele tempo; outros são representações mais abstractas dos mundos fora deste que definem a religião budista, embora se notem, nos cenários e representações, influências persas e um pouco de arte indiana.


Depois da visita guiada, temos alguns minutos para admirar o resto do complexo, um conjunto de casas com cúpulas e escadas ligando os vários patamares desde o rio até à entrada, construções à base do barro castanho triste que domina esta zona. Enquanto fotografo estes locais para a posteridade, a minha lente apanha uma cara familiar. O amigo americano. Michael, a omnipresença não divina. Não é paranóia se andarem de facto atrás de ti. Mas como...? O que de início me pareceu uma teoria da conspiração absolutamente tresloucada vai-se transformando lentamente numa possibilidade real a qual não se pode fugir. Estou quase certo de que notou o meu espanto. Desconfio, porque me aborda com a frase "Sim, sou eu outra vez. O senhor CIA", ao que respondo "Diria mais senhor NSA. Eles têm o melhor equipamento."
"É o que nós queremos que eles pensem..." E como não consigo morder a língua quando devo e tenho a tendência de me desbocar como a Boca do Inferno, acrescento:
"Claro que estamos na China, não é? Já que me estás a vigiar..."
O Michael seria o perfeito candidato a encarnar o Gato Cheshire de Lewis Carroll, a julgar pelo sorriso.
"Se calhar é verdade. Se calhar estou a seguir-vos. Quem sabe..."
Eu não. Mas posso desconfiar. Acompanham-no um casal belga e um rapaz francês. Explica-nos que se cruzou com eles acidentalmente em Turpan e decidiram vir até cá. Que provavelmente ainda vai dar umas voltas com eles, que pode ser que nos vejamos novamente. Acredito em tudo. Acredito ainda mais na expressão esfíngica com que diz isto. Eu li umas coisas sobre a esfinge. Algures num passado remoto, a cara humana que hoje lhe conhecemos era de leão, a combinar com o resto do corpo. Não sei com o que é este moço combina. Mas tenho a ligeira impressão que a partir do momento em que deixarmos hoje esta província de Xinjiang, não voltaremos a vê-lo.

Quando saímos do parque dos Budas, este não do Berardo, uma colina que leva a um plano mais elevado mesmo à nossa frente convida-me. Temos meia hora, quarenta minutos a matar até que a carrinha saia. Decido fazer-me ao caminho. O Zé Luís partilha da ideia. Mais ninguém do grupo quer vir. Olhando para a inclinação, talvez já imaginem uma fogueira nos seus pulmões ou falta de tempo para ir e voltar. O que é um bocadinho exagerado, a distância não é assim tanta. Depois de várias demandas e discussões com um grupo de uigures que guardam camelos, e um portão que nos dá acesso à subida - queriam cobrar-nos dinheiro por algo que nem é bem seu, que apenas usam para levar visitantes nos seus bichos, para se sentirem beduínos durante uma hora - subimos. A areia dificulta a passada e opto por ir de lado, passo a passo, aproveitando os sulcos deixados pelos camelos. Ajuda um bocadinho, mas não muito. Tenho de meter um ritmo alto para dar a mim mesmo todo o tempo possível para fotografar alguns montes que vejo pouco acima de mim. Quando chego, recupero o fôlego durante alguns segundos. Estou rodeado de vermelho, sangue petrificado no tempo em todos os seus salpicos e tonalidades. Este planalto rodeado de elevações é tão fotogénico que me basta apontar a máquina e clicar. O costume em belas paisagens, qualquer um é fotógrafo. No tempo que tenho ainda antes de descer a correr, regresso à sensação de desligar do mundo. Não estou efectivamente sozinho, mas é como se estivesse. Cheguei a um ponto na minha sanidade mental onde eu e a máquina conseguimos criar uma bolha bem fechada que não permite distracções, pensamentos negros, pessoas, tudo o mais. É um outro tipo de gruta onde traço representações dentro de uma câmara. Só eu posso danificá-las com distracções e tento não fazê-lo. Quem pode vandalizá-las está aqui, e quem pode precipitar a vandalização está longe. Enquanto ambas não se juntarem, estou seguro. Estou, à falta de melhor palavra, zen.







quinta-feira, dezembro 05, 2019

Fachinação 12: Chá no deserto


Vira a pala do boné para o lado contrário e enquanto acelera numa enorme recta cujo fundo vislumbro em maneira de miragem, ri-se e acena-me positivamente com a cabeça. Não sei se me quer dizer algo ou se, à boa maneira de quem não conhece o interlocutor, é um daqueles tiques de familiaridade. Só sei que é taxista e tem idade suficiente para participar num picanço. Apanhou-me, ao Joaquim e à Isabel na estação de Turpan e tentámos explicar-lhe o hotel que nos serve de destino. Talvez tenha percebido, ainda não entendemos. O jovem está num passo à frente dos profissionais do volante de Kashgar. Não se atreve a usar gestos como lingua franca. Quando pretende comunicar, saca do telemóvel. Escreve algo e o Google translator transmite a sua ideia num inglês rude, mas compreensível. Nota-se logo o desenrascanço: pergunta-nos a origem, regozija-se com Cristiano Ronaldo, quer saber os nossos gostos musicais, embora me pareça que no seu auto rádio é o único ditador cuja vontade conta. O carro enche-se de uma versão oriental de "Shape of you", de Ed Sheeran. A letra é toda em chinês, excepto o refrão. Nhonhinhanhinhinhi shape of you. Não piora, mas também não melhora. Como nos rimos perante este clássico instantâneo, esta canção tão chinesa, o nosso condutor entende isto como uma aberta para arranjar uma oportunidade de negócio. Enquanto conduz, escreve ao telemóvel. Mostra-me "Need a driver? I'm available, cheap". Dou resposta negativa de maneira educada sem pronunciar uma palavra. Tentem fazer isto, é muito mais complicado do que parece. Ele está na boa, polegar esticado, siga para outra e regressa ao celular. "No speed limit, no tickets in Turpan. Will drive fast". Para ele, é espectacular. Para mim, que já estou vacinado contra os condutores da Ásia Central, uma sequela do livro do desassossego.

Turpan presta-se a velocidades. Um imenso deserto por largos quilómetros rodeia a cidade e as poucas elevações á vista são montes de areia. Tem a curiosidade geográfica de ser o local mais baixo de toda a China e o segundo em todo o mundo, apenas atrás do Mar Morto. São cento e cinquenta e quatro metros abaixo do nível do mar. É, portanto, possível subir a um dos montes que vejo e estar alinhado com o oceano. O nome da cidade alude a isto: significa "Grande depressão", o que me faz sentir uma ligação próxima a este sítio ainda antes de qualquer visita. Apesar da sua secura e de uma temperatura média anual que ronda os quarenta graus celsius, a principal actividade desenvolvida em Turpan é a agricultura. É a capital das uvas chinesas e há uma grande probabilidade de, tendo comprado um pacote de passas em qualquer ponto do país, ele ter saído daqui. A vindima e as vinhas definem a personalidade dos seus habitantes e o seu modo de vida. Parece um paradoxo que um local tão arenoso seja este portento do cultivo agrícola, mas a origem de Turpan provém de um oásis, como quase todas as cidades importantes de Xinjiang. Há acesso fácil água, mas com as alterações climáticas, resta saber até quando. Não é um problema que passe ao lado dos agricultores chineses, como verão na próxima crónica. No entanto, antes do fantasma da Greta futura ter surgido com preocupações ecológicas, muito antes disso, este era um importante entreposto da Rota da Seda. Por várias vezes mudou de mãos entre reinos que mas tarde seriam aglutinados no grande Império Chinês e por este passado de conflito, é possível visitar vestígios de culturas muito variadas na província de Turpan, passagens de religiões tão diferentes quando o Budismo e o Islamismo.


A geografia da cidade de Turpan não é complicada. Uma vez no seu fraco bulício, trata-se de uma longa avenida com ruas perpendiculares, umas mais estreitas, outras com largura suficiente para, pelo menos um par de camiões desfilarem em casamento. Boa parte das casas parecem estar ainda em construção, numa arquitectura que simplesmente esqueceu telhados. Abunda o já familiar tijolo de burro e uma decoração que deve bastante aos arabescos. Ocasionalmente, ressaltam cores garridas, habitualmente azul, mas as paredes carregam-se das cores do deserto, um vermelho profundíssimo que recorda as montanhas flamejantes das areias encarnadas de Turpan; e um pálido castanho, reminiscente das planícies desérticas mais a Leste. Por entre duas casas, o táxi conduz-nos num beco estreito. Por momentos, pensamos que se enganou e afinal o tradutor é tão falível quanto a nossa própria ignorância do idioma chinês. Mas não. afastado de tudo, num pequeno largo, surge um hotel com inscrição: "Silk road lodges - the vines". Saio do táxi e enquanto tiro as malas, reparo que sim, do meu lado direito existe um espaço com aspecto agradável, coberto pelo verde das vinhas, mesmo a matar nos dias de calor. Que são estes, afinal, dez e tal da manhã e o ar abafado já me seca os pulmões e o corpo. Nem quero imaginar as tardes. Enquanto esperamos pelo resto do grupo, entretemo-nos com um par de cães que por ali circulam. Afáveis, dados à brincadeira, disponíveis: claramente, não foram treinados pela polícia chinesa. Sigo-os até ao interior do alojamento. Uma pequena praceta com bancos e mesas parece pedir noites de Verão a enganar a canícula com a brisa nocturna, conversa à volta de chá, noites em que não apetece ir para a cama. A praceta é rodeada dos quartos, em dois andares - alguns no piso térreo, outros no elevado e separada, uma zona de restauração, com mesas em interiores e exteriores, no num terraço. Afastada, nas traseiras do hotel, encontra-se uma pequena e tosca piscina, vazia, o que dá mesmo jeito em altura de Verão porque é disso que precisamos.

