sexta-feira, julho 25, 2014

Campas de desconcentração


Visitar a nova morada do meu pai devia ser uma experiência de devastação por encomenda. Aliás, qualquer ida ao cemitério não será agradável por vários motivos: a ideia permanente do fim da vida, o ambiente pesado do local, muitas vezes o frete da própria ida. Os portões do cemitério são os portões dos nossos medos e da dor contínua de ter perdido alguém. Logo, quando enfrentei o quente sol do fim de tarde para prestar a devida homenagem uma semana depois, qualquer pessoa não seria considerada doida se pensasse que a coisa me ia custar.

E custou. Durante os minutos em que lá estive, olhei para o chão, muitas vezes sem saber o que dizer a mim mesmo e no tipo de conversa que eu e o meu pai tínhamos como poucos: o silêncio. A minha cabeça tem a tendência para divagar e não é o luto que a pára. Distraio-me com a facilidade dos esquilos. O meu pai sabia disso, e irritava-o amiúde, principalmente quando as coisas ficavam foras do sítio ou me esquecia de ir aviar aquela tarefa que ele considerava mais importante do que o fim do mundo. No fundo, acredito que não levava a mal. A extrema responsabilidade que ele vestia como um casaco despia-a eu como se fossem uns chinelos a voar pela sala. Se a sua consciência sobreviveu de alguma maneira se pudesse aperceber que a minha cabecinha continua naquela velocidade cavalar que ele tanto abominava, ele não levaria a mal. Ou então, convenço-me eu disso, sei lá. De qualquer forma, um dos contras da morte é inibir quem dela usufrui de ter uma opinião nas discussões. Por isso, Vítor, esta ganho eu.

Um beijo é entregue à terra pela minha mão e depois daquele quarto de hora, alguém normal teria saído do cemitério, com um ar circunspecto que é devido a quem se rodeou de morte e sabe que tal se entranha bem mais na alma do que na roupa. Mas, como devem saber por me ler em demasia, eu não sou normal, nem creio que alguma vez o tenha sido. Por isso, entreguei-me a uma fascinação que me domina: campas de cemitério. Não é que queira levá-las para casa ou dormir sobre as mesmas, mas a minha curiosidade ganha vida na proximidade de campas. É paradoxal, mas existe. Penso que talvez se deva ao meu gosto pela escrita e por tudo o que é história. Através de fotos, datas e informações que recolho depois, construo uma narrativa das vidas que a pequena necrópole de Ceira guarda. Há histórias de dor, com pais a ver morrer dois ou três filhos; ou uma criança com oito anos que falece e mantém, na foto, o sorriso de quem não conhece o mistério da morte.  Há pessoas que nasceram ainda na monarquia e são enterradas antes da ditadura, outras durante a mesma, e algumas delas chegam ainda a conhecer o que é viver em democracia. Há a campa mais antiga do cemitério (que, pelo que vi até agora, é de 1901) e a mais recente (que era a do meu pai, mas no entretanto deixou de ser). Um dos vizinhos do Vitó, aliás, é alguém que também o era enquanto vivo, o que é uma simetria curiosa. Tudo o que de triste e macambúzio me nasce quando entre naquele local de morte entrega-se ao criador que dentro da minha cabeça sempre construiu histórias e me distraiu com elas. A mente que o meu pai, talvez sem compreender, nunca me tentou negar ou mudar, é a que me ajuda a suportar a sua perda, num local que tem tudo para me afundar.

Devia sentir-me esquisito, mas não sinto. Não sei se é fetiche, talvez não o seja, mas é algo que me ajuda a lidar com a dor. Sempre me apoiei em muletas bem estranhas quando coxeio, e esta é mais uma. Nem me importo. Ele também não. Aliás, com tudo o que de mim viu ou ouviu, até acharia algo bastante normal. Mesmo no meio do seu silêncio, ele nunca foi homem que se deixasse impressionar pelo que saía da minha cabeça. Apenas diria "filho da puta", mas com o tom de quem tinha visto um triplo mortal à rectaguarda feito por uma vespa.

