quarta-feira, julho 11, 2012

Auto de fé


Com o passar dos anos, fui aceitando com mais naturalidade que há pessoas possuidoras de opiniões bem distantes das minhas. Não querendo fazer um falso retrato de mim, descrevendo-me como uma pessoa diplomática e cordata, tenho a noção de possuir hoje uma flexibilidade maior para aceitar pontos de vista diferentes dos meus. É algo que se vai conquistando com a idade, e, acima de tudo, conhecendo pessoas mais inteligentes e capazes do que nós em explicar aquilo em que acreditam de forma lógica e coerente. São raras de encontrar, estas pessoas, e sinto-me alguém melhor por ter encontrado até agora um número notável de indivíduos assim. Acredito que conhecer pessoas que são melhores do que nós (e existe sempre alguém melhor do que alguém) faz-nos crescer e evoluir.

Existem, assim, ideias que continuo a abominar, pois não penso haver razão lógica qualquer para que se sustentem. A existência de corridas de touros é uma delas. Outras luminárias tentaram já explicar o fascínio que espetar farpas no lombo de touros exerce sobre pessoas que, seja concedido isso, não se limitam apenas a um estrato social, como argumentam alguns amigos dos animais. Desde o camponês mais ignorante até ao CEO mais ignorante, todos gostam do espectáculo; e não podiam ter arranjado melhor paladino na defesa da causa do que Miguel Sousa Tavares, o indivíduo que negou corrupção no futebol português por parte do seu clube mesmo na cara das evidências, e se entreteve a roubar parágrafos inteiros da sua obra "Equador" ao livro de um par de escritores franceses. A minha antipatia por esta figura é por demais conhecida e a única coisa positiva na sua truculência e falta de senso, anulada a espaços, é a de fazer a sua mãe uma mulher ainda mais extraordinária. Penso que um dia alguém falará da relação que a minha própria mãe tem comigo em termos semelhantes, mas eu, ao menos, não tenho um mau gosto clubístico tão grande.

Como a falta de senso não só não inibe alguém de escrever em jornais, mas até aumenta as suas possibilidades no mundo da crónica jornalística, Tavares publica no Expresso uma crónica semanal, e há umas semanas, o tema foi a destruição do património público do país, na sua vertente animalesca. Touradas, caça, pesca e circos com animais vêem-se zurzidos e enjaulados por este Governo, como se fossem os próprios animais que degradam. Temerariamente, concedo ao homem de voz cava razão num ou noutro ponto menor, como seja o extremismo a que a caça e a pesca, que na sua maioria são feitas por gente que de facto dá uma utilidade às peças capturadas (come-as) sofre de Associações de Direitos de animais. No dia em que um tipo não puder usar uma cana de pesca, algo da nossa natureza morrerá. A Natureza é como é, e a solução para esta se manter é viver num equilíbrio com ela, não alterando a ordem natural das coisas tornando-nos menos capazes do que somos.

Mas depois, entram as restantes actividades, e Sousa Tavares utiliza para defendê-las a lógica economicista que critica nas medidas deste governo, por exemplo. Eu desconheço, de facto, a força económica dos circos, mas reconheço que a tourada é importante, turisticamente, para certas zonas do país. Agora pergunto: que terra de pessoas de bem quer ser conhecida por ter desenvolvido como máximo expoente cultural um espectáculo que degrada, maltrata e mata animais com o único intuito do espectáculo? OU de senhores e senhoras, que vestindo-se à boa maneira dos marialvas, pretendem atingir uma superioridade em relação a algo que nunca terão na vida? É isto uma actividade económica? Hoje em dia, tudo o que seja degradar é uma actividade económica, por isso não estranho que este nobre escriba não distinga as duas coisas; e o mesmo se aplica ao circo, esse espectáculo deprimente, onde os animais são chamados à arena para fazer umas habilidades patetas, e quando retirados dela, recolhem-se a uma jaula, acorrentados e vulgarizados. É incrível como Sousa Tavares gaba a nobreza dos animais, sem se aperceber precisamente de que faz parte dos montanheses de Danton.

A piéce de resistance vem no último parágrafo, onde é lançado o argumento mais comum para defender este género de espectáculos: a tradição. Em relação a isto, e para acabar, digo o costume: Portugal possuiu, ao longo da sua longa História, várias tradições que foram extintas por se considerarem datadas. Uma delas eram os autos de fé, onde pessoas consideradas hereges eram levadas para os largos centrais das cidades, julgadas e queimadas vivas, perante o júbilo da multidão e alegria da assistência. Havia grandes cortejos, e os elementos mais influentes da sociedade apareciam e gostavam. No entanto, algures no século XVIII, achou-se por bem acabar com isso, apesar da sua popularidade e tradições de mais de 300 anos, porque era desumano e idiota. Ficámos com o lamento de se acabar um costume tão bom e antigo, mas a vida é assim; e para além disso, ó Miguel, o Hemingway, que tanto gabou a tauromaquia, também achou que uma boa solução para resolver os problemas da vida era dar um tiro de caçadeira na cabeça. Tira daqui as conclusões que quiseres, pá.

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