Estou desejoso de me meter no quarto. Uma noite num cabine de comboio e quase dois dias sem passar o meu corpo por água devem ter criado um segundo eu de sujidade na superfície da minha pele. Uma coisa que raramente abordo nas minhas crónicas de viagem é o espaço intermédio. O que acontece quando tenho de viver o quotidiano de andar de lado para o outro. Aquele ritual de criar casa onde esta não pode existir. Os quartos de hotel são locais muito estranhos, onde nos devemos sentir familiares, mas de familiaridade têm pouco. Somos convidados a habitar um espaço , com a certeza de que um dia ou dois depois deixará de ser nosso. Tento não criar uma relação com eles, mas sei perfeitamente que por entre as longas viagens e, por vezes, um cansaço que se acumula como um saco de pedras, a cama que neles repousa é aquela recompensa. Quando entro, deixo a mala e a mochila ao fundo da cama, sem querer saber muito como ficam ou onde estão. Apenas me quero livrar delas, de uma maneira que não posso usar com outras coisas da minha vida. Morro na cama, mas de olhos abertos. O corpo dormente, o sangue latente, tudo bem presente. Procuro Internet com o telemóvel, sei que, ainda por cima quando estou há mais de uma dia sem dar notícias, há quem possa pensar eventualmente que não morri numa cama simbolicamente: faleci mesmo. Claro que na China, enfrento esse inimigo que é o vigilante cibernético que controla os sites que posso visitar. Através de uma VPN, uma aplicação que permite contornar esse pequeno problemas mas que facilmente me pode valer uma rabecada de cacetete caso seja descoberto, evito essa questão. Mas demoro a ligar-me. Penso em como, na verdade, uma boa parte desta vigilância até é papelão, que algures, que controla este sistema poderia saber facilmente que está a intrometer-se no mesmo, quem transgride e simplesmente não se importa. Se sabiam a que horas chegava hoje, podem muito bem ter-me naquela lista de gente que, de certeza, está mortinha para ser ocidental numa terra onde isso apenas é permitido se aceitarmos o capitalismo brutal como a única definição do que é o Ocidente. Escrevo que sim, está tudo bem. Satisfaço algumas curiosidades. Falo com quem devo, falo até com quem não devo. Publico fotos, espero likes para depois. Sou tão vulgar quantos os mais vulgares deste mundo, tão humano e falível como qualquer um que procura aprovação e aclamação dos outros, mas quero sentir-me especial. Passo as viagens entre sentir-me patético e único, na variação de uma paisagem, de um momento mental. O Hélder usa a casa de banho em primeiro. Vou eu a seguir. O chuveiro é enorme, largo. A água tomba como dedos que me tentam apagar os tremores da consciência, mas só a amolentam pela força da água tépida. A minha cabeça encostada à parede não estaca nem tem pausa, o interior é Le Mans em dia de corrida, vinte e quatro horas de aceleração. Quando a vejo na água, sinto-me sujo e limpo em simultâneo. Como se entrevisse o arauto da minha própria destruição e a única ilha deserta onde me posso sentir em casa. Desligo a água e a toalha trata do resto.


No exterior, alguns dos meus camaradas já destilam. Um punhado, claro, vidra no telemóvel. Um ou outro estão apenas e só a suar. O Mário, meu colega de viagem no comboio, reclina-se na cadeira com liberdade. Trato-o por "Comendador", pois este advogado de Fronteira possui nos seus genes a memória nobre dos grandes lidadores que defenderam as planícies do Alentejo, lendários homens dos tempos da Reconquista. Reza uma lena alentejana que Gonçalo Mendes da Maia, um desses bravos cavaleiros, enfrentou os sarracenos em combate quando tinha 91 anos, não se vergando sem antes matar alguns. É, obviamente, implausível e provavelmente uma confusão histórica; mas o nosso Mário, de óculos escuros garboso, a verborreia erudita pronta a discorrer num torrente fluvial de discurso retórico, sente-se e senta-se numa casa que não é sua. Imperturbável e estóico. Até a verdade de hoje ser mentira hoje também e num deslizar das pernas da cadeira, quase tomba e beija o poeirento chão. No entanto, segura-se este formoso e agora mais seguro do que há uns segundos. Sem óculos, exclama "Ai a minha vida" e aguarda uns segundos por algo, um algo que a todos passa despercebido. Quando fecha a porta de um quarto, finalmente confessa que no seu sonho acordado, o Comendador de Fronteira deparou-se com a visão despudorada de uma jovem que enfrentava o seu distraído olhar despojada de qualquer peça de roupa, uma Vénus de Milo que reencontra os seus braços e decide assim agredir o mundo com a sua viçosa juventude. Comendador Mário, surpresa e surpreendido, sentiu-se agradecido pela nudez inesperada e a sua resposta corporal fora da queda, como alguém conspurcado pelo pecado original tomba do Paraíso rumo à Terra. Aguentou-se, no entanto, permaneceu nesse estado de graça que apenas os beatíficos de sangue nobre podem transportar e trazer. Comentou, ainda assim, que a jovem enchia-se de qualidade e que não dera o tempo por mal perdido. Queda por queda, que seja de joelhos para agradecer ao Céu estas delícias que o acaso oferece por caminhos que alguém maior desenha.

Já caminhando nas ruas de Turpan, algo fica óbvio: os habitantes são extremamente simpáticos e abertos. Querem ser fotografados connosco, querem fotografar-nos. Quando os abordamos, há sempre uma palavra, mesmo em chinês, e à falta de comunicação verbal, oferecem-nos algo. Fruta, principalmente, uvas. Muitas uvas. O que eles adoram comer e dar a comer uvas. Orgulham-se muito das suas, querem que também nos orgulhemos e aceitamos. De manhã, a ideia é visitar apenas um local que não fica muito longe do lodge - a mesquita da cidade. Na verdade, isto é um exagero de descrição. O que existe de importante do edifício é apenas o minarete; mas compensa isso sendo o maior da China. Já descrevi anteriormente a relação que o Estado chinês mantém com as minorias e particularmente com os seus muçulmanos, visto e tomados por atacado como terroristas sem excepções, que só podem ser salvos através de uma reeducação intensiva. Estava portanto muito curioso para saber como estava a ser tratado este local aparentemente relevante para a cultura islâmica. Encontramos, claro, polícias, passeando-se à entrava por entre bancas de vendilhões de quinquilharias. Aqueles que no grupo se dedicam a essa religião por ali ficaram; os restantes foram avançando. Encontrámos uma guia, que explicou a necessidade de pagar bilhete para entrar. Tudo bem. Pagou-se. O ritual de vigilância da mochila era familiar, mas aqui, pelo calor emergente do dia, o menosprezo de lassidão dos guardas era notório. Antes de chegarmos ao edifício, existe uma larga praça de meio quilómetro a percorrer. No meio, a estátua de Qianlong, o imperador que ordenou a construção do minarete no século XVIII.Logo atrás, uma grua. Ora, estarão os chineses a tornar mais bonito este espaço de culto? Claro que sim, mas à chinesa e já fomos concluindo que restauros à chinesa são normalmente péssimos e descaracterizadores. Este não é excepção. Qualquer decoração exterior desapareceu. Qualquer sinal de uma cultura que não a chinesa nem existe e só não mandam abaixo a torre porque parece mal. No tipo de gesto que habitualmente conduz a amizades fortes com algemas, o Zé Luís dá uma palavrinha à guia e exige a retirada à grua, visto que se pagou bilhete e isso deve incluir a panorâmica fotográfica imaculada. Incrivelmente, ela concorda. Pede apenas uns minutos para informar a empresa de construção e já teremos o que desejamos. A China vergando-se a portuguesas? Que inversão estranha de papéis!


