terça-feira, julho 02, 2013

A parte da espera


Agora que a minha família já o assumiu perante uma comunidade de coscuvilheiros que insistia em imputar ao meu pai males que só Deus imaginou para Job, posso escrever aqui o que já deixei a intuir há umas semanas: o meu pai tem cancro. Não é com muito à vontade que o assumo, pois considero que é um assunto muito meu, e o meu percurso para navegar pelo impacto que esse facto tem no meu humor e na maneira como passei a encarar a vida a mim pertence, pelos meus pés e desviando-me de clichés vários. Acredito que quem me rodeia é bem intencionado, e agradeço o apoio, mas há vultos dentro de nós que só encontram projecção à luz certa e exacta, e este é um deles. É uma partilha que se faz não com quem merece, mas sim com quem nos entendemos em meias palavras sem precisarmos de usar um dicionário para descrever pormenores e nuances que preferimos manter na sombra.

Por que razão falo eu então do assunto? É simples: acontece que uma pessoa cujos males me perturbam o pensamento está a passar por um problema semelhante, e fez-me perceber que partilhar partes do percurso pode servir para criar um trilho menos pedregoso a quem vem atrás de nós, e venho deixar aqui um pequenino traço do que me desenha neste quadro. Sendo a pena de quase prisão do meu pai ter de fazer duplo tratamento de radioterapia e quimioterapia toda a abafada tarde, sou eu o guarda prisional que o conduz à Estufa dos HUC. Durante hora e meia, um silêncio está para ser preenchido e recuso-me a aceitar que sejam os restantes prisioneiros a fazê-lo por mim. Decidi então, num assomo asinino, mas ainda assim bem intencionado, ligar o processo de cura do meu pai (sim, estou a tentar ser optimista... não sai naturalmente, mas dêem-me um desconto) a um livro que ofereça a mim mesmo um obstáculo simbólico que em nada se pode comparar ao mal real cancerígeno. Percorri as estantes aqui de casa, e o meu indicador puxou o tipo de calhamaço gargantuano que seria a refeição perfeita nesta viagem ao outro lado dos espectros. O meu companheiro silencioso tomava para si uma data pouco evocativa, mas que ressoava na cabeça: "2666"

Indo já a um terço deste labirinto que o falecido Roberto Bolaño (que faleceu, claro está, de causas oncológicas) , custou-me a ver inicialmente a mão ordeira do Acaso nesta escolha: "2666", até agora, apresenta uma série de personagens, sem aparente ligação entre si, que odeiam o mundo e os seus designios de tal forma que viver é a sua paixão, como se fossem Cristos a caminhar entre nós num calvário permanente. O tema é a procura: seja por Benno von Archimboldi, pelo poeta Rafael que vive num manicómio, mas cuja única loucura parece ser a arte, pela paz interior perturbada por vozes e livros que aparecem na casa mas desaparecem da memória, pelo assassino de mais de 200 mulheres, pela vontade de foder que é descrita como a máquina do mundo, impessoal, imperfeita e apenas necessária para pacificar o que não pode ser pacificado através de um acto paradoxal, destruidor e cheio de potencial de vida. Tudo isto num terço do livro, e espero pelo que vem a seguir. É estranho que tenha de ler isto enquanto estou rodeado dos vultos de que falei. Porque faço questão disso mesmo: de só ler naquela sala, naquele momento. Um momento que é mais do meu pai do que meu, mas que, à minha maneira, vou moldando no meu espaço, no meu tempo, em pequenas estátuas de paciência. "2666" ajuda ao meu estoicismo. Molda-o também e faz-me suportar o pequeno terror que é estar rodeado por putativas mortes, um pouco como olhar através de uma janela com o alcance de 30 anos. Ou menos.

Um caleidoscópio de 2666 cacos de vidro. Todos ao molho, todos ao monte, todos no cone. O cone é a vida. que sugada, nos faz esperar pelo próximo sobressalto; mas no entretanto, esperamos sentados. Umas vezes em silêncio, noutras tomando a palavra, mas quase sempre em silêncio. É o que se pode fazer.

1 comentário:

Post-It disse...

Tu a traçar linhas de fuga
e eu a fazer figas X.
xi-<3