sexta-feira, novembro 27, 2015

Colectâneas 2



Explica-me porque é que a tua cara é a razão pela qual eu desejo que o mundo continue a rodar em torno do seu eixo.

Já alguma vez reparaste como o sol tem vergonha de não providenciar tanta vida quanto tu?


Quando penso em ti, sabe-lo? Sente-lo? Criam-se tempestades eléctricas dentro do teu cérebro? Gostava de saber se o caminho que vai do meu coração ao teu te é perceptível, se quando a tua falta me faz pesar três toneladas mais, também te pesa e te dói, se nos teus dias olhas para a parte inferior do Facebook e choras um bocadinho sem deitar lágrimas porque o nome não está, tal como eu, se também te custa o final da tarde quando a minha voz não te chega e todos os outros dias em que eu me aninhava na tua mão e na tua bochecha e agora imagino-te assim encaixada em mim como quem sonha e vê tudo. Gostava, Mas ter o que se gosta é uma aventura bem diferente.


Vale o que vale. Sem ti, vale menos. Não vale de muito. Montes e vales entre a minha vontade e o teu céu da boca. Vale tudo, até, mas sem valer grande coisa. Não valeu, e mandamos isto tudo abaixo. Que dizes? Não me vale de muito o pedido, mas lá está: vale o que vale. Ainda assim, vales-me mesmo quando não vale, e quebro as regras, e na tua imagem, imagino o que a vida pode ser, quando a minha vale, mas sem valer-me de muito.

Há quanto tempo não digo que te quero, valentemente?


A tua voz escapa-se da prisão da almofada pelo meu ouvido encostado, desbrava o meio caminho entre o sonho e a vigília, cruza-se com tudo o resto que me aflige e antes de se esgueirar pela clarabóia em forma de orelha, deixa um recado: estou mas não estou. Não posso, mas quero. Não devo, mas é como se fizesse. Não esqueças; ou não, mente-te uma e outra vez até que soe a verdade. A sério. Voas e novamente, a tua voz escapa-se da prisão da almofada...


Ontem flutuámos de mão dada na parte de trás do Sol. Não sei o que vimos, porque só fechei os olhos para sentir o teu sangue por debaixo da minha pele. Nem sei se lá estavas. Para mim, sim, e o que sonho e penso, normalmente, é aquilo que existe no momento. Se todos os momentos fossem tu, fossem a tua mão na minha, fossem o que existe para lá do sol, então abriria os olhos e e abraçava-te assim, sem te tocar. Não precisava de mais, nem sequer de flutuar. Podíamos estar simplesmente de pés bem assentes na terra, mas a mente fica bem para lá das estrelas.

terça-feira, novembro 17, 2015

O que é verdade



Lá porque vos vos conto isto, não pensem que é verdade. Melhor, assumam que é, mas não assumam que eu assumo, porque senão sumo da vossa presença e nada conto. Aconteceu, mas quem teceu, não conto. Porque não sei. Quando os pés escorregam para as sapatilhas de caminhada, em volta higiénica por outro lugar que não eu, as estradas tornam-se borracha de apagar, mas nunca até agora se haviam tornado num livro que escrevo enquanto caminho. Desta vez deu-se, e o pior é que não dá para devolver. Caminhar tem destes perigos: uma vez saídos do conforto e do conhecido, entramos numa zona onde tudo pode acontecer, por muito a banalidade dos dias seja certa, e a previsibilidade da vida nos seja uma garantia de 2 anos, com a eternidade da certeza. Quando as pernas se decidem a contar uma história, o corpo segue, a cabeça simplesmente pára, porque não é com ela a narrativa.

