segunda-feira, junho 30, 2014

De Samotrácia


Desde que a ideia de "banalidade do Mal" foi lançada na arena das filosofias que aquilo que consideramos vilania e maldade tem mudado ao sabor das subjectividades e pós-modernismos. Quanto mais observo e penso na realidade actual, mais a objectividade parece ser um inimigo de quem se acha minimamente complexo. Diz-se que se devem ver todos os lados da questão e que há "diversos factores a ter em conta", ou que certos componentes tornam o caso complicado ou demasiado moroso. O que Hannah Arendt fez, basicamente, foi dar corda a uma cartilha que desculpa tudo o que possa parecer vilania, fazendo-a passar por traço de personalidade que urge explorar se quisermos perceber realmente o mundo. Na verdade, o Mal objectivo não existe, e aqui tenho de concordar com a alemã. No entanto, acho alguns tipos de Mal mais compreensíveis do que outros. O serial-killer ou o assassino em massa, no fundo, é apenas alguém com uma percepção da realidade que está para lá do que consideramos, vá lá, porreiro. Pronto: são gente que não bate bem nem de longe, nem de perto. No entanto, algures dentro daquela mente retorcida, a maldade não é maldade: é um alinhamento do mundo aos seus propósitos utópicos/cruéis (riscar aquilo em que o leitor não estiver interessado). Esse eu compreendo. Não o aceito nos meus amigos do Facebook, mas a sua existência é o que permite um certo balanço do mundo, e temporadas infindáveis de "CSI" e "Mentes criminosas". Há um tipo de facínora, no entanto, que tem arruinado o mundo desde que apareceu, e cujo desprezo pela qualidade da vida humana não entendo. Viverão na infâmia até ao fim dos tempos e os seus actos desprezíveis e indescritíveis são o tipo de coisa que faria Pol Pot bater palmas e fazer romarias à Senhora da Catana. Como alguns devem ter percebido, pela certeza da descrição, falo das companhias de seguros.

Se vos parece exagero, está claro que nunca tiveram de lidar com os labirínticos desígnios da activação de cláusulas de seguros de vida, e se não pestanejaram os olhos de sono enquanto liam este bocadinho de frase, muitos parabéns e beijinhos na bochecha. Para mim, ser o dignatário que trata pessoalmente das disposições de um seguro que o meu pai fez para o caso de acontecer o inominável que lhe sucedeu tem sido um confronto que sociopatas que pouco devem aos grandes ditadores do século passado: o interesse não está em ajudar as pessoas, mas sim protelar o mais possível as decisões na esperança de que o inevitável aconteça. Uma pequena historinha ilustra o que digo: há uns meses, desloquei-me pessoalmente a Lisboa para tratar de activar uma cláusula de invalidez que a VICTORIA tinha acordado com o meu pai (as maiúsculas exigem que não lidem com este cancro multinacional nos vossos seguros). Mesmo tendo ido a Lisboa, o funcionário informou-me que estas coisas não eram tratadas ali, mas sim numa outra sucursal que ele nem soube precisar qual. Instruiu-me a recolher os exames feitos pelo meu pai, e ficou com um atestado médio multi-usos que tinha o simpático grau de incapacidade de 95%. Seria de esperar que tal causasse alguma reacção, mas sigam as burocracias como de costume. Ora, voltei para as terras do Ceira com uma missão, e cumpri-a via e-mail, como me tinha sido sugerido. Passou-se um mês, e nada. Mês e meio, e um silêncio digno do exercício de yoga mais sério. Quase dois meses, e a minha paciência esgotou-se. Liguei para a VICTORIA. Uma voz feminina guiou-me pelas estradinhas da ignorância e afinal, o processo estava a avançar: ninguém se tinha era dado de me avisar, Certamente que nos próximos dias receberia em minha casa uma carta a informar do andamento da coisa. Nada a temer, estimado cliente: estamos no caso, e quando lá estamos é sempre a ripar.

