quarta-feira, abril 24, 2019
Perugrinação 19: Estrelas austrais
Toda esta viagem parece ser marcada por desalinhos corporais variados, de tal modo que parece que só sofri: vómitos, súbitos desarranjos intestinais, gente que fica de cama por males de estômago, a altitude fazendo das suas em praticamente toda a gente... No entanto, o Peru não é só doença. Precisei foi de me colocar nos confins da montanha para descobri-lo - o que não me surpreende. Sempre defendi aqui com vigor que as montanhas me revigoram, ainda que, por outro lado, também dêem cabo de mim. Depois de sairmos de Palcoyo, deixámos as cores para trás. O almoço, tardio, deu-se numa casa, meio perdida, onde uma simpática família preparar um manjar que servia um batalhão, mas era apenas para um grupo de doze pessoas. Foi um daqueles momentos apenas possíveis quando atravessas a linha da realidade e vives a cultura de outros. Não me recordo do que comi, apenas que isso não foi o mais importante. Numa sala ainda grande, mesas e bancos corridos, comida para todos, sorrisos e uma capacidade de comunicar através de simples gestos de generosidade e disponibilidade. Miúdos correndo em redor, um recanto de folhagem à beira de uma estrada de terra batida, um refúgio. Deu ainda para visitar um armazém onde porquinhos da Índia são criados para... digamos que não é para serem animais de estimação. No meio de tanta viagem comprida que temos feito, centenas de quilómetros calcorreados, esta paragem que não chegou a duas horas quebrou também uma rotina de mata corpo. O caminho não é só material, há também outras coisas importantes. Pessoas, afinal o que estraga o mundo e o que pode redimi-lo. Ainda que seja uma garfada de cada vez.
A tarde preenche-se da ligação sinuosa até um local que me tem feito sonhar acordado desde que cheguei: Ausangate. Os Andes finalmente em apresentação digna, uma montanha com quase seis mil e quinhentos metros, sendo que estaremos aos cinco mil para um confronto directo com este monstro de rocha. Chegar até lá não é fácil. Aliás, quando eu escrevo que isto é remoto... não exagero. Estradas relativamente direitas dão lugar a curvas que não mais acabam subindo e descendo montanha. Enquanto cai a noite, cada um existe no seu silêncio dentro da carrinha. Os dias e o cansaço começam finalmente a apanhar-nos. No meu canto, escuto podcasts de crimes reais, porque nada soletra "viagem sossegada" como histórias de gente a matar outra gente. Ainda por cima quando no isolamento breu da noite em montanhas onde a civilização se espaça com passada larga. A certa altura, saímos da estrada de alcatrão principal e entramos noutra bem mais estreita, que começa a inclinar gradualmente, até que o declive é inegável para as mudanças da carrinha. A escuridão profunda sarapinta-se de quando em vez, carros e motas. Uma aldeia está em festa, gente na rua e alguma música, luzes festivas penduradas nalguns cabos de electricidade, embora o aspecto do local seja ermo. Pessoas vivem ali, mas só porque não têm outro lado. Num relance, observo um carro de mala aberta. Na mala, acomodam-se umas seis, sete pessoas. Atrás, segue uma pick-up, com tanta gente que parece gado. É aquela sensação de surreal constante que apenas se encontra na América do Sul. Podem dizer que Portugal também oferece este lado interdimensional, mas não desprezem o que cruzamento que a bizarria e a altitude podem conjurar.