Ora, tanta volta, e mesmo que o percurso seja circular, pelo curso desta história ainda não vos levei e agora é que vai ser. Não sei se conhecem o Vale de Embolo. É uma pequenina povoação que se sente orgulhosa pelo facto de lhe chamar povoação. Quando montes de pedras formam rectângulos, a convenção exige que lhes chamemos casas, e eu não sou a convenção, mas a minha mãe ensinou-me a, pelo menos, respeitar o mundo e as pessoas e as coisas, e a minha mãe não está aqui, por respeito à morte e ao seu poder infinito, mas se em espírito já me olhar com carinho, e reprovação, decerto ficará satisfeita, em parte, por vos apresentar de embalo Vale de Embolo como um fantástico e típico local, daqueles onde se está e se convive, e até nem apetece sair. Imaginem Vale de Embolo assim, porque, vá lá, de que serve a realidade? È um estorvo, e se vos conto isto, se o podem imaginar e não ver, mais vale que imaginem em estilo. Vale de Embolo, património da Humanidade, igreja de magnífica e onerosa ruína, ruas escavacadas em homenagem aos Antigos. Era assim, e fora neste pedaço esplendoroso da nossa História civilizacional que decidi parar para beber uns goles de água. Passeio-me sozinho, habitualmente, e a companhia da música é suficiente, por hábito, mas desidratante por esforço. Engatei-me numa laje de pedra, que fazia as vezes de banco junto à igreja. Vale de Embolo, no coração do Caramulo, fora ideia de um grupo de camponeses e pastores, fartos de viajar, e que se decidiram por armar um povoado pela simples razão de estarem cansados. Naquele momento, consegui ter empatia por aquelas simples gentes, embora me tenha perguntado se, nos horrores do Inverno beirão, pelo menos três ou quatro gerações não tenham questionado a localização.

Como turista, estava aprovadíssimo: a laje de pedra servia ao mesmo tempo de miradouro, e lá ao fundo, numa linha do horizonte desenhada por uma mão tremelicante, a neblina formava um lençol, enrugado e enxovalhado, e por isso mesmo natural como o mundo, e todas as manhãs que dele sopram. As minhas costas tomaram a parede da igreja como suas, e pude, por fim, respirar em pausas, massajar as pernas, sentir os pés levitar. Vi então, a surgir por detrás de uma casa, um braço peludo. Hirsuto e musculado, apertava a pedra como se disso dependesse o sangue que lhe corria nas veias. Durante alguns segundos, arrancou pedaços de granito, e neste ritmo caíram também pêlos do braço, e diminuíram músculos, e o braço, que antes parecera uma coluna de templo romano, era agora como que uma lança de um soldado romano, fino e frágil e branco, um pouco como me sentia naquele momento. Não se avistava vivalma na rua, eu era a única testemunha e lembrei-me, dois quilómetros antes de me ter cruzado com uma palavra que indicava uma direcção, e essa direcção, na altura cómica, enfeitara-se festivamente de horror: a cova do Lobo. Eu sou da aldeia, sim, mas de uma aldeia que cheiro bem a monóxido de carbono da cidade, e já os meus avós me contavam histórias daquelas, mas era só um braço, e que estava a ver eu, pensei, senão uma alucinação da hipoxia? Mil metros de altitude, a respiração torna-se turva, mas não o suficiente para confundir o que seja com um par de mandíbulas que espreitaram por detrás da parede, pontiagudas e assertivas, mas em simultâneo a minguar e assumindo camaleónicas a forma humana dos lábios.

Preparei-me para tudo, fosse o que fosse tudo, ali em ermos solitários. Com lentidão e calma, arrumei a água e preparava-me para assumir a minha masculinidade vertical e partir para expô-la ao resto da montanha, quando a lincatropa visão se apresentou total, ou melhor, não se apresentou de todo: por detrás da casa, surgiu uma adolescente com os seus 14 anos, nua como só a montanha se costuma apresentar, e olhando para mim como quem se assusta com as frinchas do vento à noite. Aqueles olhos negros que me fitavam, meio incomodados e meio incómodos, foram o que me convenceu de tudo. Podia explicar-me os braços e os dentes e as lupinas feições, mas aquele olhar é de quem guarda segredos de betume em cofres de betão. Mesmo na fragilidade de um corpo, as pupilas podem ser como socos, e de momento, estava a ser esmurrado sem piedade. No entanto, tomei conta de mim, num pigarreio, e olhando em redor, vi um lençol estendido numa casa vizinha. Quando ela o tomou da minha mão, respirou um pouco melhor e eu observei então nódoas negras que podiam ser de várias origens, mas eram todas nas virilhas, três ou quatro, com a forma de mãos, e percebi que por muito que te transformes e mudes, certas coisas permanecem. Ela percebeu, e mesmo que não se tentando justificar, agarrou-me com força o pulso e puxou-me a mão para o cabelo. Farrapos colados, peganhentos, vermelhos de óxido: era sangue. "Nunca mais", aliviou então a alma, e não era um motivo, mas aquela solidão de monte era outra realidade afastada, sem protecção, sem ninguém a quem prestar contas, e quando tudo aperta, sermos outros é a sobrevivência possível.

