quinta-feira, outubro 25, 2018

Perugrinação 7: Entregue aos bichos


Se têm a minha idade ou próxima, recordam-se de "A arca de Noé", um enternecedor programa das manhãs de fim de semana onde éramos convidados a fazer amigos entre os animais. Ninguém pode negar que havia ali uma magia qualquer, que fazia com que apresentadores tão díspares quanto Carlos Alberto Moniz, Fialho Gouveia e Ana do Carmo pudessem ter encabeçado as várias temporadas sem que nenhum parecesse fora do seu elemento. Talvez fosse da garotada, mas sempre senti que tal se devia aos bichos. Peludos, pequenos, assanhados ou até deitados no seu canto... A fauna vasta com que eu, como criança, era presenteado todas as semanas abriu a minha curiosidade e empatia para o mundo animal. Como qualquer bom programa de televisão deve fazer, educou; e ficou-me sempre pendurada na privação a ausência de um animal de estimação. Apareceram uns comigo já adulto, mas nunca é bem a mesma coisa. Do que os meus pais contam, fui uma vez ao Zoo de Lisboa, muito novo, e as poucas vezes que lá voltei convenceram-me de que não é assim que se vêem animais. Na nossa antropologia, quanto mais nos afastámos da nossa natureza original, para segurança, maior surgiu a necessidade de trazer a selva até nós, seres urbanos, ao invés de habitarmos entre o indomável. "A arca de Noé" deve ter batido nessa savana profunda da minha mente que ainda julga crescer em África; e enquanto cresço, cresce também em mim a ideia de que os animais não pertencem em jaulas ou até com liberdade cortada enquanto nos servem de apoio psicológico e consolo de solidão. Devem ser livres. Mas os humanos, e muita gente não acorda para esta realidade, estão condenados ao castigo de dominar a Natureza para daí retirarem o conforto que os impede de regressar à selvajaria ou de forma tão simples abraçar bichos, tê-los consigo. Não gosto de zoológicos; abomino circos; acho parques de diversão marinha uma das piores coisas que criámos como espécie. Quando cheguei ao molhe principal de Paracas, para me enfiar num barco rumo à Reserva Natural das Islas Ballestas, queria descobrir que ser voyeur indesejado também iria contra a minha moral.

Pequena introdução: as Islas Ballestas são um pequeno arquipélago situado ao largo de Pisco. Ganharam a alcunha de "Galápagos dos pobres", porque também aqui se concentra uma riqueza incrível de vida animal, que vai desde pinguins e leões marinhos até golfinhos e pelicanos. Devido a isto e à sensibilidade do habitat, foram declaradas reserva protegida pelo governo peruano. Tal significa que não podemos nem caminhar sobre elas, nem pensar minimamente em nadar nas suas águas. Estamos prontos para partir às oito da manhã e já uma multidão aguarda o seu lugar numa das várias lanchas rápidas que fazem a travessia de meia hora desde Paracas até ao arquipélago. O céu cinzento é cimento de nuvens que estão para ficar, mas não há frio. Quando me passam um colete de salvação tão laranja que quase me julgo Dennis Bergkamp no seu auge futebolístico, coloco-o e penso no que aconteceria se caísse da embarcação. As águas negras, escuras, quase nocturnas deste Pacífico mastodonte fazem-me criar que não mais viria à tona. Instalo-me na minha cadeira e de forma instintiva, enrolo uma corda no meu antebraço. Já andei várias vezes de barco, mas não me apetece arriscar. O meu maior medo, na verdade, é que a relação precária que mantenho há tantos anos com o meu estômago volte para me assombrar. Mas tal não acontecerá.
Hoje, pelo menos. Voltaremos a isso mais tarde.


O passeio começa. A saída lenta, morrinha, faz-se por entre as várias cascas de noz que se desculpam como barcos de pescadores ancoradas na baía de Paracas. Quase todos velhos, nenhum cinzentão como o céu. Alguns nomes são clássicos ("Santa Maria"), outros trágicos ("La llorona", que não sei mesmo se tem a ver com o famoso mito da assombração lacrimejante da América Central) ou simplesmente épicos ("La falsa virgen", numa declaração de intenções). Ninguém está a bordo, parece-me, embora de quando em vez se ouça o ranger das cordas, o estalar da madeira pressionada pelo salitre. No topo de alguns mastros, corvos e pelicanos esperam os mestres na saída para o mar, ou agourando ainda mais a vida dura de pescadores. Nada que preocupe o meu guia, que vai lenta e metodicamente contando a história de Paracas e das ilhas. A voz ganha uma outra vida quando nos cruzamos com o enigma maior que é "O candelabro". Já o mencionei na crónica anterior. É um geóglifo, portanto um desenho  feito em matéria rochosa, tão declarado e evidente que não pode ser coincidência. 180 metros de comprimento, 2500 anos de idade. Ninguém sabe quem o fez ou para que servia. A comparação mais evidente é com os rascunhos de Nazca, mas tal civilização habitou centenas de quilómetros mais a sul. Estampado numa duna que enfrenta o mar, quer saudar marinheiros, ninguém mais. Nunca foi apagado pelo vento, pela chuva ou pelo tempo: o seu poder está no mistério e na sugestão. Deve ter sido difícil fazer "O candelabro" nesta zona exposta aos elementos. Para mais, um propósito estava definido por quem o fez - sabemos que alinha pela constelação do Cruzeiro do Sul, como tantas outras construções antigas com uma clara intenção astronómica. No entanto, o local onde se encontra numa teve qualquer importância. Não é ponto de partida ou chegada para o que seja. É deserto. Onde se instalou uma desenho de iluminação que nem por isso traz mais luz sobre este assunto.