quarta-feira, julho 16, 2014

Pai


A minha mãe não sabe, mas os meses que antecederam a morte do meu pai viram-me a tentar escrever um texto de elogio fúnebre a esse homem que, durante 31 anos, foi um estóico senhor que me teve como filho e mesmo assim, parecia ter orgulho nisso. A ideia não veio de um sentido de homenagem, mas sim de raiva. Quando um homem que é de facto bom morre, o mundo não devia encolher os ombros, e nós que nele vivemos temos a obrigação de subir a um ponto alto e berrar aos vales que a vida ficou mais pobre. Dos poucos funerais a que fui, ficou-me a secura das homilias sacerdotais tão cheias de palavras ocas e de floreados religiosos vazios que nunca conseguem descrever a dor real, e injustiçam quem, num caixão, foi uma vez um homem não só cheio de vida, mas que carregava em si, e sem se preocupar com qualquer tipo de moral bafienta, a noção do que é ser uma excelente pessoa hoje em dia.

Ao longo do tempo, no entanto, acabei por não cumprir essa vontade. Previa que, chegado o dia, eu não estivesse em grandes condições para anunciar como a perda do meu pai era mais do que a morte de alguém; para além disso, outras pessoas precisariam de mim numa capacidade menos oral. Verdade é que não me lembrei muito disto nos dois dias de maratona emocional que marcaram o ritual da ida do meu pai para algures que não o nosso convívio. Passou tudo numa espécie de zumbido estático, cumprimentos maquinais, alguns agradecimentos menos sentidos do que outros. Pessoas chegaram e partiram, algumas conhecidas e outras menos, e ainda um punhado delas cujo simples contacto físico e palavras me levantaram de um buraco menos irredutível do que aquele onde o meu pai se encontra agora. Apenas na manhã do funeral relembrei a urgência de recordar a todos a perda a que assistíamos, e curiosamente, tal aconteceu quando me apercebi de que não era necessário um carril de palavras nessa conclusão. Entrei numa igreja repleta de gente, ainda com mais algumas dezenas de pessoas no exterior. Era uma segunda-feira, dez e meia da manhã e espantei-me com tamanha moldura humana nesta homenagem surda ao Vitó. Isto diz muito sobre como o meu pai era visto e o que deixou por onde passou.

Não tentarei descrever aqui o que tornava o meu pai num homem com falhas, mas, acima de todas elas, num ser humano de coração excepcional. Nem sequer me alongo no tamanho dos seus paradoxos e contradições, que sempre fizeram dele um mistério para mim. Não me lembro de alguma vez tê-lo ouvido referir-se-me com orgulho, mas nunca me senti uma desilusão aos seus olhos: alimentei tal ideia porque jamais me senti à sua altura naquilo que os homens adultos chamam a si quando têm de assumir a responsabilidade de ser também pelo outros. Nenhuma vez falou comigo sobre os factos da vida, mas esteve, de facto, na minha vida. Sem ele, não teria tido uma infância normal e uma adolescência estruturada e só em adulto pude perceber o valor desta situação, quando, como professor, encontrei crianças com vidas destruídas porque os seus pais não tinham sequer um décimo da humanidade e da responsabilidade com que o meu me escudou. As nossas semelhanças não são muitas, e dizia várias vezes, à laia de piada, que em termos literários, não havia para o meu pai vida além do "Correio da Manhã". Ainda assim, tal como eu tentava percebê-lo e ao que o movia, também dei com ele numa noite a vasculhar livros sobre discos voadores que na altura devorava . Não que o meu pai fosse fã das letras, ou sequer da cultura: era alguém muito mais à vontade num mundo pessoal a construir coisas em vez de entendê-las. Mas era nesse mundo que se sentia ele e que sorria, e estranha ironia trágica que os primeiros sintomas da doença lhe tenham tirado precisamente as ferramentas com que construía esse mundo, e o instrumento que lhe permitia comunicar, mesmo que a espaços, o que pensava para além de si mesmo.