Não me quis esforçar para perceber o que para mim seria ininteligível, mas afaguei-lhe cara. e mesmo humana, encolheu-se canina e pela primeira vez nalgum tempo, sentiu algo mais do que a selva e a floresta e o distante. Vim-me embora, preso por uma trela aos seus olhos até que me afastei da aldeia e pensei no que vira, no que sentira e no que pode ser verdade ou mentira. Mas a realidade, quando estás longe do topo do nenhures, é sempre uma percepção.


sexta-feira, novembro 13, 2015

Presença



É tão certo como um metrónomo: ao dia 5 de cada mês, entro neste restaurante, arrastando chuva ou fazendo sombra à luz do sol, e numa floresta de odores, caris e especiarias de ementa indiana, procuro a mesma cadeira que já me conhece. Sento-me e guardo para mim uma hora de tempo que não existe no relógio. Eu sei que os minutos se apagam, mas não estou no presente, apenas algures para trás da cadeira e da porta e até da própria cidade. Volto a ti. Não me lembro de agora de nos termos conhecido, e isso significa que talvez tenhamos sabido um do outro durante toda a vida, que uma vez postos no mundo, o ar foi a primeira memória que inspirámos, e algures entre as moléculas, como espaços onde se habita sem corpo, estava eu e estavas tu. Recordo-me, e recordar é dar movimento ao coração, segundo os gregos, de me sorrires pela primeira vez, e de tudo o que desfilou desde então, de como pode ser mais perigosa uma fila de dentes que convida a mãos agarradas do que um pelotão de fuzilamento alinhado, com a nossa cabeça na mira das armas. A tua imagem consegue, na simples virtude de ser indelével, tornar-te presente passado todo este tempo, e ver à minha frente, e não dentro da minha mente, um momento há quinze anos, uma simples troca de opiniões sobre um livro de Borges entre dois estranhos num banco de jardim. Era de filme, nas cenas seguintes, a cadência certa do hábito fez-nos trocar muito mais opiniões, voltando ao banco como  se de um duche quente se tratasse, nas folhas e nas árvores, no vento e no sol. Eu e tu como constante do solo, pés que afagam a terra e avivam o inanimado, transformam lugares em confortáveis corpos onde conversas se espraiam e olhares são  feitos ganchos.

Um dia disseste "jà alguma vez experimentaste indiano e livros", e nunca combinara nada de tão exótico, aliás eu era um daqueles homens maçã, que na dúvida entre que fruta comer escolhe a mais banal e nem nunca pensar comer diospiros ou romãs ou fisális, é sempre mação ou pêra. Tu, a evidência de uma fisális mulher, puxavas-me a ser outro, e aceitei o convite porque me podias levar até às selvas indonésias. Ouvira falar de gente que hipnotiza com os olhos, mas quando abrias a boca, não tinha outra hipótese senão ser vidro entre as tuas palavras, não que estilhaçasse, mas sim transparente, pois nessa altura podias ver exactamente quem era¨. A tua pergunta amarrou-me e almoçámos nesse dia, rindo bastante, reparámos pela primeira vez que nos tínhamos tocado, e que as palavras podem arrepiar-te a epiderme mesmo que sejam mera invocação do desconhecido em sons perceptíveis; e foi nesse momento que se constatou o medo que existia nessa simples iniciativa, como se fôssemos diáfanos, talvez até imagens e hologramas, projecções de vontades e anseios, da ideia de gente que não pode existir. Mas o mundo é tão grande que se quisermos desenhar alguém no quadro negro da hipótese, é bem provável que algures um giz lhe tenha dado pó e traço. Decidi não te tocar, e tu na mesma, sem dizermos um ao outro, e a partir desse 5 de Janeiro, cada dia 5 cinco era de almoçar no restaurante. Começou com palavras, mas à sexta ou sétima refeição, o silêncio era um embalo e já nem sabia o que comia, pedia sempre o número 1 da carta, e ficava uma hora apenas a olhar-te e a existir na tua cara. Sabia o teu nome, mas eras tão mais do que letras e ordem. Nos meus dias, tornaras-te na razão pela qual, de manhã, te convences de que a verticalidade do teu corpo não é uma dor, e que os zumbidos eléctricos que te alimentam o pensamento são não um enxame, mas a luz da respiração.

