terça-feira, janeiro 28, 2014

Os meus ascos: a praxe



Tenho sido demasiado lírico nos meus últimos textos. Os mais recentes convertidos a este blog mostram júbilo e apreço, mas quem me acompanha quase desde o início sabe que este blog se fez com asco, sarcasmo e particular desprezo por quase tudo. Onde há uma opinião polémica a dar, as minhas palavras lá estão a criar inimigos e a aumentar esta aura arrogante que me rodeia quando decido dizer a alguém que a sua estupidez acabou de, mais uma vez, poluir o mundo num rasto viscoso. Nesta fase em que há co-adopções, praxes, congressos do PP, a habitual inércia de Cavaco, o Facebook em barda, Lars von Treier com novo filme nos cinemas, proto-feminismos e neo-machismos e mais algumas boas oportunidades para gerar a controvérsia, as minhas mais sinceras desculpas aos leitores fiéis e antigos que se habituaram a ler aqui o que é desviante e indiferente à dignidade humana. Podia-me desculpar atrás do cancro alheio, mas isso não é desculpa, pelo contrário: quando um familiar nosso carrega em si tal ignomínia, a raiva cresce ao invés de sumir. O sarcasmo é proporcionalmente crespo, e parece que tudo à nossa volta é motivo para cacetada certeira e cerrada. Prometo, desde já, estar mais atento à actualidade que desponta, e à laia de apetite, deixo algumas considerações sobre três temas que têm enchido murais de opiniões semi-idiotas (e algumas profissionalmente idiotas, pois os seus actores mostram-se useiros e vezeiros nesse tom que muito me anima e enfurece em simultâneo). Hoje, navegamos até ao Meco, à Alta de Coimbra, a um costume que funciona no mesmo princípio de existência das touradas: é antigo, tradicional e os visados não se queixam.

Falo, claro, das praxexs. Tenho lido tanta coisa acerca disso que a certa altura comecei a pensar que apenas se falava mal da praxe porque era moda, e não porque tal prática fosse errada. Hoje em dia, quando algo começa a reunir consenso, há sempre vozes que se levantam e existem em defender o contrário apenas porque a moda é algo que lhes comicha. Também é verdade que se lê muita coisa que arrepia na sua histeria, desconhecimento e até subserviência. Quando alguém venera as palavras do Dux Veteranorum de Coimbra (um indivíduo que, lembro, está desde 1988 no Ensino Superior, ainda não acabou o seu curso e todos os anos defende a tradição do seu cargo e a perseguição que o Governo faz a gente do seu calibre), pareceu-me que tinha de se pôr um travão na insanidade. Nunca houve dúvida na minha mente de que a praxe, no geral, é uma lepra social. Quem usa as versões mais soft (das quais fui vítima uma vez, e não são nada que envergonhe o estudante por aí além) ou obras de caridade motivadas por algumas praxantes mais santinhos para legitimar o acto praxante ou se está a esconder daquela que é a realidade generalizada ou então sobre de perturbações mentais capazes de fazer corar muita gente com meio cérebro. Estas brincadeiras no Meco transformaram aquilo que é um atraso mental num acto que de criminoso tem a completa abstracção do que há de valoroso na condição humana. Quem conhece, sabe que a fronteira entre certas praxes e a definição penal de crime salta à corda com a linha do Código da Praxe, uma fina tela que protege os seus perpetradores de acusações que, no mundo real, seriam quase imediatas. Olhando para o caso da minha cidade, a campanha de relações públicas do Conselho da Praxe é incrível e quem se queixa dessa tradição quase passa por careta. "Vejam bem como eles entram no jogo e gostam", querem-nos fazer crer. Quase nos sentimos culpados por estragar o divertimentos a toda esta pandilha de foliões. O pior da praxe, como em quase todo o tipo de festividades e costumes, é que dependem de pessoas; e no geral, rejubilem os meus leitores mais fiéis, as pessoas são horríveis e falíveis. Se puderem abusar, abusam; se só puderem pensar no seu divertimento e prazer, assim o fazem. Praxar não é muito diferente de sair à noite em Coimbra em época universitária: bebe-se até rebentar, e o que se passa a seguir não é culpa nossa. O excesso é justificado, porque acontece e nunca podia ser evitado. É Coimbra, dizem por aqui, mas acredito que seja Lisboa, Porto e outras cidades também.

O que fazemos não existe por si: é um reflexo do que somos, do que somos capazes de aceitar e até dos nossos próprios medos. Por isso, não se apressem a apedrejar Duces e afins como culpados únicos desta história: não conheço um único caso (embora admita que possam existir) de alguém obrigado à força a ser praxado. Quando estudante, recusei-me a ser praxado e nunca mais me chatearam. Conheço casos semelhantes, logo coço a cabeça e concluo que se alguém se vê exposto a comportamentos aberrantes é porque assim o deseja. Seja para enturmar (outra eterna legitimação da praxe: porque como os meus amigos sabem, as minhas amizades começam todas por sentar gente de quatro) ou simplesmente devido ao desejo de poder, no futuro, humilhar a fornada seguinte de caloiros iludidos, os praxados entram no jogo de livre vontade. Há algum medo envolvido: de não ser bem sucedido, de não ser integradi, de simplesmente não sermos adequados ao mundo novo a que chegámos. Não é muito diferente da vida em geral: há apenas uma amplificação natural numa idade de gente impressionável e onde a afirmação pessoal é uma demanda pessoal levada ao extremo. Prepara-se o futuro e o que aí vem: aceita o que te dão e se não aceitares... Já sabes. Quando não se sabe o que é melhor para si mesmo, espera-se que o bom senso dos outros impere. Ingenuidade ou ilusão? Ambas, e aquilo que faz de nós, tanto tempo depois, um pouco órfãos de figuras ditatoriais. Dá a ideia de quem ser alguém para nos dar ordens ou biqueiros, não conseguimos viver. Connosco, parece ser da praxe.

P.S: Por favor, não me venham com "Mas na minha praxe pintámos paredes de casas velhas para velhinhos habitarem", porque para além de mostrarem que a noção de "relações públicas" não consta da vossa vida, ainda estão a dizer que nunca fariam nada de bom se não fossem obrigados a isso. Nenhuma das duas vos fica bem