Um corredor de vinhas leva-nos ao minarete. Feito de madeira e tijolos castanhos, é simples, muito despojado. O edifício em si tem características muito orientais, o que torna as raras mesquitas do país em híbridos arquitectónicos muito estranhos. Como é normal na arquitectura, os elementos de decoração que sobram, até no interior, são abstractos e não figurativos. Quando entro, um espaço circular antecede a sala de oração. Esta é escura, cortada apenas por uma navalhada de luz vinda do tecto, numa abertura. O chão cobre-se de alcatifa, de tons verdes, vermelho escuros. Vigas de madeira suportam o tecto e cravada numa delas, um olho branco que tudo vê Alá comunista vigiando os seus filhos: uma câmara que invade um espaço religioso sem qualquer respeito por crenças ou momentos pessoais. Isso são luxos individuais numa sociedade que se pretende colectiva, todos iguais, todos no mesmo modelo, aceitando um poder superior. Só que aqui, a divindade que controla é dupla. à hora a que visito, a luz incide precisamente na câmara, como se esta fosse escolhida pelo dedo divino. Começo a pensar se daqui a uns tempos, o interior das habitações destas pessoas não será o último reduto de privacidade teórica que tem e até quando isso poderá durar. Nas divisões laterais à sala, o óculo não chega. Mas ainda assim, a sua presença é esmagadora, total. Mesmo a mais de mil quilómetros de Kashgar, o dedo vigilante da segurança continua a empurrar-nos aqui.

Não penso demasiado nisso, aliás. Fotografo e venho-me embora, até porque a fome reza no meu estômago. Enquanto caminho no regresso ao hotel, noto que há hábitos que não mudam: aceleras são conduzidas por crianças, várias vezes mais do que duas; os adultos não são melhores, visto que em tantas alturas circulam de telemóvel à frente, fazendo live feed da sua viagem. Vou entendendo que esta vigilância permanente que tanto me incomoda parece não afectar ou preocupar uma grande parte da população chinesa. Afinal, eles gostam de se observar do outro lado da lente. Mais um olho a registar não lhes faz espécie. A presença constante dos ecrãs e do desejo de partilhar aquilo que lhes é mais íntimo, ou seja, o que de mais ridículo e vulgar se pode fazer, é apenas um prolongamento da sua existência como chineses. Seja com o seu próprio aparelho, seja através da boa vontade e preocupação paternal de quem os governa. A maior vitória de um estado autoritário é a normalização do poder descabido. Achar natural aquilo que é aberrante. Em certos aspectos e com certas franjas da população, a maior vitória é a aceitação. Duas moças passam a pé ao meu lado. Trazem t-shirts pitorescas. Uma exclama "Idiot world". A outra murmura "Self service girl". Assim como assim, percebo de imediato que a era digital é amada pelos chineses e pode chegar de diferentes maneiras, diferentes feitios.


quinta-feira, novembro 28, 2019

Fachinação 11: Comboio nocturno para Turpan



"Journey to the west" é um dos quatro grandes romances chineses clássicos. Escrito no século XVI, na dinastia Ming, por Wu Cheng'en, conta a história mais ou menos real das explorações de um monge budista à regiões mais ocidentais daquilo que é hoje a China. Acompanhado por três companheiros e um dragão mágico, o monge leva a missão de entregar uns manuscritos muito importantes num mosteiro indiano. O romance tem cem partes e muito mais história do que isto, mas é um relato mitológico das paisagens do centro e sul da China, falando da divulgação do budismo e do próprio folclore da cultura oriental. As aventuras nunca chegam tão longe quanto Kashgar; mas o comboio estava agora a abandonar esta cidade para fazer uma viagem de quase 16 horas para o sentido contrário do Oeste. Depois três dias cheios em Kashgar, com um desvio por Tashkurgan, começamos a nossa deslocação para Oriente, parando em Turpan. Pela duração da viagem, é uma boa oportunidade para pensar um pouco nesta experiência tão intensa num país diferente do meu. Vim preparado previamente com material para fazer passar o tempo. A ida em primeira classe deste comboio significa que dormiremos em cabines de quatro camas, com privacidade e espaço para arrumarmos as nossas próprias malas. Num sinal da maneira como o governo chinês encara a região de Xinjiang, não existe linha de alta velocidade, o que significa que num passo vagaroso que corresponde ao nosso Intercidades, as carruagens deslocar-se-ão por uma das areas mais desertificadas de secas da Ásia. Num mapa, é notável que numa área correspondente a mil e quatrocentos quilómetros apenas exista uma zona urbana digna desse nome, já no último terço do caminho. O resto são desertos e montanhas. Escuridão durante a noite, deserto durante o dia; e, como repararei ao longo da viagem, uma visão longínqua dos famosos campos de reeducação que já mencionei anteriormente

Os meus três companheiros de cabina são o Mário, o Tiago e o Hélder. Um trio de advogados aos quais tento não dar muitos motivos para que me envolvam em casos de tribunal. Todos negam ressonar, mas nenhum de forma convincente. De qualquer forma, fico com um dos leitos superiores, que não costumo ter sonos agitados. Enquanto arrumamos as nossas malas e mochilas, o pica aparece e na China, não se picam bilhetes. Neste caso, podemos chamar-lhe o "troca", porque o senhor indaga por nós e ainda que não fale uma palavra de qualquer língua ocidental, percebemos logo que quer os nossos bilhetes. São uns cartões pequenos, de tom rosa. Nas mãos, um dossier com separatórias de plástico assinala-se com números e letras. O nosso bilhete é trocado por uma placa de plástico, substituída durante esta viagem. É um sistema de controlo arcaico, a milhas das câmaras e microfones tão caras ao Comité Central, mas eficaz. O meu cartão é verde, com uns caracteres debruados. Arrumo-o na minha mochila. E agora... temos muitas horas para matar. Não literalmente, o que causaria grande estardalhaço. Vou estudando os pequenos hábitos do comboio. De meia em meia hora, passa uma senhora empurrando um carrinho. Deita um olho às cabines, procurando quem lhe namore a comida e a bebida que transporta. Doces, chocolates, sandes manhosas, água, refrigerantes. Tudo isto ao alcance de alguns yuans. Nunca é sempre a mesma mulher. Vi pelo menos três, mas têm todas a mesma idade, entre os 40 e os 50. Deve ser uma função de senioridade. Ocasionalmente, o corredor é também frequentado por um polícia, mas a sua identidade não muda. Um indivíduo rotundo e anafado, sempre com o cansaço digno de quem tem uns 130 quilos a pesar-lhe nas rótulas. Xinjiang é uma província muito seca e estamos no Verão, por isso sua como uma esfregona que empurraram contra o balde. Deve mudar de camisa várias vezes, porque nunca o apanho com manchas na roupa e o ar de quem fez o Ice Bucket challenge forçado pela pressão dos colegas de trabalho. De qualquer forma, nem nos comboios escapamos à presença policial. Sem dúvida que é a profissão do futuro na China.


Mas rapidamente se instala o marasmo típico das viagens longas. Piadas para aqui e para ali e entretens nos telemóveis não ajudam a disfarçar o facto de que estaremos várias horas dentro deste espaço fechado. É então que o Hélder aparece com um baralho de cartas. Se levo pouca coisa aprendida durante estes 36 anos de vida, uma coisas certa é a de que uma cartada é aposta certeira no que toca a distracções entre homens. É ver entre nós, machos de idades diferentes, gostos díspares e naturezas desiguais, o mesmo olhar beatífico lançado ao Hélder quando ele lançou a boa nova. Se tivesse afirmado ali que teríamos comida a sério durante a viagem, a recepção não teria sido melhor. Numas contas rápidas, somos seis homens e há apenas 52 cartas. Proponho então uma sueca italiana. Quase ninguém sabe como funciona, mas aprendem rapidamente: há cinco jogadores e as regras são as da sueca tradicional. O twist é um sistema de apostas que leva os jogadores a calcular a possível pontuação que farão em cada jogo. Leilão de pontuações feito e o vencedor escolhe o trunfo e também, às escuras, um parceiro que terá uma determinada carta que lhe dá jeito. Fica sempre um de nós de fora, mas criamos uma liguilha que decorrerá com rapidez suficiente para quem o escolhido não fique muito tempo sem malhar uns trunfos. Sucesso imediato e num ápice até algumas mulheres, que se confessam não muito fãs de jogos do género, querem jogar, até porque o relógio parece que corre quando não nos lembramos de olhá-lo. Ases e manillhas e vazas e aqueles que contam as cartas e os que só jogam por diversão. A tarde é quase toda passada em redor do jogo, entre os mais habilidosos e os azelhas que ocasionalmente têm sorte, onde me incluo. De certa forma, é sermos portugueses bem longe de casa. Os jogos chineses costumam ser outros, entre o Mahjong e os Ossos - ou até, algo que não vimos até agora, lutas entre grilos. Numa cabine, estão meia dúzia de lusos a criar barulho e sururu por contas de uns bocadinhos de papel. São como crianças, entretendo-se com pouco. 

