terça-feira, junho 11, 2019

Perugrinação 22: Finisterra em forma de gente



Já devem ter desconfiado que não escrevo as minhas crónicas de viagem mesmo na hora. Um caderninho vai sempre no bolso da mochila, com uma caneta a tiracolo. Anoto as impressões e os momentos, pequenas frases que me amparam a memória, uma bengala feita de gatafunhos. A minha capacidade de reter momentos e até cheiros sempre surpreendeu e explica porque é que pareço saber tanta coisa, quando na verdade sou ignorante noutro tanto. É um exercício não tanto de recriação, mas quase de bruxaria, invocando o passado como demónios que se alinham neste interface do Blogger; e sempre que escrevo é como se regressasse. Parte do prazer ladino de compôr estas recordações é egoística e egocêntrico tambem, buscando elogios, palavras simpáticas, quase que querendo confirmar de que não perdi um certo jeito para escrever. Mas a outra é o simples regresso onde já estive e provavelmente não volto. Tem sido sempre assim nas crónicas finais das minhas viagens anteriores, confirmei há pouco. Esta, no entanto, é diferente. Não porque não envolva tudo isto, também existe; mas simplesmente porque esta história te um fim diferente, um outro objectivo. Anunciei numas das primeiras divagações de viagem que o périplo pelo Peru teria algo de Odisseia, literalmente no seu sentido grego: como Ulisses voltou a Penélope, também eu regressaria, mas a alguém que nunca conheci.


Vi a minha sobrinha pela primeira vez no dia 4 de Setembro. Umas duas semanas depois de ter nascido. No seu berço, é um pouquinho de gente e tanto parece vibrar dentro dela, latente, dormente e adormecido até, porque ela tem os olhos fechados e ferra. Os bébés causam-me sempre muitas perguntas, principalmente como neles pegar, maneiras infindáveis de entretê-los e exercícios de paciência para suportá-los. A minha tolerância para com os bébés dos outros é muito curta. Sofro da maldição/benção - depende do dia em que me perguntarem - de ter um grupo de amigos onde muita gente ou já fabricou um rebento ou está com ideias disso e pelo menos encaminhado numa parceira. Eu não. Continuo naquela calamitosa solidão que é o meu estado natural, numa garantia de que enquanto permanecer só, o mundo não escorrega. Há dias, vários, mais até do que desejaria, em que felicidade alheia me incomoda. Não é por mal, não odeio ninguém. Incomoda-me por incapacidade própria de alcançá-la, como se não merecesse ou fizesse por isso. Quando a minha sobrinha acorda, encolho-me e mesmo querendo pegar-lhe, nem em mim pego. Preciso de alguns segundos e nos meus braços, vou fingindo que é assim, que posso e sei, mas sei que não posso, e os olhinhos pequenos, castanhos, ainda remelentos, nem me reconhecem. Na sua cabeça binária, sabe que não sou nem o pai, nem a mãe. Apenas um mostrengo alto, pelos na cara e assustador. Demorará alguns meses até me aceitar como tio, mas lá chegará. Por agora, sou um borrão.


Queria contar-lhe sobre tudo o que vi. Sobre as prendas que lhe trouxe. Sobre como o tio viu outros como ela, mas morenos e de pele encarquilhada, pressionados pela montanha, a tiracolo ou às costas de uma mulher quechua. De como o mundo vai ficando cada vez maior para mim a cada ano que passa. De como a partir deste dia, sempre que viajo, tenho o prazer de voltar para aquele pedacinho de pessoa. Gostava de lhe contar de como daqui a uns meses, fica maior e os olhos abrem mais, quase parece uma personagem de anime. De como temos brincadeiras próprias e coisas que só eu lhe faço, de como chora se está com birra e fica mais de cinco minutos ao meu colo, de como já estende as mãozinhas quando me chego a ela. Outras viagens. Não são os pináculos andinos, os mistérios de Nazca e Macchu Pichu, as lagoas perdidas na montanha, as estradas serpentinas e as rectas por entre aldeis e vilas perdidas no lixo, nem a Lima do fin de siécle, nem salinas encaixadas em altitude. O Peru fica lá longe, mas levar a Beatriz a viajar no meu colo é, em si, uma aventura que me sabe de apetite. Imagino-me por vezes a contar-lhes estas histórias, acordar uma curiosidade que ela nem sabe ter para galgar quilómetros e conhecer continentes. De como quando lhe perguntarem porque viaja tanto, a Beatriz responde "Havia um tio, como vivia sozinho ocupava-se a estar assim só onde se sentia mais em casa" e pensa algures nas histórias e nas memórias, com caderninho ou sem ele, talvez tirando fotos, talvez só guardando tudo com os olhos.


Quando escrevo esta última crónica, ela está longe. Não tanto quanto a América do Sul, mas igualmente mágica. Enquanto cravo estas palavras, sei para onde me leva a próxima rodada, mas são surpresas de outras calendas. Da Latina América, guardo uma redescoberta de algo que em mim morrera e agora aparece, um empolgamento do fogo secreto dos filósofos. É o mais importante, foi por isto que comecei a viajar: recuperar-me, recuperar o que se apagara pela erosão de anos. Uma colecção que se recupera para um dia, talvez, ser o tio que a Beatriz merece. Não que tenha encontrado isso no Peru. Mas quando, cá em baixo, a noite cai e não consigo escapar daquele mal-estar que só os abandonados sentem com força, recoloco-me em Ausangate e mesmo isolado, não consigo sentir-me remoto. Estou onde quero, onde mereço. E só por isso, o Peru manteve o estatuto que sempre me atribuíram - ave rara. Que continuará a voar, por muito estranho que o bater das minhas asas soe.