O céu começa a cobrir-se de dezenas de aves. Estamos a chegar e um arco de rocha cumprimenta-nos, agarrado a um enorme rochedo onde descansam pássaros. Apesar de me sentir desconfortável por este papel de turista entre câmaras que se erguem na sua intrusão, é impressionante a quantidade de animais que aqui se encontram. Onde é possível que algum se instale, a rocha some. As lanchas circulam lentamente em redor das ilhas e podemos observar que a maior parte das espécies está na hora da sesta. São exércitos parados, esperando ordens. Aqui e ali, guardo momentos, como um desorientado pinguim que caminha tenuemente numa falésia, quase caindo quase voando. Está isolado - os seus colegas encontram-se mais acima, protegidos. Pertencem a uma das mais raras espécies, o pinguim de Humboldt. Como o barco não está tapado, parece um safari e nem de propósito surgem os leões marinhos, refastelados nos cantos possíveis. Passamos muito perto de alguns, em rochas, bocejando, abrançando o princípio da inactividade. A semelhança com salsichas cinzentas é admirável e apenas os bigodes e um focinho quase Chapliniano impedem a confusão. Não mostram medo, talvez alguma indiferença perante os nossos olhos. Cada movimento seu causa um enorme frenesim entre os turistas que me acompanham. Alguns seguram máquina e telemóvel em simultâneo, numa turba feroz de registos. Seja para redes sociais, seja simplesmente para reforçar a sua presença no momento. De qualquer forma, os animais voltam ser usados para nos trazer de volta à vida e no prolongamento do nossos conforto preguiçoso. Talvez tenhamos vindo até estes, mas ainda assim não consigo sentir que, de alguma forma, continuam a ser nossos prisioneiros.


Vejo um guindaste partindo do topo de uma faléssia e logo de seguida, um aglomerado de casebres brancos, cobertos de excrementos voadores. No seu prolongamento, um cais de madeira suspenso, um milagre que o tempo ainda não derrubou na sepultura marinha. Há algumas décadas, estas ilhas mostravam outro tipo de riqueza ao mundo, ainda que também tivesse origem animal. Mineiros chegavam a este cais dispostos a extrair o guano escondido nas cavernas interiores, caca das várias espécies de morcegos aqui residentes. Pelos seus altos níveis de nitrogénio, era um fertilizante muito procurado, inclusivé na Europa. Ainda hoje se dá essa recolha, embora já não sejam necessárias estas infra-estruturas; para além disso, é uma actividade extremamente regulada, de forma a não perturbar estas espécies. Tal tarefa é deixada aos turistas... Os bichos, no entanto, não se deixam incomodar. Ocuparam estes restos humanos como seus e podemos vê-los descontraídamente a balouçar nas podres cordas ou observando-nos, num reflexo devolvido, pousados nas decrépitas tábuas do cais. Tudo à nossa volta produz estímulo e em redor dos barcos, leões marinhos mostram a cabeça, mergulhando e ressurgindo aos seus desejos. Antes que os caros se afastem em definitivo, uma visão bem fofa - num recanto de uma caverna, três pinguins bébés felpudos mexem-se em agitação, parecem esperar comida. São brancos com salpicos negros, imitam pássaros verticias com penas que cedo cairão. Não se despedem, nem precisam. Sinto-me um intruso, ainda que em meu redor a mania dos flashes. cresça. Percebo que o meu turismo é outro, um onde estou sozinho com o resto do mundo. Ver pinguins e outros mamíferos que só tive em frente no Oceanário é bom, mas não sei se um pouco de mim não morre com isso. Pior: se um pouco de mim se deveria sentir mais vivo com isso e não consegue.

Já em terra, ainda ouço palavras como cormoran e boobies, uma delas mais divertida do que outra. Dizem respeito a pássaros. Todos são amantes da zoologia agora O autocarro da Peru Hop espera-nos com destino a Huacachina. Antes de entrar, passo por uma casa com um gigantesco cartaz autárquico. Apoia sem hesitações Lorenzo, um homem com uma visão, uma promessa: vai trazer para Paracas uma planta que tranforma água salgada em doce e resolver assim os crónicos problemas de abastecimento líquido da região. De merda Paracas nunca teve falta, oh ironia. Seria estranho que uma vila tão dependente dos animais fosse finalmente salva por plantas. Assim como assim, aqui nunca transmitiram "A arca de Noé". Mas aposto que algures nos anos 80, passou uma versão peruana do Capitão Planeta. 

quinta-feira, outubro 18, 2018

Perugrinação 6: As várias faces de Paracas


A sul de Lima, o deserto estende-se como quer. Terras áridas onde chove pouco no Inverno e no Verão pouco toca deixaram-se secar e cobrir de areia. É esta a paisagem que nos acompanha pela Pan-Americana Sur até chegarmos a Pisco, um amontoado de casas que é cidadezinha. Desviando-nos da estrada, uma longa recta aproxima-nos de um companheiro que nos sossegou ao longo de duzentos e tal quilómetros: o Oceano Pacífico. Encontramo-lo a guardar uma pequena vilazinha que pareceu brotar do meio da areia apenas e só para servir de justificação ao encontro com o mar. Paracas. Não é muito difícil descrevê-la para quem já passou férias numa localidade de veraneio. Há toda uma aparência de uso, mas a impressão mais do que certa de que só se dá ao luxo de ter vida durante o Verão. Paracas é praia e deserto, basicamente, embora só o segundo se aproveite. Existem areais junto ao mar, mas são pouco extensos e sujos. A vila é de pescadores, acima de tudo. Quem quiser aproveitar os dias balneares, tem outras localizações mais favoráveis a sul; mas aqui, o que existe é uma longa avenida com casas nas laterais.