A certa altura, preciso de espaço pessoal e aproveito o vazamento da minha cabine para me deitar, calmamente, e ler. Regresso a "Easy riders, raging bulls", de Peter Byskind, que já me acompanha na viagem de avião. É uma crónica factual - ou segundo alguns dos envolvidos, bastante livre na sua veracidade - do movimento cinematográfico que revolucionou o cinema americano na década de 70. Homens como Scorsese, Coppola, Friedkin, Ashby, Spielberg, Beatty, de Palma e muitos mais, no seu melhor e também no seu pior. Byskind não está aqui para fazer análises artísticas. Interessa-lhe a intriga e o podrezinho, as relações pessoais, os segredos mal escondidos. Percebe-se porque é que em Hollywod lhe chamam indústria cinematográfica e não arte. Existem tantas variáveis humanas que permitem a produção de uma filme e que pouco têm a ver com talento ou mérito. Entre as histórias que podem ou não ser verdade, Robert Altman é descrito como um misantropo; aborda-se o ego imenso de Coppola, proporcional ao seu talento e que embora lhe tenha dado provavelmente a melhor de cada de qualquer cineasta norte-americano jamais teve, lhe acabou com a carreira a longo prazo; o introvertido Scorsese tem sucesso e rapidamente se vira para a cocaína; Warren Beatty não era o maior femeeiro de Hollywood; Paul Schrader é um caso de manicómio; William Friedking tinha um fascínio tão grande pela Nouvelle Vague francesa que se viria a casar com Jeanne Moureau quando esta já tinha quase cinquenta anos; e Peter Bogdanovich um daqueles gajos com pouco carácter no que toca a mulheres. É fascinante estabelecer alguns paralelos entre as obras dos realizadores e as suas possíveis vidas pessoais, os seus altos e baixos e também obsessões temáticas. Só as desventuras de Dennis Hopper dariam para fazer tremer o comboio onde vou e a certo ponto, tenho de parar por dois motivos evidentes: já vou quase nas cento e cinquenta páginas lidas e este dia, para mim, começou às cinco e meia da manhã. Já não sou quem era e isso inclui a minha vitalidade. Aliás, a certa altura duvido da minha própria sanidade. Paragem numa estação e é quase noite. Na plataforma, duas mulheres encapuçadas caminham girando bastões de basebol. Mas é real. Guardam a estação ou esperam talvez por algum marido adúltero. Ou então, gostam mesmo, mesmo de "A clockwork orange". De qualquer forma, as câmaras não parecem importar-se muito com elas.


Janto e recolho-me. Leio mais um pouco e ouço música. Durmo. Sei que sonho. É como uma dupla matine. No primeiro, sou perseguido por homens de fato e gravata. De arma em punho, procuram-me Perguntam por mim e informam-se e mesmo quando estão quase a apanhar-me, abre-se um alçapão e desapareço apenas para surgir noutro local. Isto decorre em vários cenários, uma cozinha, um jardim, uma escola e estou em permanente fuga, sem que me apanhem. Mas eles estão sempre lá. Não os reconheço, mas sabem bem quem sou, levam fotos minhas e fazem perguntas específicas. Sobre mim adolescente, sobre as minhas viagens, sobre as minhas preferências. A meio da noite, desperto com súbita apreensão. Ouço ressonar. Alguém mentiu, claramente. O comboio vagarosamente embala e abana. Consigo ver chuva na janela e lá fora, breu completo. Mas sinto que não existe nada, que é deserto. Chuva no deserto. Imagino flores que despontam, areias sequiosas que se resfolegam na brisa, um nascimento numa maternidade de cemitério. Lembro-me também daquela canção xaroposa do Sting e percebo que é altura de regressar ao sono. A segunda viagem onírica leva-me até ela, sempre ela. Posso mandar na minha cabeça enquanto estou consciente - embora com muito pouca autoridade - mas cai o estado de vigília e de súbito, o que de mais profundo existe em mim aflora e só faz brotar a impossibilidade. Quando acordar, sei que vou meditar novamente nestas prisões que criamos a nós mesmos, de diferentes tipos de perigo, de me imaginar dançarino em constante navalha, de me ver como um otário que acredita ainda em qualquer tipo de pureza num mundo onde as pessoas parecem valorizar mais o pragmatismo e o desprezo completo pela estima. Não sei se também por isso procuro os recantos infindos do planeta, procurando algo de belo, honesto, puro. Quero acreditar que existe. Engano-me que um dia estarei livre e estarei bem, sem ouvir os sinos da destruição a repenicar dentro dos meus hemisférios. Mas não nesta noite. Não nas próximas, de certeza.

Acordo com a porta da cabine a deslizar. O pica alerta-nos que estamos a chegar e quer o seu cartãozinho de plástico de volta. Desperto em lenta combustão. A eficácia chinesa adiantou-nos o horário quase quarenta minutos. Ainda falam dos britânicos. Improviso um rápido pequeno-almoço de bolachas enquanto arrumo as minhas coisas. Em filinha no corredor, obedecendo ao movimento autónomo das carruagens, esperamos a chegada. Quando esta se dá, andamos algum tempo às voltas na estação até encontrarmos a saída. É um edifício muito utilitário, onde oficiais permitem passagem de um ponto para outra mediante a visão do nosso bilhete. Quando chegamos à saída, um trio de polícias aguarda-nos. Um deles confirma o telemóvel e assenta com a cabeça. Chamam-nos por gestos. As malas são arrastadas à sua presença. Verificam-nos atentamente e sinalizam que os sigamos. Já sabem como é, lá vamos nós. A coisa estranha, ou não, do que vivi até aqui, é que eles tinham perfeito conhecimento das horas a que chegaríamos, quem éramos, onde dormiríamos. Somos treze, somos portugueses, os nossos nomes consabidos. Sabem os nossos desejos e vontades antes de nós, controlam-nos por completo. Isto é apenas um pro forma. No exterior da estação, somos encaminhados para um pequeno edifício que enverga as já familiares divisas da Polícia chinesa. Os nossos velhos amigos. Na manhã de Turpan, um céu nebulado ameaça chuva. Os meninos fardados não se detêm. Há um que arranha a língua de Shakespeare. Perguntam-nos de onde somos, embora a resposta tenha sido dada sem que uma palavra nossa nos denuncie. É só para um cumprir o guião. Portugal.  Putaoya. "Ronaldo", sorri ele de forma mecânica. Passports, please. Hotel, please. Papéis indicam o local da nossa estadia. Em poucos segundos, chegam-lhe à mão treze passaportes. Fotografa cada um com a ajuda do seu telemóvel. De seguida, pede-nos que seguremos o nosso respectivo passaporte e o coloquemos ao lado da cara. Nova fotografia. Um processo com treze oportunidades diferentes de opressão. Os colegas observam-nos e nunca intervêm. Minutos depois, aponta-nos para a estação. Good visit. Enjoy Turpan. E é assim, estamos livres. Mas presos.


 Na praça de táxis, acho que cada um de nós ainda está a lidar com o que acabou de se passar. É bom sinal, sinal de que não podemos considerar normal o que é, devia ser uma anormalidade. Uma coisa é sentirmo-nos observados. Outra, é o controlo simples e total de quem te adivinha, de quem te conhece os movimentos a um ponto em que já te espera onde ainda nem te imaginaste. Na minha cabeça, conto os dias que ainda teremos em Xinjiang. Serão mais dois. Andaremos de um lado para o outro, mas começo de facto a esperar tudo e a não colocar limites, na minha imaginação, às maneiras pelas quais não me poderei sentir eu mesmo como deve ser no meio dessa grande mente que tudo sabe. O grande olho que tudo vê. O grande anónimo carregado de todos os nomes. Ser torpe em Turpan. Ou na China, sê tratado como um chinês.


quarta-feira, novembro 20, 2019

Fachinação 10: Manhã pura, Manhã dura


Nunca se deve voltar onde já se foi feliz, dizem. Consigo compreender a intenção ainda que a felicidade seja aquela coisinha com penas que esvoaça e nunca é certa. Como tudo, é uma percepção e regressar pode até nem ser voltar num local, mas vê-lo a sério pela primeira vez. Mesmo em coisas pequenas. Um ritual que faço com aqueles que me são próximos e conhecem mal Coimbra é levá-los a provar as melhores natas a cidade. O choque assoma-lhes sempre à cara quando à porta de uma estação de serviço da estrada nacional 1 lhes digo "É aqui". Pensam que gozo, mas não. Depois de provarem ficam convencidos: são umas caixas de delícia, daquelas bem grande que se podem comer à colher. Doces, mas não o suficiente para que não se possam comer por si mesmas sem causar enjoo. Futuramente, de todas as vezes que voltam ali a passar, referem-me e chamam-lhe o sítio das natas. Porque mudou. Uma nova perspectiva, um segredo revelado transforma tudo; e dá-me um pequenino prazer malvado quando me convenço de que sei mais do que o outro, tenho uma outra sensibilidade, por momentos convenço-me que sou melhorzinho, mas depois entra a realidade e tudo muda. Mas nesses segundos, o mundo é outro. Acho que também é por isso que gosto tanto de fotografar. Porque é uma preparação para a mudança. Se forem todos os dias do ano ao mesmo local, tirarão muitas fotos diferentes. As condições mudam, os segredos revelam-se. Até mesmo o mais aborrecido dos espaços se torna, ainda que por um dia, um recreio dos olhos. Adoro isso na relação que tenho com a realidade que está do outro lado da lente. Essa possibilidade de mudança rápida, transformativa, que tantas vezes desejo na vida e não calha.