Segue-se um quarto de hora de viagem em escuridão total. Apenas os faróis da carrinha oferecem algumas pistas, buracos e pedras que por ocasião são obstáculos no caminho. Guinadas para a esquerda e para a direita. O corpo está meio morto, não é problema. Uma visão esbaforida oferece-me, a alguma distância, um clarão permanente. Vamo-nos aproximando e os contornos ajustam-se, são casas. "Estamos a chegar", diz o Rodrigo, e o tom de voz revela uma impaciência que tem a ver pouco com o profissional. Ele conhece este lugar e porventura os habitantes. Quando estacionamos, já nos esperam dois homens. Abraçam o Rodrigo, o meu instinto estava correcto. Em redor, distingo apenas curvas que sobem e descem, embora sem conseguri observar o que as causa. Encaminham-nos rapidamente para duas construções de pedra, já com algum uso e idade. Eu e o Pedro ficamos na mais pequena, o restante grupo, feminino, sobre até um primeiro andar com varanda. Quando entro, três patuscas camas, meio toscas, ainda que com ar muito confortável preenchem a divisão. O Jorge não veio, logo a cama que lhe era destinada fica como nosso repositório de tralha. Noto que há um saco-cama para cada um. "Houve quem tivesse passado frio no grupo anterior", justifica o Pedro. Não me importo. Conto-lhe que no Quirguistão, dormi em yurts e nem sequer camas existiam; e para mim, conto que toda a minha vida quase fiz de tendas casa. Sem qualquer problema. Até acho piada. Conto cinco cobertores. Não sei se este local é o ponto de origem da próxima era glaciar ou se os nossos antecessores lusitanos eram todos do Algarve. Sou beirão. Um beirão trata o frio com uma risada e logo a seguir, mete as meias por cima das calças, para garantir circulação de calor sem perda. E é então que busco a minha mochila e tiro não um barrete, não luvas ou casacos, mas sim uns calções de banho.
Não estou a alucinar, nem vocês, de repente, inspiraram alguma fumaça de marijuana de alguém ao vosso lado. Calções de banho, sim. Olho para o relógio e são sete e meia. Hora ideal para conhecer um dos grandes atractivos deste lugar: as piscinas termais. Há quem venha aqui de propósito para as mesmas, mas curiosamente, nada do que aqui existe grita "Aldeamento turístico". Quem gere o espaço são algumas famílias quechua tradicionais, vivendo um estilo de vida já em vias de extinção no planeta. São, acima de tudo, pastores, e já não existem muitas comunidades iguais em todo o mundo. As instalações são humildes, mas compensadas pela simpatia e dedicação da comunidade que aqui habita. O ligar chama-se Cchacha - riam à vontade - na base de Ausangate, oferece uma fuga a tudo e uma base para caminhadas de montanha. Isso, no entanto, é para amanhã. Agora, estou mesmo interessadíssimo em consultar as propriedades curativas destas águas. Abro a porta e sopra aquela lâminazinha de frio que reorganiza o meu sistema reprodutor. É o ímpeto ideal para caminhar feito pinguim até duas piscinas que fumegam. A toalha tomba no chão, as sapatilhas voam e deslizo lentamente para o interior da que me está mais próxima. Delícia. Esqueço logo a história do gelo e da tibieza. A água dá-me pelo peito e nem me quero mexer. Braços apoiados no muro e deixo-me boiar um pouco. Se levantar a minha mão, entendo de imediato o choque térmico entre o exterior e o interior. Acho que o meu corpo se podia habituar a isto. Desço à profundidade e completamente coberto, entrei no banho maria total. De olhos fechados, nada ouço, mas vou cozendo na lentidão, sem me importar. Tudo aquilo que os meus músculos ossos suportaram desde que aqui cheguei, todas as longas viagens, as caminhadas em altitude, as noites mal dormidas, parece encontrar aqui dedos curandeiros. Só percebemos a doença quando encontramos a cura. Quando volto à tona, sinto-me a renovar e por fim, volto os meus olhos para o céu.
