quinta-feira, novembro 29, 2012

Hipermetropia



Já não é de agora que considero a disciplina de voto algo que vai contra qualquer tipo de comportamento democrático básico. Não é mais do que um conjunto de pequenas ditaduras, politizadas, que controlam as acções dos seus membros através da chantagem. O que está em jogo, para estes deputados, é o seu futuro na próxima legislatura; e num país como o nosso, que cria colónias extensas de homens e mulheres com uma espinha dorsal mais maleável do que plasticina, não é admirar que prefiram garantir a sua sobrevivência a cumprir o dever para que foram eleitos pelas populações. Que diabo, muitos de nós reclamam, mas fariam o mesmo. Da maneira como este clima de medo pelo futuro está instalado, ter opções para o futuro é um luxo a que só não se agarra quem é burro, ou em princípios. Esta estratégia não é mito diferente do pendor corporativista não oficial do Estado Novo: garantem-se favores a pessoas que nos favoreçam a politica e economicamente e mantém-se o status quo desejado, por muito que prejudique a população em geral.

O Orçamento de Estado de 2013 marca um momento interessante na democracia portuguesa: ninguém, a não ser 10 marretas no Governo, parece concordar com ele. A Oposição manifesta-se ruidosamente, o PS transfigura-se para Oposição só para poder protestar com aparente legitimidade e os deputados do PSD E CDS-PP aparecem melindrados, dizendo que é necessários rever algumas medias. No entanto, o máximo que conseguem reunir na sua revolta é uma carta com uma dúzia de chavões inofensivos que soa aos gritos desesperados daquelas crianças que fazem birra, mas sabem que vão comer sopa na mesma. Passa peça cabeça de alguém que não se concorde com algo que se vai aprovar? Aparentemente sim, e considera-se normal. Pedro Passos Coelho negou enfaticamente, numa entrevista que houvesse cisões na coligação, assoberbando que se tal coisa existisse, o CDS-PP não teria votado afirmativamente na proposta orçamental. O cinismo arrepia, porque até o Zé Tolas que só cumpriu a 4ª classe e cujo único Marx que conhece tem como primeiro nome Richard, reconhece as movimentações que serpenteiam no lusitano directório. Se antes tudo passava despercebido, agora só quem é verdadeiramente sagaz consegue criar uma capa fina de distracções; e Passos Coelho é mais óbvio do que uma boa de macadame num campo de algodão.

Nada que importune o primeiro-ministro. Com um braço-direito que representa o papel de Tom Hagen na família Corleone, embora sem a pinta de Robert Duvall, trucida escândalos atrás de escândalo, asneira atrás de asneira, com a confiança que só pode ser devida a um ego inchado como um balão de ego. Auto-confiança e governação não se anulam numa boa governação. Alguns dos nossos reis mais proeminentes tinham um ego que reduziria qualquer elemento masculino da "Casa dos Segredos" a um elemento de decoração, mas temperavam isso com bons conselheiros e uma capacidade de compromisso. É verdade que D. Afonso Henriques correu a mourama à espadeirada, mas quando pôde, resolveu a conquista de cidades pela via diplomática, permitindo a coexistência entre muçulmanos e cristãos (e muitas vezes judeus) no espaço da mesma cidade, com regras exigentes, mas direitos para as várias religiões; D. Dinis permitiu a presença de proscritos religiosos no nosso país, através da formação de novas ordens, e muitas vezes contra a vontade de boa parte dos reis europeus, conseguindo com isso uma vantagem que se revelaria importante na época das Descobertas; D. João II era um homem implacável, mas sábio o suficiente para permitir a presença de ciências exteriores à Cristandade no seu seio, o que contribuiu para a nossa superioridade temporária na Europa. Estes três exemplos reconheceram o óbvio; há via para lá do seu umbigo e num mundo de bem, pretende-se que o bom senso seja um auxiliar importante de governação.  Passos Coelho que não acredita nessas coisas: usa Vítor Gaspar como o seu conselheiro e tudo aquilo que delineou em plano bem antes de ser eleito como primeiro-ministro é feito em seu nome, e de uma entidade obscura que nega num dia o que disse noutro.