É dominada por uma imagem familiar de trezentas mil t-shirts, uma figura esguia com canos nas costas que sopra numa flauta que germina da sua face. A sua imagem é replicada em banners e tabuletas e toldos de lona, representando negócios tão díspares como diversão nocturna ou artesanato. O mais estranho, penso, é que este é Kokopelli, um deus da fertilidade comum nas planícies norte-americanas, bem longínquas do deserto peruano. Ainda que alguns mitos Hopi nos digam que é ele quem se esconde naquela sombra que todos podemos ver na Lua (a versão ocidental identifica essa mesma sombra como o cavaleiro São Jorge, o que se só mostra o quanto as bases de valores podem ser radicalmente diferentes em todo o mundo), e que daí salta para a Terra de forma a emprenhar meninas jovens mais descuidadas, não sei o que raio o atraiu para abandonar a base permanente de David Bowie e trocá-la por Paracas. Mas os deuses têm os seus motivos, quem sou eu para questioná-los? Um deus da fertilidade no deserto: se temos fascistas em democracias, não é por aqui que o mundo se torna estranho.


Depois de deixarmos a bagagem no Los Frayles, o objectivo é almoçar. Como a imaginação não abunda, o restaurante escolhido tem o mesmo nome da localidade. O positivo é que nos oferece uma vista bem agradável sobre a marina. Brilha o sol que se reflecte nas águas que parecem prata e sob as quais as embarcações baloiçam. Por momentos, se fecharmos os olhos, até é Verão. Os pratos de peixe são recomendados numa zona piscatória, mas acabo por comer um bitoque apenas e só porque adoro o nome com que é apresentado no menu: bistec à la Pobre. Apropriado. Com tudo, estamos quase a meio da tarde quando nos levantamos. Sobra tempo para caminhar no passeio pedonal junto ao mar. Vejo os alertas de tsunami que aqui se mostram recorrentes e olhando a extensão da Baía de Paracas, que tornou esta zona apetecível a quem vive do mar, imagino que deva preocupar quem ali vive. O turismo é a principal actividade e inventa-se de tudo um pouco para esmifrar a vaquinha turística das suas gotas de ouro mais exíguas. Há um homem de meia idade, boné de lado, sentado num muro, cigarrando descontraídamente. Sempre que vê um grupo de turistas de máquina fotográfica ao pescoço, puxa de um saco do bolso. Os pelicanos peruanos são comuns nesta costa e ele sabe-o bem. Do saco tira pedaços de peixe e lança aos pássaros, deles sacando poses para deliciar os fotógrafos amadores. Claro que, como se fosse um arrumador ornitológico, vem logo depois de mão estendida para pedir uns cobres como se desempenhasse um fundamental dever para o viajante e lhe devessemos mostrar mais gratidão. Quando alguém não o faz, resmunga-se um rumor estranho e fico a pensar se lá como cá se riscam cromados e se à falta de capots é a pele quem paga a ousadia. Não lhe pergunto, até porque não me aproveito dos seus serviços. Já fotografei destes bichos em Lima e não sou fã do seu último álbum.


O sol vai descendo. O final de tarde é preenchido pelo pôr do sol, numa cenário de múltiplos pontões que saindo da praia, fazem um contraste incrível na câmara. Gaivotas e outros pássaros sentem que o dia finda e aproveitam uma última vez para estender as suas penas ao beijo do calor. Paracas é conhecida também pela sua diversidade de vida e ecossistemas. Ao seu largo localiza-se a Reserva Natural da Ballestas, que visitaremos amanhã, e a quantidade de barcos aqui existente atesta a diversidade de peixe nas suas águas. No entanto, esta zona revela ser de incrível ironia, pois esta abundância biológica convive com outra Reserva Natural, mas de deserto. Só a visitaremos amanhã, mas Kokopelli sai da Lua e faz-nos avançar no tempo. O mar convive com a planície desértica num cenário estranho, surreal. Ao seu largo passa a corrente marinha de Humboldt, considerada a mais produtiva do planeta, aumentando ainda mais a ironia. A partir de vários miradouros no deserto, observamos não só o oceano, mas também várias estruturas rochosas que se tornaram postais da região. Uma que já não veremos intacta é "la Catedral", um arco gigante de arenito que no seu auge  apresentava também algumas espirais elevadas como torres de uma igreja gótica. Infelizmente, um terramoto em 2007 danificou gravemente a estrutura e já só observamos o que sobra. A Natureza dá e a Natureza tira. Vale ainda assim a pena pela oportunidade rara de fotografar no mesmo dia extensões de areia na costa e no interior, para além de variadas espécias animais. Apesar da proximidade do mar, as praias não são banháveis. Isto inclui a fotografia mais conhecida de Paracas, a chamada Playa Roja. É um fenómeno à parte. Depois de nos habituarmos aos tons amarelados do deserto, eis que a nossa vista é agredida por um rasgão vermelho que o mar se ocupa de tapar às prestações. Não é um vermelho vivo, mas ocre, duro, resiliente. Não brilha, mas estampa-se na nossa memória. Um vermelho rico. O cinzento da manhã em que a visito faz ressaltar ainda mais o encarnado. Guardam-na um promontório rochoso longo e as dunas. Se não posso calcá-la, deito-me então e fotografo. À minha volta, dezenas de turistas fazem poses, tiram selfies, essa coisa toda. Eu busco areia. É por isso que sou esquisito e estou solteiro.