À luz mínima, as estrelas são grãos de areia que brilham forte. Tantas que quase nem vejo o céu. A lua tirou férias e o panorama astral esmaga-me e é outro tipo de calor que convive com a água. Aprecio o Cruzeiro do Sul, constelação única nestes hemisférios e que nunca poderia ver nos meus céus. Com alguma atenção mais dedicada, os meus olhos seguem o rasto de centenas de estrelas que atravessam a cúpula cimeira de um lado ao outro, curvando. É o Arco da Via Láctea, algo tímido, mas cada vez mais visível à medida que o meu olhar se habitua à falta de luz. É um espectáculo astronómico que só é possível nas condições certas. Estas reúnem-se aqui, nos confins da cordilheira mágica, onde a noite é o despertar dos mágicos. Entendo no meu íntimo como é que os Antigos viviam tão fascinados pelo céu. Dominados e acossados pelo breu nocturno, tendo como luzes apenas as cálidas fogueiras que se mantinham a esforço, viam na plena nitidez este mesmo espectáculo que presencio, questionando-se talvez sobre o brilho pontilhado do firmamento. Consigo imaginá-los em teorias de Inteligências Superiores, a permanência de pirilampos no Universo, a ideia de que por muito que se conquista nos degraus do intelecto, há sempre algo fora do alcance, um mistério impenetrável, um reino longe dos olhos, longe do corpo físico. E a questão que não cala: o que é? Aquele oceano estelar no fluxo permanente e um certo consolo do que por muito que a escuridão cubra e domine, há sempre um local para onde podemos olhar onde a luz não acaba; e boiando eu num oceano muito mais pequeno, confiando às quatro arestas de um tanque, tremo quando penso na minha escuridão, de que como observar este arco nem sequer me lembro de que ela existe, de como me faz tremer. Não sinto sossego quando olho para o céu, mas domina-me um fascínio que substitui a realidade. Há noites em que isso basta. Esta é uma delas.
Existe um outro tanque mesmo ao lado daquele onde me encontro. Alguém me esclarece que aquele é o da água mesmo quente. Uma pessoa habitua-se no primeiro antes de passar ao segundo. Experimento. A táctica resultou, mal sinto a variação de temperatura. Não sei quanto tempo passou desde que me entreguei as cuidados minerais, mas não quero saber. Do pior instinto humano é começar a contar segundos quando estamos no sítio onde devemos. No local que conta, que nos faz sentir bem. Vejo alguns dos meus colegas de viagem a entrar e a sair e vou ficando. Hipnotizado por estrelas, pelo que me é superior, o rio da minha consciência navegando lácteo. Sei que passado uns minutos abandonei este tesouto. Voltei a calçar-me, enrolei a toalha à cintura e molhado, crortado novamente pela temperatura nocturna, regressei ao casebre e voltei a ter mais duas camadas. Mas neste momento, não penso sequer nas consequências de abandonar esta espécie de útero tépido. Esqueço-me da minha vida, nem quero saber dela. Perco-me na música dos astros e sou passado de mão em mão entre eles, no ritmo da infinitude. Se não penso, sou feliz; e neste momento, o meu cérebro recusa-se a deixar-me triste.
quinta-feira, abril 18, 2019
Perugrinação 18: Um arco-íris estampado
Acordo. Estou em Cusco novamente e o quarto de hotel é o mesmo, a cama recolhe-me de igual forma, tudo me é familiar; o Jorge, na cama ao lado, não se mexe, mas ouço-o. Pergunto-lhe se tudo está bem. Ele resmunga algo de início, depois clarifica que não se sente nada bem. Na noite anterior deve ter comigo algo que lhe fez mal e o estômago dá-lhe ares de carrossel de feira popular. O Peru tem provado ser, até agora, um perigo de saúde pública. Há de um pouco para todos. Podem falar o que quiserem do Quirguistão, mas há dois anos ninguém ficou doente. Não sei as bactérias da Ásia Central aprenderam a ser meigas por medo da peste bubónica, como um papão do mundo microscópico, mas voltei sem uma queixa. Uma hora depois, quando já estamos para sair, o Jorge atira a toalha ao chão. Não consegue sequer contemplar enfiar-se numa carrinha e enfrentar as estradas montanhosas nos próximos dois dias nos levarão aos confins recônditos dos Andes. Nem consegue sequer contemplar-se erguer-se da cama, quanto mais; mas está bem arrependido, porque o prrograma é de sonho, pelo menos para mim: uma visita a um sector menos desconhecido das chamadas montanhas arco-íris; e aventurarmo-nos pelas elevações de Ausangate, acima dos cinco mil metros de altitude, para fotografar lagos e rocha bruta a grande altura. É o que me move, é o que quero quando viajo: matar o meu corpo à conta de imagens e levitação visual. O Jorge não vem. Tantas vezes nos contam de como o espírito é forte, mas se o corpo não quer, o espírito exorciza-se na recriminação do quanto somos frágeis. Saímos do hotel e imagino-o deitado, acho que ainda nem com a noção do que vai perder ou de que atravessou um oceano para que algo tão prosaico quanto uma intoxicação alimentar o afaste do movimento do mundo. Somos tão pequenos e julgamos que o nosso tamanho é maior do que os intervalos da fortuna. O aleatório e o acaso são um recreio onde estamos quase sempre de castigo.