Fazer a estrada de Karakoram de regresso na manhã seguinte à visita a Tashkurgan, foi uma dessas experiências. Pela necessidade de viajar num comboio que saía ao inicio da tarde da estação de Kashgar, acordámos pelas seis da manhã. Entre pequeno-almoço e arrumar tralhas, foi pelas sete e pouco que abandonámos a cidade fronteira do sudoeste chinês no mesmo mini-autocarro que nos trouxe. Desconfortável, nalguns lugares forçando a compressões articulares, já sabia que seria o tipo de viagem que não me deixaria espraiar no sono. A escuridão da madrugada negava-me até o mínimo prazer das vistas desta via. Era um dos pontos que sublinhara quando percorri virtualmente o percurso desta viagem. Conhecida como Nacional 35 (ou de forma mais fofa, a Estrada da Amizade, pela colaboração que uniu dois rivais regionais, como o são a China e o Paquistão,  na sua construção), os seus mil e trezentos quilómetros unem a província do Punjab, no centro norte da potência atómica islâmica, até ao extremo nortenho de Xinjiang.
É uma das estradas pavimentadas mais altas do mundo, com o seu ponto mais alto a quase 4800 metros de altitude, e por isso uma atracção turística que leva os viajantes a percorrê-la apenas pela experiência. O facto de percorrer aquele que seria um dos mais antigos trilhos da Rota da Seda apenas acrescenta à experiência. Como é de calcular, não há-de ter sido um percurso fácil de magicar e concretizar. O orgulho que ambos os países têm da sua simples existência deu-lhe a alcunha de Oitava Maravilha do mundo e é, de facto, uma pequena maravilha da engenharia, e mortal também. Mais de mil trabalhadores morreram durante o projecto, e estes são apenas os números oficiais. Os Chineses podem ter muitos defeitos que já fui alinhavando, mas reconheça-se que no campo das obras e obrinhas, fazem um esforço genuíno para unir os pontos do país de forma mínima. Podem não dedicar a mesma atenção a todas as regiões, mas tal presume-se como lógico quando conhecemos o historial da sua relação com minorias. Se verificarem a província de Xinjiang no mapa, concluem que esta é mesmo a única estrada de grande dimensão naquela que é, relembro, a maior província do país. Mas, como descubro mais tarde, fosse este problema apenas de quatro rodas.


Este troço que percorremos é até dos mais seguros. Do lado paquistanês, a estrada sobe e desce, namora com as margens de rios que durante a Primavera vazam com as águas do degelo e colocam em risco a vida dos condutores. Há claro também o pequenino pormenor de cruzar perigosamente com a região de Caxemira, esse imenso fogo de artifício acirrado entre paquistaneses e indianos. Qualquer turista do risco deve ter este percurso a bold na sua lista de desejos. A mim, no entanto, interessa-me mais aquele parte dos quatro e mil e picos metros de altitude. A paisagem do dia anterior foi a melhor das companhias e embora este dia tenha começado na escuridão, é gradual a chegada da luz do dia. De início, apenas uma miragem que se sonha no desejo de os olhos voltarem a ser úteis. Depois, afirmando uma presença de lençol de seda, afastando o breu. Vou escutando podcasts de crimes reais, mas o momento pede aquele pianista que vocês tão bem conhecem. A "Ascension" é o princípio de um banho da minha própria sensibilidade numa paisagem que assume tons de filme a preto e branco, nos delicados cinzentos da alvorada em locais onde a escuridão e a claridade são os dois únicos modos conhecidos da existência porque não existe electricidade.

Montanhas protegem montanhas ao longe e revelam-se numa sensualidade que cresce em mim, que apela a qualquer coisa que bate sempre forte no meu interior quando a altura é elevada. Grossas nuvens de susto perdem o medo e embora protegendo os picos que no horizonte furam o céu e erguem uma muralha, dançam em seu redor e não me enganam. Longas rectas oferecem a vista esplêndida e sem pudor de uma cordilheira de branco trajada, fria mas soprando em duas fogueiras com pupilas que me dominam a cara..O autocarro é como se não existisse. Estou lá fora. Sem pensar, a máquina fotográfica sente-se na mão, não entendo bem se sozinha ou com a minha própria ajuda sem intenções. Sempre que surge a oportunidade, ambos sabemos; e quando o sol, finalmente, indaga e paz perguntas ao mundo, a minha atenção regressa ao autocarro e vários dos meus companheiros já fotografam alarvemente este espectáculo que apenas consigo filtrar por um vidro sujo. O Zé Luís, guia da expedição, percebe que há momentos onde realmente só se é feliz naquela hora. Paramos.

É um ponto privilegiado. À nossa frente, a represa da barragem de Qiongkuai oferece ao céu um reencontro com o seu azul, mas sem fundo. Em todo o meu redor, montanhas enormes acordam e enchem o peito, respiram fundo numa exibição de força. Há um contraste entre duas cordilheiras. Atrás de mim, elevações arenosas absorvem o sul, no seu cume branco, a estrada parece sair do seu ventre, do seu cruzamento óbvio. São carnes enrugadas compostas por poeiras que milhões de anos acumular. Um deserto esconde-se e só espreita tímido, de soslaio. Defronte de mim, a força bruta da pedra densa ergue-se, de cabelos brancos mas seu reumático. A grande via de Karakoram esgueira-se, como que passando despercebida, por entre os seus braços. Na claridade pálida de uma manhã que nasce, no frio que me enche os ossos trémulos e os pulmões suspensos, uma neblina cortinada vai navegando os topos. É uma saliva gulosa que veleja nas ondas do relevo rugoso, acima e abaixo, num mar de sua própria construção. Vejo-a parada, mas sei que se mova à velocidade do vento e do tempo. O pavimento de alcatrão ainda não tem visitantes e por isso, aproveito a benção.


Deito-me no centro da estrada e fotografo. A longa rectilínea via desaparece por entre uns montes e abre espaço aos outros. Nas notas de "Fox tracks", o violoncelo faz-me tremer e ao solo. É um daqueles momentos que se vive de pleno coração, sem hesitações ou vergonhas. Um daqueles momentos em que se está ou então, mais vale ficar-se trancado na mala de um carro. Quase choro. Num ou noutro momento em que pouso a máquina, procura a mão que sei nunca estar presente, nem futura; mas queria partilhar isto e deixar cair a cabeça num colo de montanha, protector, superior. Dois camiões vindos da direcção de Kashgar perturbam o momento; apitam-nos em saudação, dizemos adeus. Os minutos escorrem e se não sairmos agora não chegamos à estação de comboio a horas. Aproveito para últimas capturas. Ficava aqui horas a acompanhar o parto do dia e o seu crescimento; a idade adulta e a morte. Ficava aqui no nenhures das infinitas terras, onde as pessoas só passam por obrigação e o turismo só surge por acaso. Mas tenho de partir. É um dos meus problemas: não poder ficar onde só querem que vá embora.

Mesmo em viagem, continuo a fotografar. Imagens imperfeitas filtradas pela fronteira que existe entre mim e o mundo real, um vidro escurecido e sujo, e penso em como tantas vezes é assim a relação das pessoas com o mundo: por um intermediário que o filtra e nunca o devolve na sua real beleza. De súbito, abrandamos e a camioneta encosta à estrada. É novamente altura de jogar à "Roda da Sorte" com a polícia chinesa. Num hábito quase maquinal, seguro o passaporte e preparo a mochila para a revisão. Penso em como todos os dias, há milhares de pessoas nesta região para quem isto é tão automático quanto sede num dia de calor. O nosso guia sai para o ritual do costume. Mas passam dois minutos e ainda aqui estamos. Piadas surgem para disfarçar o nervosismo. Curiosamente, a minha primeira ideia é a de que o Atta encontrou problemas. Ele é uigur e aparece ali com um grupo de estrangeiros. Não me surpreenderia. Já li sobre gente presa por estes lados por motivos bem mais aleatórios. Mas ele lá surge, meio confuso. Olha para trás. Pede que saiamos com documentos e bagagem. No exterior, somos uma linha que espera. À porta do posto. Um garoto que tem idade para ser meu aluno faz gala da farda e indica-nos que entremos. No entanto, lá dentro, não sabe bem o que fazer de seguida. Usa o walkie-talkie para comunicar com alguém que provavelmente saberá. Manda-nos recuar. Depois manda-nos avançar. Agora temos de atravessar a estrada para ir à casamata onde ontem encontrámos a simpática senhora do mau olhado. Se calhar, é melhor não, estáticos de novo. Uns segundos depois, voltamos a avançar. Na minha cabeça, apenas ouço aquela musiquinha dos sketches do Benny Hill. Eis a máquina de vigilância e burocracia mais eficaz do mundo a  proporcionar-nos um momento que podia bem ter saído de "O prédio do Vasco".