Como quase tudo o que rodeia as civlizações peruanas, também os Paracas que aqui viveram oferecem mistérios. O mais conhecido vem de achados arqueológicos que nos mostram que gostavam de alongar os crânios por motivos desconhecidos.... embora o clube de fãs de Erich Von Daniken, de quem vos falei nas primeiras crónicas, grite sempre que esta é a prova inequívoca de extraterrestres entre nós. Como em tudo o que é folclore, o principal mistério nem sequer se debate. O espaço da Reserva Natural tem um micro-clima muito particular que apenas encontra paralelo no deserto do Atacama. Basicamente, não chove. O vento e a falta de humidade tornam isto óbvio e a pergunta que se coloca é a da razão que levou uma civilização não só a instalar-se como a florescer num espaço assim. Deixa-nos a coçar a cabeça; e não estamos a falar simplesmente de uma excursão de pescadores que se afeiçoaram ao pescado da região. A cultura Paracas é a antecessora directa da civilização Nazca, que deixou a sua marca no solo não muito longe daqui, mais a Sul. Um voo de drone feito este ano, aliás, descobriu que por toda a extensão deste deserto estão desenhados geóglifos que atravessam o solo arenoso. Alguns são simples linhas geométricas, outros parecem representar figuras completamente diferentes das de Nazca. Vêm juntar-se ao mais conhecido, o famoso "El candelabro", de que falarei para a semana. A ser verdade, os Paracas deviam ter um conhecimento de engenharia bastante razoável e sabemos que dominavam técnicas de irrigação que deviam ser admiráveis, até porque ao contrário de outras civilizações que floresceram junto aos grandes rios, não há qualquer curso aquático actualmente na zona. Um mistério em cima do outro.


Naquele fim de tarde solarengo, na praia de Paracas, nada disto me preocupa ou sequer inquieta. Sento-me junto ao mar, programo a máquina, fotografo e o silêncio da época baixa é bem vindo. Aqui não se passa nada e se calhar devia, vim de tão longe que aborrecem-me viagens de nulo: Mas enquanto o sol me beija em continuado deleite, meio que encolho os ombros e aproveito. No plano da viagem, estou-me a guardar principalmente para a segunda metade, ainda que a primeira inclua Nazca e um deserto. Mas os Andes chamam-me e em Paracas, não há montanhas. Só de ironias. Há também comida boa, pouco irónica, e o descarado convite à nossa carteira, de tantas maneiras que comprovam uma máxima da teoria das civilizações: povos agricultores/pescadores, se enriquecerem o suficiente, tornam-se comerciais. Paracas tem múltiplas faces e identidades. No fundo, talvez devamos agradecer a estes profissionais do viajante: são os guardiões de uma identidade permanente numa terra de caleidoscópio.

quinta-feira, outubro 11, 2018

Perugrinação 5: Não se tiram férias da realidade


São seis e meia da manhã. Estou fechado dentro de um autocarro que será o meu transporte nos próximos dias até chegar a Cusco. As estruturas de transportes públicos no Peru são quase inexistentes, os transportes privados caríssimos. Os próximos dias incluem uma viagem para sul e a solução mais prática é embarcar num autocarro de uma companhia turística chamada Peru Hop. Não é particularmente confortável, mas já viajei pior, como sabe quem leu a saga do Quirguistão. Ir de um ponto para outro é sempre a parte mais chata de quaquer jornada. Se escrevesse um livro de viagens (e vários entre vós pedem-me que o façam, bem sei) com um capítulo "Lições que aprendi à volta do mundo", este seria um dos mandamentos. Por muito que a paisagem apele, nunca estamos completamente em nós para apreciá-la. A estrada pode ser libertadora, mas quando a obrigação de chegar a um ponto se instala, mais vale chamá-la de morfina. Olhei na noite anterior o mapa - e podem fazer esse exercício agora. De Peru a Cusco cansam-se 1310 quilómetros na rota mais directa; mas visto que esta passa por estradas que fazem tremer de medo lobisomens e vampiros, tal é o seu grau de perigo, a opção faz-se por dar a volta à cordilheira andina, estendendo o périplo quase 1700 unidades máximas de sistema métrico de distância. O sistema da Peru Hop é simples: vamos parando em vários pontos pelo caminho, sais e entras quando quiseres desde que avises. Nós inscrevemo-nos para a viagem completa, embora haja pontos a visitar. É um supositório às prestações. Na mochila tenho água e livros. São analgésicos, mas pouco mais.

Lima não acorda, acho, porque implicaria adormecer. A esta hora, o trânsito ferve e as pessoas não estão em casa, quanto mais na cama. Em vários partes, vejo homens sentados a ler o jornal. Então, pensam vocês, os quisoques já abriram? Não é necessário: apesar do tamanho gigantone desta metrópole, ainda há rapazinhos a distribuir jornais porta a porta, arrastando as suas bicicletas. Gabo-lhes o esforço, nem quero imaginar a hora do despertar. Aqui estou, de olhos abertos, pouco, mas por diversão e uma vez por festa. Estes garotos, todas as madrugadas, saltam da cama e lá vão pelas ruas. A saída da cidade demora uma hora e tal e espera-me a mais demolidora visão que tive de Lima até agora e não envolve um estupendo monumento ou o mar infinito. Como uma muralha que ninguém pediu, quase 180º em meu redor, estende-se uma enorme favela que vai rodeando a cidade quanto mais nos afastamos do seu centro. A mudança é brusca, mas notória, representada no mundo físico por um muro que separa a área urbanizada destas frágeis, ténues casas. Aqui no Peru existe o eufemismo de "povoados jovens". São favelas, ponto, barracos que se espraiam pelos morros castanhos, chocando de frente com a linha que define o aceitável do dever de ignorância. Aqui habitam e fingem que vivem quatro milhões de habitantes. São três Lisboa e picos. À barreira, chamam "Muro da Vergonha", e entende-se porquê. Ela é real e causa um efeito profundo: não há passagem, nem sequer pedestre, que permita atravessá-la. Não existem portas ou aberturas, vê-se arame farpado no topo em toda a extensão, torres com mais de dez metros onde seguranças vigiam os habitantes. São panópticos da miséria social. Dez quilómetros de um esforço concertado para separar os peruanos de Lima em tons de sol - sendo aqui não falo do astro, mas da moeda. 