Nestes dois próximos dias, vamos aventurar-nos em cantos ainda mais recônditos do que Cuncani. Hoje, o nosso objectivo é visitar as chamadas montanhas arco-íris, uma curiosidade geológica a sudeste de Cusco. Depois, rumamos até ao interior dos Andes, com a ideia de passar a noite a quase cinco mil metros de altitude, perto de Ausangate, um conjunto de lagos de montanha. Portanto, estamos no meu elemento. Enquanto a carrinha se mantém no alcatrão, vou notando na disposição dos meus companheiros de viagem. Alguns deles ainda tentam gerir as maleitas que os impediram de fazer o trekking de Cuncani, e há uma sensação de cansaço geral; no entanto, ainda estamos bem dispostos e ninguém tentou matar-me até agora, o que considero sempre um sinal de bom humor. Não me sinto cansado, curiosamente, mas a montanha, no geral, alimenta-me mais do que me cansa. Quanto mais próximo me sinto da altitude, ainda que o oxigénio rareie e o corpo carbure a gasóleo, o meu ânimo levanta-se quase ao nível dos picos levados. Estou a entrar na fase final desta expedição ao Peru, aquela que mais desejava: perdido no meio dos montes, parece sempre que me encontro em momentos, o que é mais do que muitos podem dizer de uma vida inteira. A certa altura, metemos por uma saída à esquerda e a consistência do solo muda de imediato. O ritmo latino chegou aos assentos da carrinha. Tal acontece porque a partir daqui acaba o alcatrão. O que se segue afunila numa estreita estrada de terra batida, que nos primeiros quilómetros ainda atravessa casas. Isso muda com rapidez e vemo-nos no nenhures. O caminho sibila em subida e descida, as pontes são pretextos de troncos com placas de metal encimando, há bicharada que sabe ser dona destes troços. É um rali a muito menor velocidade. Raramente passamos os quarenta a hora. Se quiserem fazer uma pausa na leitura para confirmar isto, dirijam-se ao Google Maps e escrevam "Pallcoyo". É o nosso destino. Agora, verifiquem as estradas. Mesmo aproximando a vista. Nenhuma, não é? Elas existem, garanto. Não viajei na Carrinha Mágica. No entanto, a direcção de estradas deste país, como a da maior parte da América do Sul, tem uma noção muito vaga de acessibilidades. Desde que haja longas vias cruzando a nação de alto a baixo, considera-se o serviço público garantido. Aqui, tal como há uns anos no Quirguistão, o meio de nenhures é exactamente isso, sem exageros. Vive aqui gente, para que não se sintam enganados; mas para eles, é como se o resto do país não vivesse consigo.