Todos os guardas têm ar de quem saiu da escola hoje para um dia diferente do curso profissional, num roleplay de forças de segurança- Somos então conduzidos à tal casamata. A mesma mulher ainda por lá anda, a controlar gente. Quando nos vê, abre muito os olhos e mata o rapaz que nos acompanha, pelo menos mentalmente. Sem abandonar o seu posto, presta-lhe uma descompostura que a mim me soa a dois camarões copulando debaixo de um telhado de zinco quente. Agora, é a nossa vez de rir e de apreciar os efeitos desse compressor oriental nos seus próprios súbditos. Não sei se consigo evitar o sorriso ou se alguém me viu. Mas tudo isto é divertido. Lembro-me de ler histórias sobre burocracias ridículas na União Soviética e de como os facilitadores do grande aparelho soviético por vezes entravam em choque por não entenderem quando fazer o quê. Nunca pensei assistir a algo semelhante. Mas aqui estou eu, como que viajando no tempo. Quando o autocarro continua viagem, ainda estou a sorrir.


Chegamos à estação bem adiantados. Afinal, tanta coisa e ainda vamos esperar horas, converso comigo. Despedimo-nos do Atta e do condutor, com uma gorjeta e todos os agradecimentos pela simpatia e o profissionalismo com que tratou de tudo, desde as suas explicações até à viagem em si e pelo facto de tudo ter decorrido sem incidentes. Não é a minha primeira vez na Ásia Central e garanto-vos, tal é obra. O grupo encaminha-se para a entrada da gare, arrastando males, trazendo consigo tralha. Mais perto do destino, um magote de gente surge em modo caótico. Aumenta e concretiza-se como uma multidão. Dezenas de pessoas aguardam a sua vez de entrar, porque existe o controlo de quatro guardas que fazem perguntas, revistam, pedem documentos. Depois de pousar as minhas coisas, convencido de que afinal tudo isto vai demorar, noto então que no interior existem mais fardas.

A constituição de filas na China é algo muito, muito informal. As pessoas chegam e esticam a paciência de quem está, a ver até onde se podem meter à frente. Se não houver reacção, com naturalidade ocupam o nosso lugar sem duplo pensamento. Isto não acontece apenas na ponta final das fileiras. Estejamos a meio ou praticamente a ser atendidos, há sempre que alguém que de fininho, normalmente de maleta em mão, vai pondo o corpinho aos poucochinhos, só para ver se dá. Com os Chineses, a coisa por norma pega. No entanto, português que se orgulha do seu sangue arma pé de vento com penetras. Eu, em particular, odeio a queda da civilização representada pela chico espertice. Se uma pessoa me pedir com jeitinho, não crio problemas. Grávidas e idosos têm normalmente carta branca. Agora, chico espertos não têm qualquer sorte. Apanho alguns. Um sorriso de carneiro mal morto, uma aparição de nenhures se pedir licença. A minha resposta é sempre simples e de tradução universal: finca pé em corpo sólido, voz bem levantada e grossa, um gesto brusco a apontar para trás. Uns ainda ficam a olhar para mim, em desafio. Quando tal acontece, o passo seguinte é apelar à consciência portuguesa e logo outros companheiros de viagem fazem o mesmo. Há uma certa confiança nos cidadãos chineses de que os estrangeiros são capachos e farão tudo para evitarem confrontos e assim encontros policiais. Eu esqueci-me disso momentaneamente. Devem ser ainda os efeitos da altitude.

O primeiro de três pontos de controlo é simples, mas antes de passá-lo, precisamos de sair da fila e pedir papelada num guichet. Preço de ser estrangeiro. Regressamos e pedem-nos os mesmos papéis e documentação. Em chinês, inquirem-nos, mas nada. Um oficial consegue arranhar a palavra "destination". Turpan. Comprovamos com os nossos bilhetes. O Zé Luís é o último a passar pelo processo. Antes que possa fazê-lo, aborda-o um jovem que não tem mais do que quatorze anos. Chama-o com toda a intenção. No meio daquela confusão, de gente a imiscuir-se, de berros, de discussões - um dos funcionários da estação, um indivíduo esguio e baixo, de óculos de massa redondos, fiscaliza as linhas e a certa altura, manda uma chapada em alguém que tenta passar a frente de uma idosa; segundos depois, está a pontapear outro malandrim - o jovem estende-lhe o telemóvel. O Zé, confuso, não aceita o início, mas depois entende. No ecrã, vê uma foto sua... com aquele garoto. Este sorri-lhe e estende o polegar. Provavelmente, foi tirada no ano anterior, quando o Zé visitou Kashgar pela primeira vez. O local é exactamente aquele, a estação. De início, penso na extraordinária coincidência que acabou de acontecer. Quais as probabilidades de, passado tanto tempo, aqueles dois se cruzarem? Mas rapidamente começo a perder a ingenuidade e é óbvio que alguém sabia que o Zé ali estaria naquele dia. Alguém que convidou, ou obrigou, o miúdo a surgir ali, do nada, para levar uma subliminar mensagem ao grupo de portugueses: nós sabemos quem são. Sabemos onde estão e para onde vão. Não pensem por um momento que nos esquecemos de vocês. Andaremos por aí, de olhos, nada de rebeldias ou de mijar fora do penico. Penso que quão rebuscado isto pode ser... e no entanto, será mesmo? Estará este enorme sistema de vigilância a tornar-me paranóico? A impedir-me de ver a beleza de um simples acaso? Ou será tudo isto uma orquestração feita para nos intimidar? O Zé está meio perturbado e eu, sinceramente, sem saber o que pensar. O sorriso do imberbe desconhecido tem a genuinidade dos tolos, mas muitas vezes estes são os mais perigosos dos aliados.


Não tenho grande hipótese de remoer isto agora. Pedem-me a mala e a mochila para um controlo de raio x. Sou encaminhado então para o detector de metais, onde me revistam antes de passar. Passo, nada apita, mas novamente me passam a mão pelo corpo. Por uma mulher, já agora, no que é a única coisa boa até agora desta atenção chinesa à segurança. Os meus pertences encontram-se afastados, numa mesa de metal. Numa guarda pessoal, uma oficial aguarda-me. Um inglês difícil dá-me a entender que terei de prestar o ritual do esvaziamento da mochila. Abro-a e esta vomita todo o seu interior. Temo que impliquem com os livros, mas nada. Sem pedir licença, agarra no estojo de higiene. "Is it yours?". "Oh yes it is", e remexe-o sem vergonha. Do interior, salta o meu desodorizante. Aponta para o símbolo de "produto inflamável". Causa-lhe espécie. Sou informado de que "very dangerous, could be fire" e é-me confiscado. No mesmo espaço está um repelente e um protector solar, exactamente os mesmos produtos químicos capazes de, caso eu queira celebrar o incêndio do Chiado, deixar o comboio onde viajarei no mesmo estado das locomotivas de Alcafache. Mas não, aquele desodorizante é que é problemático. Em jeito de piada, pergunto-lhe se aquele faz falta na colecção. Ela sorri e ordena-me que arrume tudo e deixe de empatar o caminho. Assim o faço. Tenho pena de quem me rodear no muito tempo de viagem que me falta, porque sem o auxílio higiénico de um desodorizante, o meu odor corporal é capaz de atingir níveis de vilania de um Thanos ou de um Darth Vader. Mas passei e finalmente posso entrar na estação.

Hora de almoçar. Enquanto cada um vai à sua vida procurando comida, eu, como sabem, estou mais do que preparado. O aparelho de segurança que enfrentei não me confiscou as latas de atum e uma delas serve-me de reforço. Pouco reforço, mas ainda assim. Enquanto almoço, guardo as malas do grupo. Uma cara familiar cumprimenta-me então: Michael, o amigo americano. Surpresa. Também vai apanhar o comboio. Para onde viajo? Turpan. Que engraçado, ele também! Acompanhará um francês e um casal dinamarquês que também por ali andam. Pode ser que nos cruzemos, embora não seja provável. Turpan é uma cidade ainda grande e há tanta coisa para ver que dificilmente nos veremos. Mas boa viagem então, o Zé Luís não está? Foi comprar comida? Ainda bem, a viagem é longa, não é? É bom que viajemos em primeira classe, irmos muito mais à vontade! Entretanto, chega mais gente e ele fica ali ao paleio. Na altura, não ligo muito; mas mais tarde, com tempo e já com mais dias em Xinjiang, o amigo americano não me recorda o "Living in America", do James Brown. David Bowie cantará na minha cabeça "I'm afraid of americans". Mas no momento, engulo atum, desvalorizo teorias da conspiração. Acho que foi um acaso. Que provavelmente ele se sente sozinho ali e gosta de passear com ocidentais, que nunca mais voltaremos a vê-lo.

