quarta-feira, setembro 20, 2017

Mais uma rodada, mais uma viagem


Quando lerem isto, é provável que já não esteja em solo português. A minha senda, quase desígnio de vida, de visitar locais com nomes esquisitos e desconhecidos da maioria levar-me-á agora perto do Círculo Polar Árctico, até um arquipélago de dezoito ilhas que pertence à Dinamarca. As Ilhas Faroé serão o solo debaixo de mim (e nalgumas alturas, pelo que li, por cima também) nos próximos sete dias. Ora, porque não ir à praia que até está solzinho em Setembro? O Algarve aqui tão perto e Figueira da Foz com os seus belos areais... Ou então simplesmente visitar capitais europeias tão belas e movimentadas? Coisas boas... Mas por outro lado, para quem já foi ao Quirguistão, uma região autónoma dinamarquesa é Londres. Fará frio, que estamos a sair da altura quente do ano, e mesmo com o aquecimento global a chegar fogo ao rabo e à tola do mundo, o ambiente para aqueles lados puxa para o geladinho. Nada que agasalhos não resolvam e assim como assim, andar de gorro em Setembro é uma experiência quase tão fora da realidade portuguesa como visitar cidades com redes de transportes e parques urbanos como deve ser.

Numa confissão mais interna, cada vez mais sinto a minha cabeça como uma panela a fervilhar coberta por uma tampa que só ainda não deixou marca no tecto porque algures em mim, num local que desconheço, surge um controlo que nem consigo explicar e vai mantendo a fervura num controlo muito frágil. Já namorava esta viagem há algum tempo, sem grande convicção, um daqueles namoros em que a atracção existe, mas o compromisso é ténue e arrasado ao mínimo percalço. No entanto, há umas semanas, descobrir uma necessidade prioritária de levantar a tampa da panela para que o vapor explodisse e me aliviasse. A mudança da realidade e do mundo em que damos por nós a respirar costuma ajudar a este alívio, uma estranha ilusão de que somos outros, de que temos outra vida, de que as oportunidades podem surgir de uma forma que nunca surgirão enquanto nos mantivermos nós, aquele que conhecemos desde sempre. É um pouco isso que procuro nesses locais que se escondem nas frinchas do mundo, abrigados da curiosidade turística massiva e ainda com isolamento suficiente para que me possa sentar a olhar o mundo como se fosse a imensa sala de estar da melancolia. Enfim, é o que temos por agora, pelo menos.

Nada temam, que não desapareço de vez. Se a civilização me permitir (e reparem que mesmo no Quirguistão havia Internet, estou optimista em relação ao que é, para todos os efeitos, território dinamarquês!!), darei notícias nestes dias, à maneira de pequenos telegramas e fotos variadas. Mais tarde teremos uma nova série de relatos deste turista menos acidental e mais dado a acidentes, discorrendo sobre a realidade através da sua visão surreal. Já sabem com o que contam. Até lá, não matem nenhuma baleia, sim? Beijinhos e abraços.

quinta-feira, setembro 07, 2017

Sonho


Fez-se luz e quando os meus olhos escancararam o mundo, descobri que eras uma manhã. Umas horas antes, deste por ti como uma noite que me tapa e cobre e envolve e num fumo me preencheu o corpo tornado duplo. "Bom dia", e era uma observação óbvia, calma e, no gesto seguinte, rematada por um beijo. Lençóis azuis envolvem-te o corpo, deito-me ao lado do céu. "Sonhaste ontem?", e sim, sonhei, mas porque perguntas? "Resfolegaste bastante... Resfolegar, adoro esta palavra!", e o teu corpo contorceu-se um pouco nas rugas da cama, como se as tuas pernas dessem início a um rio imenso que rodeia as rochas com a corrente; e tentei lembrar-me do meu sonho, sabia que sim, que sonhara, quando tal acontece sinto-me sempre um pouco mais cansado, um pouco mais desprovido de jeito para lidar com os dias. Sonhos deixam nas margens do rio uma poeira fina, roliça na pele, algum ouro nos olhos. O pesadelo tornava presente aquilo que o roía lá dentro, aquele uivo crespado sem som mas total impacto, o nevoeiro ácido a pôr liquido nos juntas interna do corpo, era mesma uma dor sem forma, um fumo indefinido de gritos carregados como nuvens de chuva num céu de Inverno. Não se apresentava com identificação, apenas o habitava sem renda paga ou aviso. Nem conseguia recordar-se da sua entrada ou se eventualmente nascera com aquela tinta negra dos anos que passam, dos dias que estão, de uma divagação simples nos cantos do quotidiano. Pedras nas margens, um grosso calhau que obriga o rio a desviar o curso, capaz até de resistir à sua milenar e telúrica força. A dor é mais primitiva e original do que a felicidade, que é um dado adquirido da evolução.