Há que notar também, já agora enquanto carrinha pasta até ao nosso destino, que a secção das montanhas das cores que visitamos não é de todo a mais turística. Música para os meus ouvidos, claro, mas também por razões bastante práticas. Apesar de se ter tornado num chamariz turístico nos últimos dez anos, a descoberta desta maravilha geológica é recente. Se pesquisarem por relatos pessoais acerca deste local, encontrarão de tudo, desde uma demonização quase ridícula até um entusiasmo bacoco, onde fotografias carregadinhas de Photoshop dão a ideia da possibilidade de visitarem uma visão alimentada por LSD colocada a céu aberto. A maior parte das fotos e as histórias referem-se a Vinicunca, parte que não visitei, mas que, segundo o Pedro, corresponde a um percurso que aparenta ter bastantes parecenças com as formigas num carreiro. É a rota que a maior parte das operadoras turísticas escolhe precisamente por ser de mais fácil acesso. Os nossos condutores, exactamente os mesmos que nos levaram a Cuncani anteriormente, escolheram outra zona da montanha colorida mais isolada, inóspita e desconhecida. Fica no já referido Palcoyo. Ao contrário da maior parte das grandes cadeias montanhosas mundiais, os Andes geram ainda uma considerável actividade vulcânica, algo que se prende não só com a sua localização geográfica, em margem do Anel de Fogo do Pacífico, mas também com o seu próprio processo de formação. Ora, isto leva a que sejam profundamente complexos na sua composição. A chamada "Montanha Arco-Íris" é um bom exemplo disso, com toda a sua profusão de cores vindo dos vários minerais que à superfície tornam o planalto num caleidoscópio em forma de tapete. Só por isto já valeria a pena visitar este local; no entanto, e como em tudo o que é turístico, existe uma cultura do exagero que coloca na cabeça das pessoas uma ideia abusada daquilo que aqui encontrarão. Para mais, e como explicarei à frente, as condições climáticas são absolutamente importantes para apreciar esta maravilha.
A carrinha pára, mas ainda não chegámos. De maneira a limitar o fluxo de visitantes, existe um posto de controlo onde somos contados. É uma boa oportunidade para respirarmos um pouco de ar, pelas condições acredito que puro, e olharmos em redor pela primeira vez. Gentes quechua olham-nos enquanto tomam conta de vicunhas que pastam. Devem estar fartinhos de estrangeiros, logo não somos surpresa. O céu está malhadiço, mas o sol espreita e um pequeno riacho corre no sentido contrário ao da viagem, do lado esquerdo da estrada. Uma erva rasteira verdinha, quase branca domina a paisagem, mas já se notam os barreiros montanhosos, vermelhos picanha, que nos acompanharão nos quilómetros seguintes. Não há vestígios ainda do manto de mil cores. Tudo aprovado, podemos seguir. Pela janela, deixo-me seduzir menos pelos pigmentos e mais pelos fantásticos picos, alguns deles ainda com vestígios de neve, que guardam a paisagem. Cresce em mim o formigueiro de guardá-los na minha máquina. As curvas surgem mais apertadas e numerosas, sem abismos, mas ainda assim causando um ou outro calafrio. Há um silêncio reverencial que apenas se desfaz quando chegamos ao estacionamento. No exterior, sopra um ligeiro vento, frio, a altitude não se faz apenas temer na respiração. Na direcção de um longe que está perto, termina o pequeno trilho que teremos de fazer para o melhor ponto de vista possível. São dois quilómetros, que deve ser multiplicado por quatro devido à altitude. Por muito hábito que tenhamos ganho, estamos acima dos quatro mil e quinhentos metros. Os piores sintomas já não se fazem sentir, mas continuo com um corpo de beirão de bitola baixa. O melhor remédio é a paisagem. Palcoyo permite a visão extraordinária de um planalto ondulado, um lençol amarrotado tingido por garotos. As cores não são tão evidentes como nos posters cheios de efeitos digitais, mas os tons notam-se sem esforço. Predomina o vermelho carne do barro, uma estrada barrenta que se estica, mas a espaços, laranjas e azuis, amarelos e o verde daquele vegetação andina quase indestrutível compõe um quadro de Vincent Van Ooooohh. A neve não derreteu completamente e tinge todas as superfícies como uma brancura onde as cores se salientam. Enquanto faço o trilho, capto tudo isto, de vez em quando cruzamo-nos com indígenas a fazer o seu papel no turismo peruano.
