quarta-feira, março 21, 2018
Ilhas Far Away 15: Gasadalur
Quem me conhece há menos de 5 anos, tem de mim uma ideia meio enviesada e que não será partilhada por aqueles que têm o infortúnio de não se terem acautelado de mim enquanto cresceram. Se estas pessoas se encontrarem à mesa de um café ou no parque ou até num jantar (esta última teria de reunir condições muitos especiais e normalmente só acontece ou quando faço anos ou quando o restaurante é tão bom que toda a gente o conhece), trocando impressões e ideias sobre a experiência quase surreal que é conviver comigo, retratos conflituosos surgirão e alguém será, estou certo, chamado de mentiroso. Há vários aspectos dissonantes e poderia escrever um longuíssimo post acerca deste fantasy brunning, mas o que importa para esta crónica é a ideia que pode haver acerca do meu cosmopolitismo. Os neófitos assegurarão que sou um gajo extremamente viajado e curioso pelo mundo, que ano sim ano sim até me meto em aviões e aterro em locais esquisitos e depois trago fotos para toda a gente me perguntar onde é que é, mas ninguém quer ir na verdade porque são estranhos e longínquos. Ora, se embarco nestes aventuras, por certo serei um corajoso e expedito moço; no entanto, quem acumula mais tempo de serviço na Bruniversidade, desconhece este indivíduo e sempre me associará a 300 medos que me impediram de alargar os meus horizontes e vida na precisa altura onde tal é mais do que necessário. Para eles, imaginar-me no Quirguistão é tão fantasioso quanto pensar que Hogwarts é real, e talvez fossem esses que mais estariam boquiabertos se me vissem em Gasadalur, observando um cenário que deve ser único em todo o mundo.
É único, mas fácil de explicar: há um rochedo absolutamente descomunal, umbicalmente colado a outro rochedo que constitui afinal toda a ilha de Vagar e numa das bordas desse rochedo, talvez aquele que está mais a jeito, um ribeiro furioso decide levar a sua velocidade ao ponto da rebeldia e sem deter a sua marcha fluida, acelera num salto angular para se estatelar no oceano cinzento que lá em baixo clama pelo seu contacto. Gasadalur é apenas e só o palco de um namoro violento entre a água doce e a água salgada, num instante geológico rápido e que se repete de segundo a segundo. Os nossos olhos pensam que tudo é constante mas não: cada salto é seu e separado. A Natureza decidiu saltar em auxílio desta aldeia perdida, e reparem que vos tenho falado de lugares absolutamente entalados nos confins do demónio neste roteiro faroês. Se digo que está perdido, não falo de ânimo leve. Gasadalur deve corresponder à madeirense Curral das Freiras, uma povoação isolada de tudo o que é habitado pelas condições naturais e que se tornou sinónimo de desterro. Um papão habitacional. Rodeada por algumas das montanhas mais altas das Faroé (que ainda assim, relembro, nunca ultrapassam os 800 metros), aterrou num planalto sobre o mar e num arquipélago onde a Pesca é a principal actividade, viu assim condicionada a sua relação com o elemento marítimo. Os pescadores precisavam de trilhar quase quatro quilómetros até à aldeia próxima de Bour, atravessado um dos montes por um trilho que ainda hoje existe e que até 2004 foi a única maneira de sair daqui por via terrestre. 2004. Isto significa que enquanto em Portugal se construíam estádios simbolizando na perfeição a nossa relação com o pragmatismo do mundo real, algures, num ponto que pertencia à civilizada Dinamarca, uma povoação não tinha sequer estradas para automóveis ou veículos motorizados. Tal explica que em 2002, o registo tenha dado apenas 18 pessoas habitando em Gasadalur. Dois anos depois, por fim, algum Alberto João faroês rebentou com um túnel através da rocha e trouxe o alcatrão até este ponto. A ideia é que a população vá crescendo lentamente.
Tal não tem acontecido, mas ainda bem: é da maneira que ninguém estraga o que é bom. Gasadalur até é amigo de quem quer trabalhar: o verde fértil da terra convida ao cultivo, o abrigo natural protege as casas de alguns problemas naturais e deve ser de jóia pode assistir todos os dias ao espectáculo que vos descrevi no parágrafo anterior. Chamam-lhe Mulafossur e é, perdoem-me o vernáculo, uma paisagem filha da puta. No dia em que a visito, temos algum azar com o tempo. Chuva irritante insiste em convencer-nos a recuar, mas à saída dos veículos, quando paramos, as nuvens baixas fazem a barba ao monte imediatamente atrás da aldeia. É de fazer com que as patelas se chamem rótulas novamente à força do uso. Um pequeno trilho conduz a um ponto de observação perfeito e quando espreito no fim desse lamacento caminho, umas escadas de absoluta verticalidade conduzem ao mar lá em baixo. Soube mais tarde que foram construídas por ingleses na 2ª Guerra Mundial e inspiram tanta confiança como uma declaração de Francisco J. Marques numa rede social. Por momentos, aqueles em que esqueço que tenho família e até uma ou outra pessoa que se vai preocupando com o meu bem-estar físico, a ideia de descê-las assalta-me ao ponto de me roubar a carteira de mansinho. No entanto, perante a humidade do solo e o ângulo recto dos degraus, decido que se calhar é melhor ficar-me por aqui. Preparo a máquina e aproveitando tripés alheios, vou tirando fotografias como deve ser. É um deleite de vista, a sério, daquelas que renovam células de pessimismo mesmo que temporariamente. Há luxo que nada tem a ver com o conforto e quanto mais molhada sinto a roupa, mais feliz estou - sinal de que o tempo me pertence e posso gastá-lo a observar aquilo que aqui está desde o início de tudo. Não é cosmopolita nem corajoso: é apenas uma questão de lógica, de ver número digitais numa conta de banco e transformá-lo em palavras virtuais que tentam apanhar algo bem tangível e real.