Estamos bem arranjados. Até porque não acredito no governo do povo como o mais justo. Não acredito na capacidade de decisão de uma entidade múltipla que revelou ao longo da História o bom senso de eleger Hitler, de apoiar Pol Pot e de carregar aos ombros Tony Carreira ao pedestal do estrelato. Ficamos com quê? O vazio; mas mesmo esse, calculo, corre o risco de virar paraíso fiscal. 

quinta-feira, novembro 22, 2012

É por, ahm, ali


Nunca me deu para pensar nos trinta anos, e continuo a achar algo ridículo que se faça dessa idade um ponto de crise existencial profunda. No entanto, é um facto que foi poucos dias depois de ter ultrapassado essa marca de idade que se me aflorou a destruidora vontade de reflectir sobre o meu rumo. Foi um acto de idiotice superlativa, pois claro, pois quando se é neurótico na escala em que actuo, essa simples dúvida precipita semanas de sofrimento atroz apenas comparável ao dengue na Madeira. Para um neurótico, uma dúvida não é apenas uma lacuna de conhecimento: cria uma manada de gnus cegos a cavalgar pela nossa mente, em círculos, a pensar que um gato doméstico toma proporções de leão feroz.

Não é que a pergunta seja de pouca monta: qual o meu rumo? Neste momento, sou honesto e afirmo que desconheço por completo. Cheguei a um ponto de total desmotivação pela vida que orgulharia o Clube de Niilismo de Bremen, pois não lhe encontro qualquer sentido, nem qualquer objectivo. Acredito que somos nós que orientamos o nosso percurso de vivência, que críamos os objectivos e que as nossas lutas para cumpri-los, entretecidas, formam aquele tapete aladinesco a que vamos chamando vida. No entanto, os retalhos da minha vida não existem. Não consigo criá-los, porque simplesmente não me apetece. Tomara que fosse algo de pontual; infelizmente, espalhou-se para todos os campos da minha vida. Dou por mim a perder orgulho naquilo que fazia de mim Bruno, e a sentir a fuga dos talentos que me faziam pensar que não era vulgar. Ou seja, estou a perder-me, e àquilo que considerava eu.

Ora, a partir do momento em que nos perdemos, como é que nos julgamos capazes de encontrar o resto? É aqui que a minha reflexão pára. Por isso, estou disposto a voltar a mim, seja o que isso for. A reler-me, a descrever-me, a descobrir-me. Nada de reinvenções, que são uma treta. Apenas parar e olhar-me. Não será bonito, mas aplicando uma regressa básica do engate, às vezes, para se conseguir a miúda bonita, é preciso passar algum tempo com a amiga feia. Era nesta altura que pessoas com menos classe fariam um trocadilho com uma das minhas alcunhas de infância. No entanto, este é um recanto onde a classe é tão necessária quanto um esfregão de palha de aço nas virilhas.

quarta-feira, novembro 14, 2012

Razões




Depois de tirar o veneno, é isto; e até mais. Mas o mais está distante. No entanto, foi para isso que nasci com pés.

Be drunken
Always. That's the point.
Nothing else matters; If you would not feel the horrible burden of Time weigh you down and crush you to the Earth,
Be drunken, continually.
Drunken with what?
With wine, with poetry, or with virtue as you please.
but Be drunken.
And if sometimes on the steps of a palace or on the green grass in a ditch or in the dreary solitude of your own room
You should awaken and find the drunkenness half or entirely gone
Ask of the wind ,of the wave, of the star of the bird, of the clock of all that flies, of all that sighs, of all that moves, of all that sings, of all that speaks, Ask what hour it is, and wind, wave, star, bird or clock will answer you,

"It is the hour to be drunken
Be drunken if you would not be the martyred slaves of Time.
Be drunken Continually, with wine, with poetry or with virtue, as you please."