O complexo chama-se "Pamplona Alta", um aglomerados de paredes coloridas com telhados a fingir que tapam. As moradias comuns de Pamplona não tem água canalizada, ou sequer casa de banho, que é um buraco no exterior. Há uma ordem bem definida: quanto mais alto se estiver, mais precária é a sua situação. Os últimos a chegar ficam com os piroes lugares - aqui ninguém paga mais imposto pela vista, mas é taxado de outras maneiras. As ruas foram esculpidas na pedra, a segurança é garantida fechando as ruas com cancelas, com o principal objectivo de separar os ricos dos pobres. Pintada num muro, consigo entreler uma mensagem em espanhol: "Não se aceitam drogados, ladrões, membros de gangues, traficantes, etc. Sob sanção comunitária". Até a lei é local, como se Pamplona Alta estivesse removida da restante capital. Um estado dentro de um estado, um quintal que foi esquecido e não deve ser lembrado sob pena de gangrena. Numa ironia que de delícia só tem o fel, do lado oposto do Muro da Vergonha, são visíveis opulentas mansões. Do que leio mais tarde, o preço médio ronda os quatro milhões e meio de dólares. Os moradores e compradores são invariavelmente brancos. Em Pamplona, vivem os índios, os negros. O abismo da pele é mais claro do que a tez dos descendentes de europeus. Entre o muro e a estrada, há visões surreais, como se o realismo mágico da América do Sul não fosse uma criação literária, mas sim uma apropriação de Borges: pela janela, vejo um rapaz que não tem mais de 14 anos, incentivado pelos amigos em exercício. Faz abdominais com um bloco de cimento em cima do peito, bufa e esforça-se, aplaudem-nos e ele continua. Podia parar, mas não o faz. O bloco continua a oprimi-lo, mas o rapaz insiste na mesma, vai levando a água do suor ao moinho do esforço. Não estava, nem trava. Segue assim mesmo.

Bem perto, as ruínas de Pachamac aparecem subitamente, saídas de trás de um triste monte de areia. Estão degradas como as barracas da favela. Quem visitar, lê a história de Pachamac, uma cidade pré-inca que durante quatrocentos anos se aproximou de uma Lima sem forma e solidez e que só os coloniais espanhóis criaram. Era um local santo  amando divindades que comunicavam o futuro, um oráculo para todos aqueles que na zona costeira temiam os chiliques do subsolo, terramotos de sobressalto. Percorriam os velhos trilhos, as estradas de dor em pedra, dias e dias que hoje fazemos horas apenas para perguntar a estátuas impassíveis a razão de nem os seus próprios pés terem o merecido descanso da horizontalidade. Hoje respondemos aos terramotos com sismógrafos; na Antiguidade, os Lima e os Wilmac apenas agarravam e brandiam a súplica. Antigos e contemporâneos só têm impotência para oferecer, mas a nossa desenha-se em grafismos de delirium tremens. Pachamac significa por isso "alma da terra" ou do mundo. Era uma divindade inquieta. Os Incas continuaram o seu culto e mantinham a crença de que um movimento da sua cabeça cuspiria sismos. Por isso mesmo não se atreviam a olhá-lo nos olhos e os sacerdotes do seu templo aí entravam de costas. O espaço ainda por lá está. Esta zona religiosa era também um catálogo de acompanhantes para os imperadores incas. Para aqui se levavam as mulheres que compunham o, digamos, ginásio de diversão sexual da figura maior desta civilização. O nome dado ao edifício onde elas habitavam, e não estou a gozar, era Mamacona. Entendam daqui o que quiserem. Para impedi-las de fugir, havia numerosos guardas, cuja responsabilidade e diligência se recompensavam com a castração. Numa história por demais familiar no país, Pizarro ouviu falar da cidade. Enviou um exército para pilhá-la e destruí-la. Pachamac deve ter abanado a cabeça de frustração, não consta que o Pacífico tenha tremido ainda assim.