A questão é que a saga do Michael ainda vai muito a meio.




sexta-feira, novembro 15, 2019

Fachinação 9: O longe e a distância


Há coisa de dois meses, dois amigos meus deram o nó. Festa catita, aparte estudantes universitários a cantar e girando pandeiretas. Muita comida, alguma palhaçada e comigo, aquela sensação de estar sempre a mais quando acontecem momentos de pagode. Já ao final da tarde, com convidados meio bebidos e a pista de dança a entrar naquela fase de setlist parola que faz com que os DJs de casamentos sejam dos profissionais mais sobrevalorizados do mundo monetário, sou abordado por uma das amigas da noivas, sorrindo seriamente e com o tipo de decotes capazes de iniciar uma nova Guerra dos Cem Anos. Queria falar comigo, mas manter-se vestida, o que costuma ser, aliás, um costume bem arreigado nas minhas relações com o sexo oposto. "Vou ao Irão daqui a umas semanas e queria que me desses umas informações". Tudo muito bem, mas porque me estás a dizer isso? "Ah, tu já lá foste, certo? Andaste por tantos países esquisitos que já lá deves ter ido", e não, nunca lá pus os pés, não por falta de vontade, mas por sofrer de uma doença crónica de cura difícil chamada "conta bancária esquálida". Esclareci que o que sabia era em segunda mão. Que conhecia quem viajasse para essas bandas, mas que eu, pessoalmente, jamais pusera os pés no coração da Pérsia. Acho que ficou confusa por momentos. A certeza imóvel de que eu demandara pelo Irão estava tão presente nela que posso ter passado por mentiroso durante uns segundos. Mas é um fenómeno bizarro que tem ocorrido comigo. As pessoas não presumem apenas que eu viajo. Se o faço, é para os locais onde elas nunca sonham. Colocam em mim uma certa extensão de magnetismo pelo desconhecido, mas por outro lado um temor pelo mesmo. Ainda que os meus destinos possam ser relativamente normais, seja lá o que isso for, a conclusão é a de que não ficarei pela capital e pelo papo ao ar. Desapareço na penumbra do que se teme e qual é a admiração de eu ter ido ao Irão? É bem normal, estamos a falar de um gajo que visitou um "istão", não é?

O lago de Kala Kule é um desses lugares no meio de nenhures que reforça a minha fama de eremita. A quatro mil e quatrocentos metros de altitude, é uma massa de água de cor clara, que não reflecte o céu, mas possui a sua própria paleta celestial. O que podemos lá ver em duplicado são as muitas montanhas que o rodeiam, ainda com neve, uma delas tapada quase na totalidade: é o Muztagh Ata, uma besta de quase sete mil e quinhentos metros de altura. São topos de beleza rude, mas que se entranham em mim, amante de montanhas, como naturais. Ainda assim, apesar de remoto, é um local bastante visitado. Estão aqui, em contas por alto, pelo menos umas cem pessoas, espalhadas a todo o comprimento este espaço. O dia é de sol, mas a forte ventania e o frio da altitude não convidam de todo a um passeio fácil. Vir aqui só pode se acendido por um desejo e não pelo tédio. Devoram este local com telemóveis. Há quem aproveite para usufruir dos serviços de uns moços que convidam avidamente para passeios de dromedário e camelo bactriano, os mais comuns na Ásia Central. Dão umas voltinhas pelas margens do lago, tiram umas fotos: estiveram lá. Eu simplesmente me instalo a almoçar. O que é? Obviamente, uma latinha de atum. Lentas garfadas fazem desaparecer a comida, enquanto me instalo em todo este esplendor montanhoso. Ao meu lado, a máquina descansa também, porque sabe que trabalhará bastante proximamente. Reparo, a pouca distância, num senhor que veste de forma bem selecta. A sério, parece mesmo que vai trabalhar na Bolsa de Valores fato e gravata, cabelinho penteado. Pergunto-me se isto é prova de um fenómeno sobrenatural de bilocalização, mas não. Caminha para junto do lago e instala-se num enorme lodaçal que lhe transborda os sapatos, mudando-lhe a cor do preto para um castanho derretido. O motivo descobre-se de seguida: sorriso forçado, telemóvel ao alto e hossana na selfies. Era a perspectiva desejada, o melhor ângulo para a foto. Só posso sorrir pela vestimenta, nunca pelo sacrifício fotográfico. Sei eu bem que já fiz coisas mais arriscadas e sem juízo para captar uma imagem. Mas lá está, é muito por isto que viajo. Ele veio até aqui provavelmente para se lembrar de que está vivo. Quer dizer, também eu. Não tenho olhos atravessados, nem sequer me aperalto, mas também tenha mais em comum com ele do que penso.


Depois desta pausa para almoço, estamos a cem quilómetros do nosso destino de hoje, Tashkurgan. A paisagem será sempre esta, de montanha, acompanhados pela cordilheira de Karakoram. Esta estrada tem pouco anos, e na verdade, pelo caminho, ainda apanharemos pedaços onde está apenas a ser idealizada. Apesar da distância relativamente curta que nos espera, ainda demoraremos umas cinco horas a fazê-la, à custa das curvas e dos desvios. Tashkurgan não é um destino particularmente notório. Na verdade, esta é a coisa que mais se destaca no seu papel na China. Um ponto onde outra das minorias do pais, desta vez os Tajiques, se reuniram ao longo da História. Percebe-se isto, pois fica praticamente colada à fronteira com o Tajiquistão. Este estatuto de cidade de fronteira adensa-se mais quando no mapa se repara que tgambém encosta praticamente ao Afeganistão e ao Paquistão. Em termos de geopolítica, este é um prémio muito pouco invejável, o que faz com que o governo chinês tenha um particular interesse por Tashkurgan, por muito que não exista nada aqui para haver interesse. É outro fim do mundo. Aparte algumas casinhas que vejo pelo caminho, não existe nada. O passeio merece-se pela fabulosa paisagem. Localizada já na cordilheira do Pamir, esta é uma cidade com trinta mil habitantes, a esmagadora maioria de origem tajique. Mesmo nos tempos da Rota da Seda, este caminho era apenas percorrido pelos mais bravos e talvez desesperados. Hoje em dia, apenas um transporte aqui chega, e é a camioneta, uma vez por dia, a partir de Kashgar. Tashkurgan é um daqueles lugares esquecidos pelo mundo. Consigo reconhecer este isolamento depois de três anos a leccionar no Alentejo, mas aqui numa amplitude muito mais elevada. Talvez por isso a cidade detenha o estatuto de entidade autónoma, para uma melhor gestão dos seus recursos: a distância da civilização, o relevo montanhoso  -para além do Pamir, outras três grandes cordilheiras encontram-se aqui perto - e a situação política particular convenceram a China a experimentar esta solução.

É estranho ler mais tarde a história da região e perceber que a cidade foi a capital de vários reinos, obtendo a sua riqueza a partir do comércio. Hoje, apenas a estrada de Karakoram traz aqui visitantes. Aqueles que gostam de se demorar têm a oportunidade de visitar os locais históricos, nomeadamente a Torre de Pedra que domina a geografia da região. Uma vez chegados a Tashkurgan, é aqui que nos deslocamos de imediato. Estamos no final da tarde, mas a diferença entre o tempo oficial e o tempo real significa que ainda temos várias horas de luz. Esta grande torre, no cimo de um rochedo, parece imponente nas fotos dentro do centro de visitantes. Ecrãs rachados e cartazes de papel envelhecido anunciam os encantos deste museu e desta área. O museu é grande, ainda assim, e os Chineses não pouparam a meios para que o visitante tenha uma experiência confortável. No exterior, encontram-se vários comboios com rodas, com assentos para transportar o visitante aos pontos de interesse. Como em tudo, o que interessa é controlar: vemos apenas o que eles desejam e as nossas escolhas são colocadas em pausa. Eles sabem bem o que é bom para nós. Na primeira paragem, uma inscrição chama logo a atenção. If in Rome you do like the Romans, in China do it the Chinese way. È como quem diz "Ta quietinho ou levas no focinho", mas de uma maneira bem educada, polida. Um passadiço de madeira, que não passa ao lado do rio Paiva, conduz a um rochedo elevado, sob o qual se vão destruindo umas muralhas de pedra e adobe. O enquadramento montanhoso torna o local mais imponente do que devia; mas nesta planície aluvial, encostada a um rio, qualquer elevação se torna uma vantagem geográfica de imediato. Uma lenda registada por Xuanzang, um monge budista do século sétimo, fala que uma princesa Han aqui se terá refugiado com o seu séquito, numa altura de revoltas populares na região. Estava a caminho de se casar com um rei persa. No entanto, talvez por na altura as políticas de contracepção não fossem tão restritivas como actualmente, a princesa engravidou de um "desconhecido" e nove meses depois deu à luz um rebento que se tornou num poderoso guerreiro que viria a fundar uma linhagem real que durante muitos anos governou Tashkurgan. Sorte a sua.