Baudelaire

terça-feira, novembro 06, 2012

As cinzas da Angela



O meu pai tomou na sua vida, tenho a certeza, decisões questionáveis. Ter-me poderá ter sido uma delas, de acordo com um certo segmento de conhecidos e ex-amigos; mas comprar o Correio da Manhã aos domingos, de há uns anos para cá, é reveladora de um atroz mau gosto que nunca suspeitaria existir num homem que devota a uma Vespa azul clara clássica um amor terno e paternal, passeando-se por ela na ruas de Ceira como quem acha que é dono de um qualquer feudo.

Ao domingo, o jornal traz um suplemento revisteiro que, custa-me dizer, inclui por vezes artigos interessantes. Por muito sensacionalista que o diário jornalístico seja, o seu apêndice domingueiro tem o senso notável de chamar a si bons temas de reportagem e alguns cronistas que trazem qualidade ao jornal (João Pereira Coutinho, mesmo que seja um direitista reaccionário; Adolfo Luxúria Canibal, uma surpresa para quem pensa que os Mão Morta são os Cradle of Filth portugueses), embora haja nomes dispensáveis (Pacman já lá não está, mas ainda permitem a Joana Amaral Dias a triste ilusão de que percebe algo de cinema e pode escrever sobre o assunto). A edição desta semana trazia um curioso artigo onde se pedia a diversas figuras públicas (sim, porque sem as suas palavras sábias, a sociedade morreria... e a revista não venderia) para escrever o que diriam a Angela Merkel, que daqui por uma semana visitará este extremo da Europa. Pois claro que é um passe para gente que percebe bastante de barulho, e pouco de tudo o resto, dizer enormes barbaridades. São José Correia revela sapiência quando afirma que não quer dizer nada (quando não se sabe do que se fala, estar calado, o silêncio e o recolhimento são as maiores virtudes), Rui Reininho invectiva-a a ir a sítios sobre os quais ele próprio já escreveu musicalmente, e o asqueroso Mário Nogueira, um sindicalista em versão parasita, igual a muitos outros que a minha mãe descrevia à mesa quando era pequeno (e substituíram, no meu imaginário, o Papão) lembra a Merkel, com um gosto questionável, os juramentos de Nuremberga.

Bastam uns minutos de passeio pela avenida pública do Facebook para descobrir que nem Nogueira está sozinho na suas patetices  nem a articulação de três ideias diferentes parece estar na moda em Portugal desde, pelo menos, o início do século XX. A primeira-ministra alemã é comparada a Hitler e vestida de nazi variadas vezes, e as suas palavras e imagem distorcidas até um ponto que me parece ridículo, que é, aliás, uma palavra que vai descrevendo o nosso país em várias situações, à falta de uma mais meritória e agradável. Já várias vezes comentei a estupidez e perigo de se cruzarem situações actuais com os espectros do totalitarismo que têm muito pouco a ver com as mesmas. Em Portugal, não é novo. Salazar é tornado zombie quando convém, e o Estado Novo parece estar aí à esquina a cada medida impopular. Nos últimos anos, publicou-se também bastante literatura acerca do ditador de Santa Comba Dão, mas como o historiador António Araújo teve a oportunidade de comentar numa excelente entrevista que li há tempos, a maior parte é lixo e mostra-se incapaz de lidar correctamente com este período da nossa História. É, aliás, questionável que tenha ficado completamente no passado, mas porque, ao contrário do que pensamos, ele não desapareceu realmente. Merkel, como símbolo da nossas frustrações (cargo que vai passando de corpo em corpo conforme os boatos que circulam no Facebook) é vítima desta tendência, que ultrapassa o nosso país, e chegou até à Grécia, num conjunto de manifestações patetas e inquietantes no seu perigo.

