sábado, março 15, 2014

O medo


Nunca consegui perceber se os Medos tinham medo. Duvido, e até de duvidar tenho medo porque não estava lá. Na Ásia Central daquele tempo, o caos e a confusão eram mais corajosos do que o medo dos Medos, mas ainda assim estes conseguiram ser de todos os mais organizados, e entre esses todos estavam os Assírios e os Persas, que durante vários séculos tiveram medo dos Medos e por isso lhes pagaram couro e cabelo, não sei se saídos por causa de tanto tremelique. Não sei se o medo veio dos Medos. Nem sei se aprendemos os medos, ou o corpo é que se organiza, tal como os Medos, para sentir o calafrio como única maneira de se manter em contacto com a sua própria fragilidade. O medo relembra-nos que somos frágeis, caso contrário não tínhamos medo. Por isso, talvez esteja a meio caminho entre o natural e o aprendido: a vida ensina-nos a dor, e nós temos um encontro imediato com o temor e o outro primo do medo, o comodismo. Se não nos mexermos, não temos medo; mas o problema é que se os Medos não se mexessem, não nos tínhamos. O medo é ao mesmo tempo bloqueio, e auto-estrada sem portagens. É caminho, mas também atalho para a desculpa.

Tenho medo da morte e da solidão, sozinhos e de mão dada. Medo da morte, porque não a entendo; medo da solidão, porque dela sou catedrático. Estar só é algo que percorre a minha vida, portanto sei o que é existir assustado. Não sei se já nasci assim, ou se também aprendi o medo pela dor de ficar e de fugir. Qualquer uma delas magoa, e em ambas há o medo de ficar só connosco ou no meio de muita gente. Algumas solidões são mortes, e é dessas que tenho medo, e são essas que me tremem e causam terramotos. Colocam-se os pés no chão e só se sente pavor de que este se abra e nos engula, e o buraco tantas vezes é a boca de alguém que nos traga seja a expelir palavras, ou a inspirar-nos num beijo que tem o simultâneo encanto da coragem nos cabelos, e do medo nas rótulas. Tremelica-se e abana-se porque um beijo pode ser um sismo onde a saliva forma tsunamis quando movida pela língua, em ondas que nos levantam o ser e nos destroem a razão, e deixam, quando tudo acaba e cada um recolhe às suas fendas, um rasto de medo de que o desastre seja natural. Mesmo quando não o é, aguardamo-lo, e o beijo, que é coragem, amedronta porque nos abrimos a um mundo desconhecido, supra normal. Por isso os fantasmas são medos, e nas dunas de um deserto que a garganta cria quando acaba o beijo, eles vagueiam e lamentam que o medo sopre o vento nas areias que se colam ao céu da boca e relembrem os mesmos desertos que os Medos atravessaram quando venceram o medo.

Perdem-se uns Medos e ganham-se outros. É a lei da vida, é a lei do mundo e quantos mais Medos desaparecem, mais o mundo parece preencher-se de outros povos, de outras coisas, de outros mundos. Quando o meu medo desapareceu, deixei que me preenchesses. Tenho medo disso, mas prefiro tremer no teu colo a estar seguro num buraco.

1 comentário:

Unknown disse...

Quando saimos do casulo o medo intensifica-se, e intensifica tudo o que daí vem. E isso é tão bom...