Parou tudo um dia, e porque não apareceste. Não o entendi, mas se surgiras sem explicação mal te apresentando, existindo apenas num banco de jardim como se na minha vida não tivesse um único motivo para justificar pegadas e o meu tempo neste planeta e agora pudesse fazê-lo. Nunca me refiz de que prescindisses de mim como razão, e era isso que mais me matava, não me sentir em ti. Era como se eu estivesse a viver numa dimensão paralela, onde desejava com braseiro nos lábios, e me podia até desfazer só para te ter à minha frente. Sem qualquer outro rumo, não consegui impedir-me de ser como Vasco da Gama e aportar nas Índias, de nos trazer, a mim em corpo e a ti em ilusão, de me sentar à mesa e lendo sempre um livro diferente, memoriar apenas. Pergunto sempre se já chegou alguém, e há dois anos que a resposta é não, mas guardam-me sempre este luar, nunca se deve desperdiçar um cliente fixo e os indianos percebem bastante de Matemática normalmente, disseste-me tu uma vez. Hoje leio Wodehouse porque não quero que a minha cara seja fronha de almofada, e pedi desta vez o número 3, nem sei o que é, mas assim como assim, davas sabor a tudo e agora tudo me sabe ao mesmo.

O ar muda atrás de mim, ouçou-o e deve ser a jovem de nalini na testa, que acho nem ser dela, que me veio servir há pouco. Desvio-me para o lado, dando-lhe paisagem, mas um pano tapa-me a visão e deixo cair o livro, páginas que em bloco se protegem, e alguém o apanha e me recoloca no colo.  O pano desliza e desaparece, e a minha cara pressente pele e calor, algum suor, tremores e espasmos nos músculos, uma ansiedade, medo. Toco nas mãos e mais pele, uma face, inclina-se e cola-se à minha. Uma voz que me cresce no coração anuncia "São páginas, mas podes ler sem luz, aliás até é melhor", e quero perguntar-lhe tanta coisa, e no sofrimento encontro o valor da ignorância, ou pelo menos de adiar a iluminação, e se calhar é isso que ela me está a pedir, escuridão, e nem quero ver quem conheço de cor, apenas ser um prolongamento do seu mundo, e o valor seguro das terminações nervosas. Por mim, ficava ali até todos os relógios terem passado de validade, tornando-se obsoletos.

Mas estou a enganar-vos, pois quero beijá-la desde o nosso primeiro livro.


quinta-feira, novembro 05, 2015

Oniris



Há muitas noites que não sonhava, como se divagar nas imaginações do que não se conhece em nós fosse morte, ou pelo menos coma. Sonhar é perguntar a nós mesmos as respostas que não ouvimos, mas reverberam em corpos com a forma de sino, badalando a meia-noite como se a vida se escondesse em órbitas simples, e não no eixo de cada esfera. Por isso andava perdido, sem respostas ou sequer sem pontos de interrogação suficientes para encerrar a dúvida se movimento perpétuo que gira de todas as vezes que penso na fraqueza que me forma, me molda, me identifica. Mas ontem, entre um voo e uma aterragem, um sonho fez check-in. Picou bilhete, recolheu bagagem e algures na cortina do palco das minhas noites, projectou-se e qual truque de magia, revelou-se em mistério, pairou à procura que lhe desse interpretação.

Sonhei ontem que era um balde de legos com olhos. A mão desencarnada do que não agarro exigiu-me os cabelos e despejou-me numa carpete: espalhei-me ao comprido e ao largo, em várias peças e dramas, actos e arcos, e por ali fiquei sem que a mão me juntasse de novo. No espaço entre tudo, um uivo gelou o ar e de repente, fiquei ainda mais afastado do que sou. Uma névoa verde é fumaça e as peças eram bocadinhos de ti, e quando as chamaste, foram comer à tua mão, em monte e magote, e quiseram sair de mim para se instalarem simplesmente nos teus dedos, no teu calor e na tua essência. Não me zanguei. Estar em ti é uma maneira mais próxima de me juntar a mim próprio. Por isso foi um sonho.

Acordei e os meus contornos crepitavam quase audíveis. A cama era a tua palma, e sentia no colhcão sangue nas veias, calor de coração, batida que se força a si própria. Os rumores da tua pele são factos nos meus lábios