Angela Merkel tem a culpa de duas coisas: ter eleições para o ano e ser alemã. Os alemães são, sem dúvida qualquer, o putativo vilão dos últimos cem anos europeus. A 1ª Grande Guerra foi-lhes imputada (falsamente) e na 2ª Guerra Mundial, vencem sem dificuldade o prémio estilo vilanesco e o de plano mais horrível para dominar o mundo. Desde 1945 que a Europa tem cobrado isso à Alemanha. Mesmo que, da França à Polónia, todos tenham dado uma mãozinha e ajudado o senhor Adolfo com gosto (principalmente quando se tratou de caçar e matar judeus), os alemães idealizaram o plano. Portanto, foram 60 anos a lembrar infâmias e a chantagear emocionalmente, e não só, um país a quem foi cortado tudo. Para a adesão à CEE, por exemplo, a França chegou a exigir que o seu vizinho germânico nunca deixasse o PIB interno superar o francês; e até muito recentemente, era expressamente proibido o rearmamento alemão. O país teve de pagar uma enorme dívida do primeiro grande conflito mundial, e ainda de reerguer-se dos escombros no segundo. Quando se fala que o plano Marshall a Alemanha e que ela deve a mesma benesse aos restantes países, é preciso não esquecer que esse mesmo plano ajudou todos os países europeus que o desejaram. A diferença é que num espaço muito curto, e partir de um quase zero, os alemães voltaram à sua posição natural de dominadores económicos da Europa e seu principal motor nesse campo. Eu não simpatizo particularmente com o carácter alemão, mas respeito-os muitíssimo. Eis uma nação que foi deitada completamente abaixo por duas vezes, passou crises económicas cataclísmicas, e regressou sempre. Quando voltou, e se notou que sem ela a Europa não passaria de uma miragem, abdicou da sua moeda (a mais poderosa do Continente) em prol de uma divisa única. A conjuntura do euro acabou por beneficiá-la de certas maneiras que prejudicam países mais pobres, mas se eu tivesse abdicado da minha estabilidade financeira, depois de décadas de trauma e trabalho duro, quereria ter alguma compensação que garantisse a durabilidade da minha economia. Mas lá está, não sou político em Portugal.

A Alemanha cometeu erros na sua gestão desta crise. Sim, porque ninguém se engana quanto a quem está realmente a dar ordens na UE. No entanto, foi ela quem, durante muitos anos, contribuiu para os cofres europeus com os fundos que se acabaram por desbaratar no sul da Europa e não só. Merkel sofre do problema de ter de ser, ao mesmo tempo, chanceler do seu próprio país e líder de um continente inteiro de maneira não oficial; e as posições são muitas vezes incompatíveis. Anda ela numa corda bamba, a tentar equilibrar ambos os interesses, sabendo que o seu próprio país está a entrar num endividamento preocupante (parte da culpa é das suas responsabilidades para com a UE) e que lhe querem passar a conta da crise na forma de Eurobonds, que dizem basicamente queum punhado cria dívida, mas ela é dividida por todos e não se fala mais nisso. A Alemanha precisa da Europa muito menos do que a Europa precisa da Alemanha.

Que me recorde, não foi Merkel quem criou, no pós 25 de Abril, as condições ideias para os monopólios visíveis e não visíveis que dominam e mirram a nossa economia; nem que desbaratou fundos comunitários como se não houvesse amanhã; nem que criou endividamento de forma preocupante; nem que falhou aposta atrás de aposta no nosso desenvolvimento económico; nem que culpa a Troika e elementos exteriores de medidas e politicas que destroem a nossa capacidade de desenvolvimento, e estão fora de qualquer memorando.

Quem quer lançar tomates a Merkel e a acusa de nazi e prepotente e arrogante está, de forma indirecta, a fazer uma certa desculpabilização da nossa portuguesa incompetente. Como noutras alturas da nossa História, a culpa é do outro: do mouro, de Castela, de Espanha, dos Franceses, dos Ingleses... Há sempre uma estátua gigante para onde podemos apontar e atirar os nossos demónios. Para que continuemos a ser os portugueses vítimas; e Merkel calha bem nesse papel: a sua cara até parece esculpida em granito.