Criou polémica, num tempo não muito distante distante, o momento de julgar Leni Riefenstahl na sua morte. A divisão foi notória, e notou-se um certo desnorte nas massas mediáticas, que se confrontavam na visão definitiva desta mulher. Por um lado, eis alguém que só terá tido Albert Speer como superior no esforço de construir uma visão do regime nazi espelhado na arte e na imagem, uma pessoa que contribuiu definitivamente para a eternidade do fascínio com o nazismo, e que, para além disso, tinha tido até uma amizade pessoal com várias figuras do regime alemão, Hitler incluído, nesse período; por outra, surgia uma artista fascinante, uma das cineastas tecnicamente mais dotadas da primeira metade do século XX, pioneira e quase criadora de regras elementares do cinema documental, e que na fase do pós-guerra, quando a associação com o nazismo arruinou uma possível carreira cinematográfica, forjou um interessante percurso fotográfico, na captação da vida marinha e do modo físico de várias tribos africanas. Como julgar uma personalidade com tal complexidade? Alguém cuja obra podemos louvar, admirar e até querer que permaneça escrita na eternidade do tempo que há-de vir, mas que no entanto, tem um passado político questionável, no mínimo? Por onde pegar? O que importa mais: o talento ou a consciência? E quem somos nós para julgar moralmente alguém tão completamente fora do nosso tempo? Somos humanos, pois claro; e fará sempre parte de nós o instinto da superioridade moral e do analfabetismo histórico e temporal. É isso que nos transforma na espécie mais arrogante que já existiu.
Portugal viu-se confrontado com este dilema na semana passada, quando correu pelo Facebook que José Hermano Saraiva, antigo ministro do Estado Novo, e que nunca escondeu não só uma forte simpatia por Salazar, mas também um certo saudosimo do tempo do Estado Novo, tinha falecido. O nosso moderno tribunal social moderno, essa rede social onde boato soa a verdade e qualquer grunho sem a habilidade de pensar complexamente pode ditar sentenças com a certeza própria dos levianos, rapidamente se pronunciou, e os veredictos de culpado e inocente desfilaram, paralelos e em guerra. Em breve, a polémica tornou-se séria, e mostrar pesar pela morte do historiador era passar por simpatizante do fascismo. No dia seguinte, só para reforçar o horror do professor Sarava, este já era comparado aos médicos nazis, sem qualquer tipo de piada. Eu acho fascinante esta aparente... purga que é feita dos homens que colaboraram no Estado Novo, por parte de indivíduos que têm, claramente, uma memória muito corta e vaga, o que é irónico pelo trato que dão a alguém que, num programa específico, visitavas os horizontes dessa mesma memória.
Não tento, sequer, analisar quem foi ou melhor, o que simboliza José Hermano Saraiva. Politicamente, é público para quem trabalhou e quais as suas posições. O espantoso é que nunca o tenha negado, nem sequer feito um mea culpa que muitos outros realizaram sem sinceridade. Pode-se dizer muita coisa dos homens saídos do período mais negro da nossa História do século passado; no entanto, alguns mostraram um carácter que já não existe na democracia, o que não deixa de ser, obviamente, irónico. É incrível também como Saraiva, que, repito, sempre assumiu publicamente as suas ideias e o seu passado, tenha navegado por entre as águas turvas do PREC e do 25 de Novembro, e de todas as intrigas de esquerda (gostoso, quando Cunhal nos quis transformar num estado de tipo estalinista... E viu-se algum desses moralistas a brandir tochas contra o santo comunista português? Claro que não: no imaginário popularucho, a esquerda é uma religião sem ópios, mas com muito povo), transformando-se numa incontornável figura dos nossos media. Um cientista incontornável? Longe disso, para quem faz da ciência histórica uma missão; mas poucos (ninguém, diria) divulgou tanto um gosto pela cultura, pelo saber e pela memória como ele o fez.
Não tenho vergonha de admitir que admiro José Hermano Saraiva, e não tenho qualquer problema com isso... Porque o teria? Tornar tudo o que é histórico num teste ideológico acabará simplesmente com vazio. Toda a gente, e sem exagero, tem um lado negro por onde pegar. Mandela era um terrorista, por exemplo; a Volkswagen, a Siemens e a Hugo Boss trabalharam para os nazis; Miguel Ângelo era um misantropo que odiava mulheres e as considerava seres inferiores; Byron dormiu com a meia-irmã; D. Dinis fornicava com tudo quanto mexia; a religião católica matou milhões de pessoas; o comunismo também; Sá Carneiro foi ministro de Marcelo Caetano; Picasso batia na suas mulheres; Wagner tinha um fascínio por governos ditatoriais, e Beethoven amava a figura de Napoleão; Saramago fez purgas no DN, em jornalistas que não eram comunistas. Quer-se dizer... A sério, podemos estar aqui dias a fio a citar nome, associações e eventos e de uma maneira ou de outra, há uma maldade latente ou uma grande mancha de pecado a cobrir a sua reputação.
Conheço muita gente que passou pelo 25 de Abril como revolucionário, e que hoje se entretém a destruir o país, debicando-o, amolentando-o, acabando com ele. O muito citado presidente da AAC no tempo em que Saraiva era o vilipendiado Ministro da Educação das cargas presidenciais foi, e é, um homem de mão do PS, que passou de cargo em cargo, a construir reputação política, e contribuindo para a teia de interesses que nos destrói, fazendo o percurso contrário ao do comunicador; e para esse não há ameaças ou vaias, mas louvores quando a crise académica surge como motivo de celebração de uma resistência suposta ao regime, verdadeiramente propulsionado por motivos bem mais prosaicos. A História é uma verdade, mas para quem procura ler, e não mandar bitaites; e a memória é essa bruma definitiva, fixada por amnésicos. Coisa gira, esta.
P.S: É curioso que o próprio José Hermano Saraiva tivesse a própria noção das suas limitações e do seu papel, Numa entrevista ao sobrinho, José António Saraiva (um indivíduo asqueroso e chico esperto, esse sim), referiu que não era modéstia quando se referiu ao irmão António José Saraiva (uma das figuras intelectuais mais brilhantes do século passado) como o Sol, sendo ele a Lua. Diz ele: "Não é falsa modéstia dizer que o ele era muito melhor do que eu. Era mesmo assim. Ele tinha uma luz própria, intensa, que iluminava tudo. E eu limitava-me a reflectir a luz dele. Era assim que eu sentia..." Claramente, um homem sem qualquer noção de si próprio.