Os próximos dias foram quase três semanas. A carta chegou, e oh maravilha, era pedido ao meu pai que se deslocasse até ao Porto, para ser visto por médicos da cuidadosa seguradora. A incapacidade de 95% devia dar alguma ideia à junta médica de, presumo, nobelizados a dobrar que trabalha para a VICTORIA acerca do estado do meu pai, mas foi demasiado subtil para a sua ciência precisa e conhecedora. Portanto, venha até à Invicta, senhor Vítor, que quero saber bem exactamente em que consistem esses 95%. Presumo que se as pernas não funciona, se possa arrastaram, e no caso de os braços darem de si, as pernas equilibram-se bem apenas com os abanos das orelhas. No caso de estar realmente incapaz, uma cadeira de rodas aerodinâmica dar-lhe-á a necessária sensação do vento a desviar a cara do atrito, e isto damos-lhe de borla e sem custo adicional. Claro que voltei a ligar para lá, explicando com mais pormenor o real estado do meu pai. Encolheram os ombros: envie um e-mail a explicar isso, com uma carta do hospital. A nossa junta médica analisará a situação e prometemos-lhe uma resposta breve. Terá mordido a língua, não acabando a frase, pois estou certo de que ainda estava para dizer "daqui a dois meses". No entanto, a vergonha ainda existe nos locais mais desesperantes.

Jogar com o tempo parece ser a especialidade destas seguradoras. Não me recordo de tamanho laxismo quando exigiram ao meu pai o pagamento das mensalidades, mas talvez me tenha passado ao lado... Entre a VICTORIA e o meu pai, estabelece-se um jogo de paciência, entre um grupo de sociopatas e um homem doente terminal. Têm tido algum azar, eles: o senhor Vítor leva quase meio ano de avanço aos prognósticos dos médicos e quando estava completamente saudável, a sua teimosia inspirava lendas e mitos. Já estive mais longe, ainda assim, de pegar num bidon de terebentina e dar a conhecer a Lisboa a maravilha pirotécnica dessa substância. Espero que a VICTORIA tenha seguro contra todos os riscos, porque nem os melhores advogados do mundo tiraram um curso lateral de protecção civil.

(E se transparece que estou completamente passado... Parabéns, mas não é necessária tanta perspicácia assim)

quarta-feira, junho 11, 2014

Magnífico



Como instituição de referência, a Universidade de Coimbra (UC) é uma fonte inesgotável de divertidas rábulas. Mais vezes do que as desejáveis, os protagonistas são os seus alunos, cabecilhas do gangue da cabeça no ar e das tristes figuras que nada têm de Cervantes. No entanto, é de concluir que o exemplo terá de vir algures acima da hierarquia, já que seria de enorme soberba atribuir aos jovens tão grande capacidade e inexcedível talento numa área onde a prática é uma componente fundamental.Quem foi aluno da UC sabe que existe nos seus quadros burocráticos e docentes essa torrente de estupidez, non-sense e incompetência só ao alcance da Secretaria Geral ou, patamar máximo, a Secretaria da FLUC. Esta semana marca mais um desses episódios em que fui co-protagonista inesperado.

Porquê inesperado? Porque envolve a recepção do meu diploma de curso, e com sinceridade digo que não mais esperava recebê-lo. De facto, entre a inutilidade do meu próprio grau universitário e os dez anos que medeiam este momento e o meu pedido ingénuo na Secretaria Geral da UC, tinha-me esquecido completamente de que a eventualidade de acontecer poderia descer sobre mim como um martelo vindo de nenhures. Lá caiu. O carteiro entregou-me o tubo e se inicialmente até pensei poder vir a ser uma daquelas prendas espontâneas que nos alegram o mundo durante uns minutos, cedo concluí que estava a acontecer algo tão bizarro que só poderia encontrar rival nas assombrações do parlamento dinamarquês. Com calma e sem excitação, a embalagem deu a tampa às minhas mãos e regurgitou um cilindro dourado, com o inconfundível emblema da UC. Ainda antes de abri-lo, a minha memória recuperou este lapso e anunciou o culpado: um diploma em Latim que sim, comprovava que tinha gasto quatro anos a vasculhar o passado com permissão e benevolência da UC e que me deu a conhecer a tradução latina dos nomes dos meus pais, algo que nenhum deles tinha particular curiosidade de saber. O papel do diploma é durinho, como quem pede moldura e a fórmula é a que muitos já viram nas suas mãos. Talvez não muitos, ainda, mas nada temam: certamente chegará a vossa vez.