O que aprendi com o meu pai não me foi dito. Numa surda compreensão, entendi o que estava certo e errado, o que não deve ser feito e o exemplo de como uma infância difícil e pouco carinhosa não são desculpas para que os filhos sejam uma consequência de tal percalço. O meu pai amou-nos como entendia o que era o amor de um pai, e foi para lá das suas limitações na demanda de não nos ver a ansiar por algo que merecíamos e não tínhamos. Sinto sempre que podia ter vivido bem mais, mas se assim fosse não o teria feito nas suas próprias condições, termos e pormenores. Não teria sido nem o Vitó, nem o Simões, nem o Vitinho. Não teria tido aquela igreja cheia para se despedir, nem provocado choro a homens feitos a tal ponto que um confronto com o seu mortal invólucro fazia nascer a dor mais arrasadora e pungente que revolve vidas pacatas e que se vêem confrontadas com a nossa mortalidade e o absurdo inerente à vida desde que nascemos. Várias vezes ouvi a minha mãe gemer num choro que nada disto era justo. Que a vida não tinha sentido, e que não havia lógica.

A verdade é que não há lógica, e só algo deu sentido à passagem demasiado breve que o meu pai teve por este planeta: nós. O que ele construiu, o que ele deixou. Eu e o meu irmão como projectos de vida que se prolongam e perpetuam a sua memória; a dor da minha mãe como a prova visível do que o meu pai significava para todos; as condolências de uma multidão incapaz de fazer sentido de uma tragédia pessoal maior do que tudo e que ainda assim se juntam para celebrar não a morte de um corpo debilitado, mas sim a frondosidade perene de uma rija árvore que sobre todos nós ainda paira. Em criança, via o meu pai como uma floresta. Tudo o que presenciei nos últimos meses não me rouba isso. No cemitério, todos pensarão na morte. Mas na minha mente,onde o meu pai não morre e está sentado num banco, com os olhos no horizonte de um mar que sempre lhe foi uma cama balouçante onde o mundo parecia, por momentos, ganhar a poesia que não encontrava facilmente nos seus dias, ele continua a ser também uma floresta que paira sobre as ondas, onde posso correr e encontrar-me com ele, ouvindo nos suspiros das folhas tudo o que não me conseguia dizer, e no canto dos pássaros aqueles trejeitos de voz que o tornam no meu pai, e não no vosso.

A partilha do meu pai convosco acaba aqui. O meu egoísmo não deixa que se escape mais. É meu, não na sua morte, mas no que existe para lá da biologia. A da vida secreta das lágrimas. Onde a única coisa que morre é a dor e só para fazer nascer algo de muito mais belo: a vida eterna que o valor de um homem bom permite existir.

Ou seja, no que faz dele um pai, um marido e um amigo que não morre sem ressuscitar. Vence a morte, e ao mesmo tempo sublima a vida. O Vítor nunca se imaginou como alguém maior do que a vida. Mas é isso que o torna muito mais gigante do que a Morte nos pode roubar.

Choro.

domingo, julho 06, 2014

Reticências, dois pontos e ponto e vírgula



Há tempos em que nem sabemos muito bem que dor nos atinge, porque tantas caem sobre o nosso corpo e nem sequer são uma só, continuam a ser várias, e por isso doem cada uma por sua vez. Impossível é dizer muitas vezes qual a dor que nos dói. Podia não interessar, mas conta para, pelo menos e no meio da dormência que inevitável se segue a todo este grito de múltiplas agulhas que me atinge, eu ter alguma sanidade e sentir que o meu cérebro, e tudo o que seja que rege a minha paleta emocional, sabe onde está e o que faz. Enquanto assim não for, todo o dia é santo nas lágrimas e o diabo a sete em tudo o mais. Até me coser com qualquer linha que aperte o que me transborda, estou preso por arames e marioneta do que não domino, mas que, ó injustiça, faz dos meus olhos um domínio desolador. Em qualquer hora se chora, e se verte para fora o que me apodrece por dentro. Em nenhuma altura há esperança, mas ainda não se encontrou uma cavezinha onde more o desespero. Quanto mais se vive, mais se percebe que viver e suportar são mais sinónimos do que apêndices.