O contínuo rumo a Sul afasta-nos dos prédios e Pamplona Alta lança a sua sombra numa parte do país que se cobre de penúria. Pucusana, Sunampe, Cerro Azul ou Bujama Alta fazem de conta que se pode lá habitar. mas as pessoas encolhem os ombros, ignoram os montes de lixo constantes e as ruas não alcatroadas, os animais companheiros fiéis do indizível e tijolos amontoados de ilusão de casa e levam a sua vida. Volta e meia, procuram a companhia dos cartazes eleitorais. Todos prometem mundos e fundos. Os problemas do país medem-se pelas promessas eleitorais: em Lima, a grande preocupação era o o barulho das buzinas no trânsito: aqui, garante-se que o próximo ciclo eleitoral trará electricidade e talvez alcatrão. O Peru é uma lâmina: às vezes alivia, noutras entra fundo na carne. Aqui, não sei sequer se há carne para cortar. Não consigo esquecer isto enquanto a camioneta avança. Numa ocasião, temos de contornar dez quilómetros adicionais, pois uma ponte titubeante parece um gráfico demográfico do século XIV europeu, o que impede a natural progressão do trânsito automóvel. Este desvio tem um destino, uma fazenda colonial chamada San Jose. Uma pausa para visita guiada à era da escravatura, só numa de limpar o palato. Uma guia peruana muito expedita e apaixonada pela história do espaço explica-nos coisas: que o primeiro dono se chamava Salazar, o que provoca olhares cúmplices entre os Portugueses; que aqui se produziram açúcar, algodão e mel; que foi passando de mãos graças a casamentos arranjados; que se tornou no foco de vinganças durante a passagem para a independência, como símbolo fatal do poder espanhol nesta província de Ica; e que depois da Reforma Agrária de 1960, o latifúndio foi dividido e a sua última dona, Manuela Eguren, abandonou a Hacienda com os seus doze filhos. Uma delas ainda hoje detém esta casa e preservou-a como um museu. Conservou-lhe a memória do esplendor e acima de tudo, da barbárie. Como qualquer sede de plantação colonial, o trabalho era escravo. A visita colide-nos com essa realidade, fazendo-nos experienciar a tortura e a arbitrariedade da dor. O quanto um corpo pode estar à mercê da linguagem agressiva da autoridade sem limite. Nos subterrâneos da Hacienda, há quilómetros de túneis ligando câmaras que serviam de habitação a estes escravos, todos africanos, pálidos num negrume que os engolia no final de cada estertor diário. Apenas com as lanternas dos telemóveis, é fácil perdermo-nos aqui, e acontecia muitas vezes a quem quisesse fugir, morrendo desorientado de sede e fome. Os túneis obrigam-me a andar corcunda e são eles próprios um castigo. A vida do subjugado era simples: um dia de confronto com a terra e o chicote; uma noite de sono embebida do cheiro a evacuações corporais e roçada em corpos semi-mortos. Não admira que no século XVIII, uma revolta definitiva tenha acontecido e os donos da Hacienda fossem decapitados e torturados nos mesmos intrumentos que durante décadas serviram para reforçar o poder colonial. Numa das Câmaras subterrâneas, deixo-me ficar para trás e abro a palma da mão no chão. Quase que sinto a música do sangue, o cheiro das lágrimas, tudo na ponta dos meus dedos. O ar pesa mais do que a consciência. É uma experiência estranha, ectoplásmica.


O tecido da América do Sol, sabe quem leu Galeano, é o da mulher constantemente violada, num ciclo do qual os seus filhos farão parte. A pobreza às portas de Lima e esta memória do horror num canto que se quer lembrado mas nem por isso, de tal forma que até as pontes se encolhem numa tentativa de deixá-lo como ilha da amnésia que ninguém pode pisar, são tão primos quanto as aves e os dinossauros, com a diferença de que os dinossauros se extinguiram. Este Peru de exploração vive, respira, tem sangue quente e viçoso. Nos últimos anos, tem havido uma tola discussão sobre a assunção de culpa da escravatura por parte de quem explorou, falam-se de indemnizações que são jogos de revisionismo históricos destinadas a armar demagogos políticos e desconhecendo que a crueldade não é retroactiva. Reduz tudo à Europa, quando a exploração do outro é um traço do Homem que vem desde a Mesopotâmia. A palavra "escravo" origina nos brancos eslavos levados pelos Vikings para a Àsia, numa trasladaçao populacional perfeitamente comparável à africana na época da Expansão Ultramarina. Os Europeus não criaram a escravatura, tornaram-na global, compreendendo umas das verdades imutáveis de qualquer paradigma civilizacional: para que uns estejam confortáveis, o desconforto de outros será máximo. Os negros que aqui morreram foram arrancados aos seus pelos seus, depois vendidos a estrangeiros para morrer num continente do qual nem uns nem outros eram originários. Pamplona Alta e a Hacienda San Jose são símbolos do outro lado deste hipnótico e paradoxo continente, que exige de nós o coração se queremos elevar a alma e perceber onde estamos. Um dos meus livros de viagem é a "História Universal da Infâmia", de Jorge Luís Borges. A infâmia pode ser universal; mas quando escrita por alguém da América do Sul, é menos um romance e mais um diário com pinta de metrónomo, tão implacável como a memória que permanece na acácia de 400 anos que ainda resiste na praça principal da Hacienda - e tão decrépita quanto esta.