O afogamento não se apresentava, mas também não refulgia nos seixos aquele raio de sol que por vezes encontro no sorriso daquela que me inquiria com olhos negros. Ajuda-me a recordar. "E como posso ajudar? Acaso sou filha de Orfeu?" Nunca, ora, Orfeu é o encantador de sonos e tu deixas-me bem acordado. "Talvez isto ajude" Os ombros descaíram um pouco e com um trejeito da tua cabeça, cabelos deslizaram sobre o meu peito, uma cortina onde se entrevê algo que só pode ser visível a quem se abre ao mundo. Ao teu mundo. Estranho ao início, mas que técnica pateta, mas cada fio de cabelo deixa em mim uma semente e o que cresce é a árvore da abstracção, como se da tua cabeça brotasse uma fonte, em tons de negra luminescência que me envolva novamente na minha inconsciência. "Oniris bate à porta. Já consegues abrir?" A carne lateja, um ligeiro formigueiro mergulha-me então num passado próximo e começo a dar corda ao coração, a regressar ao outro eu que se atreve fora do que é real e começo a ver, na luz que quebra os fios de cabelo em estrelas, um ponto de fuga. Escapo-me e o sonho regressa.

Estou num imenso planalto de estepe, onde tenho por única companhia um exército equídeo que pasta verde. Não é erva, é mesmo cor, e os lábios ficam verdes, o corpo também se malha no viço da cor. Perto de mim, um lago de margens defendias, uma fronteira entre o céu e esta terra que piso. A abóbada celeste é de berço e sinto-me tão bébé, como se renascesse nos grandes espaços, no brilho das águas, no tamanho impossível das montanhas nevadas que me rodeiam . Sou dominado pela ideia de já aqui ter aberto os meus olhos, mas fecho-me a essa ideia, nunca podia ter estado, lembrar-me-ia, como se alguma vez me esquecesse do que me faz ter vontade de abrir os olhos. No delírio onírico, caminho até à água e caio, sou submerso mas não me afogo. Um breve apagão e quando volto a mim, saio de um frigorífico, congelado, gelo verde como o viço das vacas, eu desenho-me vermelho do frio e despido despojado, encontro um par de pés. Um olhar não captura ninguém, apenas um contorno que apenas se define na sua incerteza. Bate palmas e na minha mão, um cofre engole-me e prende-me e sem chave, captura-me. Quero sair, bato e esmurro, grito e urro, mas a total liberdade dos grandes espaços encolheu-se sobre si própria. O tempo passa sem que note e aqui estou. Sou um dos que resta, e o cofre estreita-se num aperto e não sei como estou agora fora e na minha nudez a raiva toma conta dos meus músculos e rebento o estuque de uma parede branca com punhos encarcerados na dor e quando não sobra mais estuque há parede e quando não há mais parede, existes tu, a palma da tua mão.

E regresso a mim, no hipnotismo da curvatura que me sustenta e te dá graça, no cabelo que voltou ao sítio, num exército feliz que na tua boca alinha a paz no mundo. "Então, esclarecido?"; e claro que sim, puxo-te para mim, beijo-te a cara e os lábios, a ponta da língua no nariz e no queixo, uma boca que convida o teu peito a gemer por interposta abertura, e o teu sorriso como carta branca para tudo o mais, para me libertar num largo espaço. "Novo sonho nos espera, olhos abertos e consciência ao desafio" e o planalto tem o tamanho de uma cama e quatro pernas para correr até às montanhas e ao lago.