No entanto, esta prenda trazia um bónus. O próprio reitor decidira escrever-me. A mim, um licenciado em História, cujo diploma até vem assinado por um dos seus antecessores? Por favor, senhor reitor, explique-me a honra; e o Magnífico lançou-se num arrastado gesto de desculpas pelo facto de este importante documento da minha vida (e acredito que da História da UC) chegar sem uma peçazinha em prata que bate fundo nos corações daqueles que vêem confirmados o seu saber pela sua existência ao pendurão numa folha. De facto, explica-me ele, o preço da prata está para lá de Alfa Centauro e os magros cofres universitários não conseguem contemplar a compra da argêntea preciosidade sem que isso cause o fim da civilização tal como a conhecemos. Pedem-me então que prescinda desta confirmação de valor e ajude assim a UC, que se apresenta quase como minha mãe, a resistir nestes tempos de vacas magras e professores gordos. Tenho toda a gratidão do Magnífico e a certeza que esta instituição tem os melhores antigos alunos do mundo. Implicitamente, penso que também se refere a mim, embora alguns professores discordassem  deste apodo.

Quem me conhece, sabe que ligo pouco a graus académicos e diplomas e afins. O doutor, ou professor doutor, ou capitão, ou "empregado do mês, João Gabriel Silva nunca me viu na vida e pensou que, tal como muitos que apenas usam os cursos universitários para se projectarem e ganharem um fictício estatuto, eu seria um desses casos. Fica descansado, caro compincha, não pedirei a prata.  Não quero ter nas minhas mãos o homicídio do baluarte da Cultura ocidental que é a UC. Gostava, no entanto, de poder mostrar este diploma ao meu pai, que foi afinal o principal responsável pela sua existência: pagou-me o curso, abdicando de outras coisas e sei que enchê-lo-ia de orgulho ter esse tubo dourado nas mãos e ver então essa confirmação, perante todo o mundo, de que o seu filho mais velho não só acabara um curso universitário, como cumprira, pelo menos em parte, a promessa que mostrara quando, em criança, mostrava tal memória que ganhou a alcunha de Enciclopédia. Seria magro consolo depois do tempo de desemprego que ele foi forçado a assistir, com uma mágoa disfarçada, mas ainda assim aposto que teria bem mais vontade de colocar o diploma na parede do que eu. Este senhor meu pai foi o mesmo a quem a Universidade pediu dinheiro durante anos, numa inflação de preço do meu curso (que é dado num edifício a cair aos pedaços e que não vê obras de fundo há décadas), e por quem não mostrou esta pequenina piedade que me pede quando o assunto é dinheiro. Tendo em conta o aumento do preço dos cursos universitários, e a sua utilidade no mundo real, nos últimos anos, a carta que recebi é quase um skecth de Monty Python ao qual só diálogos são necessários.

O meu pai nunca vai perceber que isto se deu. A minha mãe teve o diploma nas mãos, sorriu no paradoxo de que um documento tão inútil talvez seja a melhor coisa para se orgulhar depois de o seu filho mais velho ter passado ao lado de todas as tradições universitárias possíveis, mas tal como eu, tem coisas mais importantes com que se preocupar. O diploma é de prata, mas o tempo é de ouro. Ao contrário da prata, não se pode comprar nem recuperar com climas económicos mais favoráveis.