quinta-feira, outubro 04, 2018

Perugrinação 4: Frutos do mar


Das mais fincadas recordações que tenho das minhas férias de Verão infantis é a chegada dos barcos de pesca à praia. Em Pedrógão, a localidade que sempre associo quando evocam a areia que se deixa beijar pelo mar, costa marítima onde parte de mim se fez, ainda se pratica a arte xávega: barcos de madeira coloridos aventuram-se pelo mar, perto da costa e largando redes com bóias berrantes, puxam-nas mais tarde para a orla do areal. Presas a carroças que animais, por norma bois, puxam pela pura força dos seus rijos músculos, as malhas arrastam-se pela areia, mergulham nesses fragmentos rochosos que reluzem ao sol, a força dos pescadores dando uma ajuda, a ânsia de ver o produto de uma manhã ou tarde de trabalho rijo. Por entre as pernas das pessoas, normalmente levado pela mão do meu pai, acontecia magia naquele acto, os pescadores haviam trazido para terra pedras de mar, brilhantes ainda saltando talvez pelo contacto com o calor. Eram peixes, miúdos e pouco graúdos, raptados ao seu elemento e definhando num bolha enorme que lhes roubava a respiração, por ironicamente ter em exagero aquilo que não conseguem filtrar. Depois de alguns segundos, aquelas luzes cintilantes estacam. A rede, fervilhante e quase viva, tornava-se apenas paisagem aos quadradinhos, como um pano de malha onde servem uma refeição ainda crua. Acho que foi pela memória do cardume capturado a estrebuchar que a pesca nunca me atraiu. Nem caça, mas isso é outra história. No entanto, sempre admirei a coragem de quem se lança ao mar e arrisca, acho que é dos braços de ferro mais cativantes e agrestes no nosso mundo, o Homem contra as ondas. Garrett conjura-o em "Viagens na minha terra", quando dá aos vareiros da Gafanha vitória na sua disputa contra os campinos ribatejanos que vergam touros; e em Lima, a nossa tarde começou precisamente no abrigo que os pescadores fizeram quando chegam do mar.

Na Playa dos los Pescadores, um pequeno porto recebe os barcos regressados da faina. Pequenos, alguns deles nem chegam ao tamanho de traineiras.  É um simples, curto telheiro pintado de azul. Nas colunas, desenhos estilizados de vários animais marinhos sorriem e recebem quem visita num "Bienvenidos" que não se consegue imaginar de uma criatura que vai acabar no prato de alguém. Bichos cruzam-se no caminho e também sentem no ar o fervilhar da comida que chega. Nas bancas de cimento, esperando o produto, facas são afiadas, aguardam o trabalho. A luz penetra pouco no espaço, como se este fosse o fundo do mesmo Oceano Pacífico negro que contemplamos. Ao saírmos da protecção do telheiro, um grupo mais numeroso que o nosso, de pelicanos, vigia a entrada. Desafiam-nos a não nos aproximar. Eu por mim nem faço questão, mas estas aves, com o seu bico bizarro e pouco frequentes na costa marítima portuguesa, atraem a minha máquina. É entre estas fotografias que vemos as embarcaçoes chegando e as pessoas, num magote compacto que aguardava, voltam a tornar-se indivíduos, mexendo de um lado para o outro. No Muelle de Chorrillos, a bonança vai dar lugar um tipo de tempestade muito diferente da provocada pelo vento. Temos sorte pois chegamos mesmo na altura em que o movimento vai começar.


Mal os barcos encostam, caixas coradas passam de mão em mão e empilham-se. Poucos homens por embarcação, vi cinco no máximo e todos eles devem ter saído daqui às seis da manhã, por aí. Vêm cansados, mas sabem que o trabalho está a meio. O pescado deve ser retirado para terra firme, de seguida levado para o telheiro que abandonámos e lá será vendido a restaurantes principalmente, algumas merceeiros também. Desta pequena estrutura, onde os desenhos e a cor não disfarçam alguma velhice deteriorada, depende toda a gastronomia de peixe desta gigante metrópole. No entanto, bem cuidada e limpa, a imagem de São Pedro, padroeiro dos pescadores limianos, vigia tudo, protege os seus pupilos e talvez perdoe aos turistas a atrapalhação que causam nos trabalhos. Durante bastante tempo, a zona foi vista como insegura; mas os pescadores encontraram um aliado inesperado no Clube de Regatas com quem partilham o Molhe. A vinda de turistas é o resultado de um projecto conjunto que pretende reabilitar a zona e atrair curiosos que queiram assistir ao vivo a pesca artesanal. Como berços que perderam as pernas, pequenos barcos imóveis balançam sobre o mar em redor do todo o pequeno porto. Os pelicanos voam e roubam pedaços de peixe que vai ficando nas suas cobertas. Ninguém os disputa, são uma espécie territorial e capaz de arrancar a mão a alguém. Felizmente, são a única coisa que me deixa aqui temerário.

Abandonamos a costa e voltamos a subir à capital. O rumo é Barranco, conhecido como o bairro dos artistas. Numa nova ironia, a visita começa naquilo que deve ser o oposto do espírito desta comuna no centro de Lima, um Starbucks. Apesar disto, estamos naquela que é considerada a zona mais cool da cidade. Zona boémia e onde moram muitas almas que se dedicam às artes, age como a reflexão física dessa intenção e desse ideal. Aqui se localizam os principais museus da capital e há uma diferença arquitectónica notória quando caminhamos nas suas ruas. As casas coloniais do século XIX estão desassistidas, mas o estilo continua presente. Cores abafadas, verdes, azuis e brancos. O abandono deve-se às absurdas exigências que a lei peruana faz a todoas aqueles que queiram remodelar e cuidar de umas destas habitações históricas. Tal faz disparar os encargos económicos de quem se lance na aventura e como consequência, boa parte está fechada ou exposta à ruína. Não é um estilo atractivo, mas sim discreto e como se amontoa num todo uniforme, fica na retina.