Não sou nenhum linguista da existência. Tantas vezes tento descrever o que me revolve, e em quase todas fico aquém de colocar num formato sólido o que não pode ser nem quantificado, nem sequer moldado. É constante o fluir, é impossível agarrar. Sempre pensei que escrever seria a única forma de me sossegar e de sentir que controlo aquilo que ninguém pode guiar. Por isso, os meus textos sempre me pareceram mais acidentes do que qualquer outra descrição. Talvez explique porque há sempre gente que goste de olhar para eles, por vezes até com admiração, mas sinto sempre que não tenho pernas para dançar com a dor. Ela vai sempre ultrapassar-me e crescer até uma altura desmesurada e caótica a perder de vista, fugindo sempre aos meus dedos e à minha imaginação.Fica um pequeno pó no chão, e com pó pouco se constrói e tudo se pode destruir e vergar. O pó dar dor não se aspira: só cresce, num bolor fecundo que come as nossas juntas, corrói o nosso tecido e por fim nos dá a escolher entre ser espectador da nossa destruição ou colaborador no mesmo espectáculo de marionetas onde ela me prende por arames. Nenhum é a escolha certa, mas enquanto o correcto está num local onde não olho, escondo-me atrás de dois errados, que não fazem um certo, mas não me deixam errar em vão.

Por isso me sento sozinho, a não acertar. O meu metro e oitenta seis é pequeno demais para tudo o que me acontece. Que um corpo de ossos e músculos tenha espaço para a existência é o milagre maior do nascimento. Talvez por isso cresçamos: quanto mais se vive, mais se dói. Por isso é que nesta altura, gostava de ter um siamês.

terça-feira, julho 01, 2014

Um dor imperfeita



Eu acordei mais tarde do que o rio, mas é ele quem tem sono. Parece que dorme, parado, estático, a servir-me de espelho. O que vejo não é grande coisa, e aí o sono do rio ganha a todos os meus despertares. É como se as águas se rissem na minha cara, e não precisam de dentes. Aposto que pudesse, o rio usava os peixes na mão e apontava-me um dedo na cara, alinhando as pedras numa dentição perfeita, reluzente e zombateira, como quem se ri das desgraças dos outros certos de que os outros nada mais podem fazer que não seja estar sentado e não ter sono. É cedo demais para estar aqui parado, mas não é como se tenha mais para fazer a não ser memoriar e morder-me os braços na procura de sentir alguma coisa mais que não a quente e cómica flutuação numa imensa piscina de alcatrão. Não sei se estaria melhor a flutuar no rio: o alcatrão sempre me prende a algures, e o meu problema maior é andar à deriva.

Agora que penso melhor, ter como companheira esta torrente de água que, indiferente aos impressionismos da minha cara. se desenrola e abre ao mundo não foi o que se pode chamar de ideia de jeito. A impassibilidade fluvial não se compadece da minha dor. O rio não sente, eu sinto demais, e tento não sentir demais apenas reconhecendo, tarde demais, que não querer sentir é o somatório de várias desistência numa operação cujo resultado é ficar aninhado a um canto a olhar as paredes como se fossem cordas de salvação. Agarrar para si a dor é pedir boleia ao desespero quando se quer apanhar a dormência. Não que o rio entenda isso: ele lá vai, indiferente, e nem sente as curvas, ou os declives, ou os rápidos, ou as barragens. Apenas vai. Gostava de ser assim, de ir, e nem me aperceber das barragens. Infelizmente, existe em mim uma barragem enorme, de reservatório cheio e que só sai de vez em quando. Não explode, mas jamais por falta de acumulação. A mágoa acaba por ser como o cimento, cuja densidade e compressão garante a sua sobrevivência. Nem este decurso aquoso a rebenta ou amacia. Por fora, sou pele; mas por dentro sinto-me esse cimento que me mantém em pé, e ao mesmo tempo faz de mim um tapete onde limpa os pés e continua sujo, podre.

Já vi que o rio não me leva a dor. No máximo transportar-se-á a si mesmo, e só isso é muito. A falta de vontade faz com que me mexa, e os meus pés saem da margem do rio e chegam ao carro. Quando me sento ao volante, penso por momentos precipitar-me sobre o rio, na esperança de me tornar na água que nem de si sabe, mas não quero levar a dor onde ela não é nem pedida, nem necessária. Vivo-a sem ser doença para os outros. Está comigo, na minha barragem, e todos os dias verto um bocadinho, para que não expluda. No carro, a primeira mudança é metida, e este parte rumo a onde quero. Ou seja, parte para onde me parto na esperança de voltar a ser um.