Do meu lado esquerdo, ergue-se o ponto mais alto deste local. Algumas pessoas sobem até lá, é um espinhaço de cão, cristas de pedra verticais e finas, como o dorso de um estegossauro, meio tapadas pela alvura neveira. Quero ir, mas o meu corpo não obedece. Vou terminar este trilho e logo se vê. Não nos perdemos, porque um corredor de pedras laterais conduz-nos exactamente onde devemos estar. É daqui que se apresenta um panorama irreal, quilómetros e quilómetros de delícia, a contorção muscular do planeta enquanto faz a musculação dos meus sentidos, ao longe fiadas de montanhas completamente tapadas por neve. É momento de Einaudi. A pele malhada de um leopardo oferece-se nos montes, as nuvens passando à frente do sol, criando jogos, hipnotizando na medida em que olhar para elas é perder o foco deste mundo e aparecer noutro onde a realidade é apenas esta beleza, só, sem dor, sem mácula, sem qualquer outra coisa que não seja uma delícia que na pele escorrega. São os olhos quem vê, é o corpo que se transforma num imenso pare de diversões. Atrás de mim, altitudes coloridas; à minha frente, o branco, soma de todas as cores, cobre damas de honor num casamento entre o meu eu verdadeiro, que se me foge, que se esconde, que eu nunca permito, com aquele que todos os dias aparece e é. Um eu que me pesa e pesa aos outros, um eu que nunca consigo crer que alguém goste ou queira simplesmente partilhar, de quem penso sempre que se tem piedade ou pena. No momento em que o mundo é isto, apenas o panorama, apenas a soma entre o que vejo, o que ouço, o que penso, o que algures no meu corpo clama o teu nome em impulsos irresponsáveis- É aquele ponto de fusão que quase atinjo, que procuro desde que cheguei ao Peru, pelo qual embarco em viagens que me custam mais o corpo do que o dinheiro, que me enchem de uma dose temporária de esplendor mas que nunca explanam a dor. A dose regular, a filosofia da fuga, a presença simples do que é maior do que eu. Parado neste miradouro, em Palcoyo, não sei explicar o que me atravessa. É um tremor que me arranca da inércia, mas que ainda assim não me põe a mexer. Transcendo o mundo, mas nunca me consigo transcender a mim próprio.
E sento-me. Deixo-me estar. Tantas vezes aqui falo de andar de um lado para o outro, dos locais e das viagens, que me esqueço quase sempre de referir os meus melhores momentos: aqueles em que simplesmente estou. Aposto que há dezenas de coisas a acontecer em meu redor, pessoas a pedir fotos, passos dados, olhares trocados, todo um múltiplo de um todo. Mas consigo não viver nesse bulício e estar só comigo. Muito o que de mim brota depende do que vejo. Estou à altura do que os meus olhos gravam e não nos confins daquilo de que me acho capaz. Neste momento, sou tanto quanto aquelas montanhas nevadas de que falei e em mim reflectem todos estes veios de mineral que dão cor aos montes. Não se vê uma única casa ou edifício, só o que definem de nenhures, que tem tanto, tanto. Há locais de que já vos falei aqui onde apetece só ficar e nem seguir viagem, ficar e nem sequer partir, sítios que são mãos a envolver-nos, abraços que ficando tempo suficiente, se tornam segundas peles. Daqui a dez minutos, terei de me levantar e regressar à carrinha, espera-me Ausangate. Mas fico lá na mesma. Ainda depois de regressar. Ainda depois de estar aqui à frente do computador a teclar e a escrever. Na verdade, ainda lá estou, em Palcoyo enquanto escrevo. Só não tenho essa noção.
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