Nunca gostei de Fórmula 1, mas quando era criança, adorava Ayrton Senna. Nem sei bem porquê, talvez pelo capacete. Não tinha idade ou gosto por carros suficiente para perceber o que tornava o brasileiro um comedor de asfalto tão excepcional. O homem ganhou muita coisa, no período em que, precisamente, ainda tinha idade para me maravilhar com heróis no genuíno fascínio que só o período infantil proporciona, e o dia em que ele morreu foi daqueles que me lembro onde estava, o que vestia e até o que estava a comer, enquanto consegui. Fiquei sem apetite quando vi o Williams a espetar-se naquela curva em Imola, num fim de semana embruxado onde o objectivo do cosmos era o de que ninguém saísse com vida daquele circuito. Senna morreu, como qualquer herói trágico, num período de queda, com indícios e ironias trágicas que apontam para a sua morte: conta a irmã que nesse fatídico primeiro de Maio de 1994, Ayrton abriu de manhã a Bíblia, ao calhas, e a citação que lhe saiu na rifa dizia que Deus lhe ia dar o maior dos presentes, Ele mesmo.
O documentário "Senna" do interessante cineasta britânico Asif Kapadia, é um tributo panegírico à carreira do piloto britânico. Fugindo a lugares comuns da técnica documental, Kapadia evita entrevistas e comentário audio, e utiliza apenas imagens de arquivo (algumas inéditas) e as palavras dos intervenientes para contar a história dos dez anos que Senna passou na Formula 1. O que dali sai é uma estrutura de documentário ambiciosa, onde o filme se desenrola como um bom thriller, numa história real quase talhada para ficção: um homem que desafiava a morte em cada guinada de volante, e que acaba mesmo por morrer; teorias da conspiração envolvendo franceses (Alain Prost sai deste documentário como um fuinha queixinhas); ironia trágica que perpassa todos os momentos do filme; um período onde um homem que considerava o seu génio proveniente de Deus combate contra máquinas informatizadas, e perde. Senna surge como um tipo inicialmente ingénuo, que acreditava no puro prazer de conduzir, e que mudou as regras políticas de um jogo que acabou por tramá-lo. Numa era em que o Brasil era sinónimo de pobreza extrema, ele era um herói, visto pelo povo brasileiro como um foco de luz no seu mundo privado de trevas. A razão pela qual demorou quase 20 anos até alguém se lembrar de fazer algo deste género sobre o piloto brasileiro é algo que me ultrapassa.
Quando chega o fim de semana fatídico de Imola, todas as imagens estão carregadas daquela tensão de quem sabe o que vai acontecer; e por isso, quando acontece, o seu impacto não se diminui mas sim amplifica-se. Daí até final, o filme ensaia uma certa dimensão mítica de Senna, e isso é bonito, mas quando desce ao domínio privado, mostrando as imagens da família e amigos de Senna em redor do caixão, e cruzando isso com momentos anteriores do filme, este documentário alcança uma carga emocional rara no género, e deixou-me em lágrimas como muito poucos filmes me deixaram.
Saber que mais nenhum piloto de Formula 1 morreu após Senna apenas acentua ainda mais a tragédia. Como se o brasileiro marcasse o fim de uma era, e nada pudesse ser igual depois da sua passagem na Formula 1. De facto, isso é totalmente verdade.