O que a História nos diz é que o nome da cidade é uma tradução literal desta estrutura: forte de pedra. Portanto, devia ser bastante importante. Tem mais de dois mil anos e terá servido até como palácio em certas alturas, mas não se sabe muito mais. O que sobra no interior é quase nada, fruto de séculos de abandono de negligência. De isolamento. Restam estes calhaus que visitamos e que neste momento se encontram num processo dinâmico de Disneylandização. Este ano, ainda tenho um certo prazer de calcar e tocar em algo que a partes ainda é genuinamente arquitectura Tajique. Mas nalguns pontos, é notório que estas muralhas foram demolidas por bulldozers e não cavalaria guerreira, para dar caminho a um novo parque de diversões étnicas. Deste topo, a paisagem é ainda assim incrível: um pântano aluvial estende-se largamente e a luz do ocaso banha-se no seu verde e nas suas águas. Várias passadiços em madeira desviam-se e contorcem-se neste espaço e apesar de artificial, o cenário é bastante apelativo às lentes. Combinando com o relevo elevado, este cenário variado e de aparente fertilidade quase resolve o mistério da razão pela qual alguém se instalar aqui. Apesar de fazerem parte do espaço do museu, foi dado as pastores livre acesso a esta planície húmida. A Arqueologia e pecuária casam-se naturalmente. A espaços, posso ver yurts. É-me estranho imaginar pessoas vivendo dentro de um museu, mas acho que é algo com o qual alguns estagiários se podem identificar. Na verdade, este desvio e esta visita valem acima de tudo por estas vistas, pelo passeio nas pastagens e pela oportunidade de chegar aqui ao final do dia, com o sol desaparecendo no horizonte, a luz dourada incandescendo o castanho claro baço da terra e das muralhas em algo de transcendente, Enquanto descemos para caminhar sob a planície, a fortaleza, num golpe de vista rápido, parece então imponente e quase renascida, criando na imaginação em fogo o seu esplendor numa altura em que Tashkurgan fora ponto essencial num qualquer recanto da civilização. Quase que apetece criar um rei guerreiro com uma desconhecida, mas depois lembro-me que a violação é crime e não quero ficar retido no sistema prisional chinês. Deixo isso para outros profissionais. A meio do caminho, uma placa informa-me de que cada segundo de viagem deve ser acompanhado de comportamento civilizado. Obrigado, Xi Jinping.

Claro que o problema dos locais pequenos é também a logística. Chega a hora de jantar e quase todos os lugares recomendados ou no Trip Advisor, esse conselheiro fiel do viajante ainda que nos ermos dos perdidos, estão lotados. Os que não estão apresentam mau ar. Pelo menos para alguns de nós. Outros acham aceitável. Há crispação. O Atta, nosso guia até no estômago, informa que há um paquistanês do outro lado de Tashkurgan. Um raio de esperança, excepto para mim, que gosto tanto de paquistanês como os paquistaneses gostam da Índia. Numa súplica, peço encarecidamente que se escolha outra coisa. Na verdade, estou desde a manhã com praticamente uma lata de atum e duas saquetas de belgas no estômago e apetecia-me comer algo mais. Mas não. O movimento pasquitanês cresce. Alguém chega ao ponto de me dizer que eu gosto de paquistanês, não sei o que digo. O que é fantástico, principalmente quando me tentam explicar que eu não sei o que o meu corpo me diz. é daquelas coisas que dá gosto ouvir e que gera, nos meus olhos, visões de ver aquela pessoas atirada às lavas do Krakatoa, depois de ter sido atropelada por um cortejo de Carnaval no Rio, logo a seguir a uma sessão de sodomia com as colunas do Partenon. Há ali um momento em que a minha paciência está naquele ponto, que alguns poucos conhecem, uma coisa muito parecida com a transformação de Super Guerreiro, excepto que não ficou louro. Simplesmente perco a total noção de decoro e começo a destruir verbalmente gente culpada e gente inocente. No entanto, faço um esforço e imagino na cara da pessoa portadora de tamanha idiotice uma bola de praia cheia na qual búfalos urinam alegremente, para logo de seguida abelhas virem picar com galhardia. A imagem sossega-me, uma calma quase budista preenche-me. Sinto.me revestido de ecumenismo e como um cordeiro sacrificial aceito que, para que se acalme um grupo que está lentamente a entrar em ebulição, eu me sujeite às agruras da fome. Sinto-me quase um Cristo, barbas visíveis, o sofrimento de toda a Humanidade sob os meus ombros, justificando assim as dores que regularmente sinto nas costas. Venha a nós o vosso Islamabad, as vossas cabras e borregos, o vosso arroz em caril com passas.


Há uma significativa comunidade paquistanesa em Tashkurgan. A fronteira com o seu país natal é já ali e quando atravessam para a China, provavelmente em busca de uma vida economicamente mais satisfatória, esta é a primeira cidade que encontram. Por aqui ficam, para não se afastarem muito dos seus e também porque podem ajudar outros conterrâneos. O "Jingdu" é um dos restaurantes mais cotados da cidade, ainda que isso por si queira dizer pevides. É um espaço pequenino, que me lembrou muito, em tamanho e ambiente, o "José Manuel dos Ossos", um tasco aqui de Coimbra onde se pode meter comida caseira ao bucho a preços apreciáveis. Tem quatro meses e chega. Este também é assim. Com algum jeito e engenho, cabemos todos e ainda sobra espaço para alguns clientes. Estes olham-nos com perplexidade, refugiando-se ocasionalmente nas profundezas da wifi. Escolhemos quatro ou cinco pratos para distribuir entre nós. Há pão na mesa, o que me agrada e salva. Lá fora, o frio irrompeu e uma noite escuríssima, acentuada pela pálida iluminação artificial da cidade, dão ao exterior um ar cadavérico de filme de terror. Enquanto petisco o que existe e o que o meu estômago tolera. penso na vida destas pessoas, isoladas como poucas, longe de tudo. Imagino-as a sair à noite. Uma daquelas deprimentes desolações de isolamento. Recordo-me de como já vivi aquilo noutros espaços. Lembro-me de ter passado um dia inteiro em Sandur sem vivalma que dissesse presente. E agora, enquanto escrevo isto, é inevitável reflectir nesta minha fama de intrépido habitante dos retiros, daqueles espaços onde só existe espaço e não gente. Se o meu gosto por eles é assim tão real, se filtra um certo asco que posso ter a pessoas no geral. As fotografias que tirei deste dia, na sua maioria, são de paisagens sem mão para dar. Mas regresso ao arroz com caril que comi no Jingdu e nesse momento, acho que só pensava em dormir. Um velhote entra e instala-se a festa. Abraça-se efusivamente ao dono do restaurante, estão ali uns segundos, quase que choram. Mais tarde, o senhor explica-nos que é um amigo do Paquistão, veio passar uns dias à China e lembra-o de casa. São amigos há décadas, mas desde que trabalha na China que não o viu. De súbito, tenho saudades de Portugal e penso em lugares, em pessoas. Penso em quem é minha casa, mas não abre a porta.

O único hotel decente nesta terra é o Crown Inn. Por entre a escuridão, desaguamos à sua entrada. Surpresa total: um grupo de chineses tajiques recebe-nos com calor, envergando faixas enormes com um "Welcome to Tashkurgan, people from Portugal" (confesso que não me recordo de tudo, mas era algo assim). Duas patuscas moças esticam uma bandeira de Portugal, que acredito bem que tenha pagodes e seja dos chineses, fingindo um patriotismo luso que só se encontra em jogadores de selecções desportivas. Inusitado e inesperado, é uma surpresa que sabe melhor do que o paquistanês e que compensa a falta de comida. De como até mesmo nas profundidades da longitude pode haver o crepitar do acolhimento, de como não estar em casa não tem de significar estar deslocado. Nestes desconhecidos, encontramos algo de parecido com conforto. Até torna a tarefa de tirar as malas do carro muito menos tão agradável e a noite menos fria. Não tão menos fria como o decote daquela moça que julgava que tinha ido ao Irão, mas ainda assim, não posso desvalorizar o que tenho em detrimento daquilo que me falta.