Atravessamos a ponte dos Suspiros, embora não estejamos em Veneza, e a intenção é perdermo-nos nas ruas de Barranco e descobrir o que afinal pode a arte valer a uma zona de degradação histórica. Numa desta mansões recuperadas, encontro um refúgio. Por uma porta iluminada, chama-me a atenção a imagem icónica do Dave de "2001 - A space odissey", noutro estilo. Ao seu lado, Walker White insiste que é ele quem bate à porta do perigo. Está claro que entro e me deixo fascinar. A loja é a Vernacula e guarda em várias soluções o cruzamento de cultura popular, desgin moderno, objectos de estilo e cultura peruana. É irresistível: música e televisão, cinema e pintura, cadernos, bases para copos, vestidos, pulseiras... Compro para mim mesmo um pequeno caderninho azul, onde na capa felpuda uma árvore negra vive para morrer. É uma imagem notável e notória que me leva a mão à carteira. Num pátio exterior, a música convida a sentar numa esplanada, mas não temos tempo. "Vamos embora, ainda temos Barranco por visitar" e vou directamente ao balcão com novas aquisições. Atrás de mim, um pai e uma filha sorriem e gracejam em redor de uma saca de gomas. Entendo o castelhano; "A mamã disse-te que só devias comer coisas saudáveis. Eu fico com isso", e a garotinha ri e afasta lentamente do pai o saco transparente com guloseimas. "São saudáveis, papá" e como que para comprovar, uma delas desaparece na sua boca, cujos dentes acariciam ao longe o pai com a felicidade que só crianças e coisas doces podem irradiar.

Um pouco mais à frente, aparecem os primeiros sinais de que foi dada carta branca à cor. Pinturas murais e alguns graffitis vão desde o vulgar cliché (artistas anunciando que o amor salvará o mundo, bocejo) até à magia entre dimensões de um surfista que saindo de uma onda encontra uma santa domando um dragão marino pela força da vontade. À direita, uma escada parece atravessar o bairro em longitude e chama a si o foco do trabalho artístico: cada degrau é um miradouro para estética visual - gatos dourados dançando perante um twist que mais ninguém escuta; um arbusto maternal segura a sua filha num globo de folhas castanhas; um músico e um burro escutando música defronte de uma telefonia; cabelos negros penteados por colibris das cores de uma caixa de lápis Caran d'Ache; um rapaz retira a sua face e revela um pardal no seu poleiro; a pintura em redor de um espelho onde somos contemplados pela nossa própria necessidade de observar.  Reparo também que nas paredes se encontram embutidos pequenos pedaços de mármore onde se inscrevem versos de poetas que aqui habitam ou habitaram. Alguns são involuntariamente cómicos, mas um ou outro corta junto à medula. "Si yo sola no me cicatrizo, quién me sanara", e lembro-me de mim, e lembro de ti também. "Es dificil hacer el amor, pero se aprende", na simplicidade de quem vê uma folha de papel e pensa que o mundo cabe naquele rectângulo alvo; "El horizon es un verso arrojado a tus pies", e invoco logo todas as paisagens que vi e vivi, todas as vezes que a linha do horizonte foi, é, será sempre um convite a sonhar, essa força que nos tira todos os dias do leito. Os degraus são de pedra, vulgares, mas percorrê-los, para quem se deixa levar, pode ser uma viagem bem mais distante do que Barranco em si. A noite vai caindo e lâmpadas de filamento iluminam-se no exterior, como se um arrailar se instalasse no bairro. Quando subimos para regressar à Avenida, e junto a uma pequena catedral, três músicos evocam Gardel em cordas de violino e violoncelo, "Por una cabeza" acompanhando o crepúsculo, o tango como a explosão de um sol, por vezes em ocaso, dentro de nós. Barranco, na sua cor e decadência, é o paradigma do bairro artístico de grande capital; mas ao imergirmos nas suas pedras e labirintos, somos recordados em constância do que a arte faz por nós, do que a expressão do indizível nos causa e no movimento gingão de Gardel, encontro um ponto em mim que sorri pela primeira vez.


O dia acaba pouco típico, jantando numa cadeia de fast food no centro comercial Larcomar. Apesar de tudo, Larcomar tem um miradouro que observa espectacularmente a mesma costa onde passámos a tarde, mas agora não é apenas o oceano a mostrar-se negro. A noite caiu em Lima, as luzes dos carros fazem da marginal uma avenida de pirilampos debaixo da iluminação torrada. Enquanto esperamos que nos atendam, o meu telemóvel apita. Mensagem do meu irmão. "A Beatriz nasceu" e durante uns segundos saio de Lima. Até agora, a Beatriz foi apenas uma ideia consubstanciada pela cúpula que a namorada do meu irmão trazia à laia de barriga. Agora é alguém. Um choro que chega ao mundo e se faz humano, dois braços, duas pernas e uma cabeça que mal despontam. A minha sobrinha. Devia ter nascido de hoje a três semanas. Não quis esperar, não sabe mesmo no que se veio meter. De imediato recordo a menina que com o pai gracejava acerca de doces. Não sou pai, não sei se eventualmente me darão essa oportunidade, mas imagino a Beatriz crescida e quero apresentar-lhe tantas coisas mais doces do que o açúcar, um mundo com tantos pequenos pormenores que quase ninguém vê, quero partilhar com ela o momento em que Darth Vader revela um dos grandes twists da História do Cinema; colocar-lhe Scully como modelo; dar-lhe a vontade de tornar a Natureza uma outra casa, e aqui tenho de parar e evitar que ela se torne noutro eu. O mundo não precisa mesmo disso. Mas estou no meu primeiro dia em Lima, a duas semanas de conhecê-la. A viagem ao Peru deixou de ser apenas um passeio turístico: como Ulisses numa outra encarnação, o meu percurso é também de regresso a uma pequenina Penelope, para quem serei apenas uma forma alta com pelo na cara, mas que em mim, já é uma parte melhor neste planeta. É arte e não precisa de tintas: só a configuração de um verso pequenino que já em mim escreve canetas em tom de poema.