Possuo vários defeitos, em maior ou menor escala. Um dos mais intensos e perturbantes é a minha capacidade de me distrair e abstrair da realidade com a mesma facilidade de um peixinho dourado. A minha mãe escreveu uma vez numa coisa de escuteiros que era difícil conviver com um filho para quem a realidade passa para segundo plano. De facto, muitas vezes, o mundo real é apenas um pormenor na minha cabeça. As reflexões a que me entrego, e aquilo em que penso metem-me a quinta mudança em direcção a uma realidade paralela; e nem nós de cordel num dedo, ou cruzes na parte de trás da mão me podem salvar.
Penso que foi por isso que o meu corpo, mais ciente e existente na realidade do que a minha mente (já dizia o velho Konigsberg que a mente tem todas as aspirações nobres e pensamentos profundos, mas o corpo é quem se diverte mais), cirou um mecanismo que prova, sem apelo, de que não podemos fugir ao passado, nem mudar completamente aquilo que somos. Basicamente, convenceu a minha cabeça de que perdi tudo o que trago, o que me obriga a rebuscar bolso, mochila e qualquer apêndice para confirmar o lugar dos objectos. Isto é completamente irracional, até porque em muitas vezes, sei perfeitamente que é impossível ter perdido o que quer quer seja. Mas ali está o alarme, lembrando-me que uma vez distraído, é-se sempre, e que mais vale ter cuidado.
E resulta. Num ano passado fora de casa, nunca perdi qualquer chave, o que, para alguém que um dia foi de ceroulas para a escola porque se esqueceu de que as tinha vestidas, é grande proeza. A evolução existe, mas a persistência da memória é o seu maior obstáculo.
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