Conta uma lenda que o nome da aldeia veio de uma mulher chamada Gaesa, que infringiu um jejum religioso e foi assim expulsa do local onde vivia. O desespero levou-a até este vale e aqui recomeçou a vida. Confesso que acho estranho que alguém tenha sido castigado e expulso para o paraíso, mas os mitos têm sempre algo de rocambolesco. Identifico-me com Gaesa. Também eu peco, menos do que devia, menos do que mereço, mas com a plena noção que posso vir a ser expulso do que me é pertença. Gasadalur é esse paradoxo de fazer o indevido e receber de vida muito mais do que pensamos. É um pouco como ir ao fundo e voltar à tona levado em braços pela Beleza. Chove e o cinzento do céu puxa-nos, mas na imagem da máquina, fixo a cascata em trezentos momentos diferentes mas colados num só. Sorrio, e isso é claro como a água.
sexta-feira, março 09, 2018
Os segredos que a Lousã "em serra" guardados
Gosto tanto da serra da Lousã que dou por mim em comichão sempre que vejo uma foto com aqueles baloiços e reclames em madeira que agora espalharam por aí porque ela é muito mais que aquilo. Mesmo não sendo lousanense ou de nunca ter morado colado a este mastronço alto de mil e duzentos metros, é-me essencial e faz parte de mim, do meu crescimento, do que me fiz.
Sei que para muitos, a maior parte, uma serra são pedras e árvores, estradas meio conservadas que a atravessam, alcatrão ou terra, bichos ocasionais, pausa de fim de semana, sombras e nevoeiro, qualquer coisa que inspira aquela foto bacana ou a tirada armada à poesia. Para mim, é lembrança e memória. O escutismo fez parte de mim durante vinte anos e mais de metade deles, tradição do meu agrupamento – 309 Ceira – subi a serra da Lousã a pé por todos os lados possíveis: a partir de Miranda, vindo pela Senhora da Piedade de Tábuas; dos lados do Coentral, seja pela estrada que já foi de alcatrão e hoje é de buracos, ou até por um caminho de terra que passa por um dos segredos mais bem guardados desta montanha, um motel abandonado; seja pela própria Lousã, quer corta-fogo acima e fogo à peça, quer pela Levada de Água apanhando depois via hoje aberta para o Candal (no meu tempo, bem mais fechada); ou pelo Terreiro as Bruxas; ou a clássica Rota do Talasnal.
As minhas pernas cansaram-se em todas elas. Vi veados e javalis, vi até humanos ainda morando nas Casas de Guardas Florestais, dormi nalgumas, acampei junto de outras. A neve envolveu-me, o sol queimou-me, a chuva deu-me vontade de desistir, mas a visão daquelas antenas lá em cima, o Trevim como objectivo, empurrava-me. Vinte anos é muito tempo para conhecer toda esta imensidão de pedra, que percorre seis concelhos entre os distritos de Coimbra e Leiria e parece ter tantas serras diferentes em si: quartzo e xisto, um pouco de calcário, castanheiros e cedros, carvalhos na mistura, Penedos de Góis e o Castelo de Arouce, a Pedra Ferida e as aldeias de xisto, a ribeira do Coentral e a água gelada da Senhora da Piedade, o Cabril do Ceira e o Observatório Astronómico, a Rota dos Moinhos de Água e a Rota dos Baldios… Até tenho de parar para me recuperar de todas estas visões na minha cabeça, do tempo geológico da serra que é tanto e do meu biológico tão curto em comparação. Sempre que aqui venho, aumento a minha vida em anos, sei-o.
Por que é que esta é a minha montanha preferida de todas em Portugal? Ainda que não seja tão alta como a Estrela. Ainda que, reconheça-se, o Gerês é mais largo e vasto e fica melhor em anúncios publicitários. Esta serra é para mim uma passadeira onde desfila uma parte do que fui sendo, e chega-me. É também o local onde regresso em primeiro quando passo muito tempo longe de onde cresci. Não é casa, mas é como se fosse. É colo, é afago, é abraço; e já me faz voar bem alto sem precisar de qualquer baloiço. Tão simples, assim.
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