terça-feira, julho 01, 2014
Um dor imperfeita
Eu acordei mais tarde do que o rio, mas é ele quem tem sono. Parece que dorme, parado, estático, a servir-me de espelho. O que vejo não é grande coisa, e aí o sono do rio ganha a todos os meus despertares. É como se as águas se rissem na minha cara, e não precisam de dentes. Aposto que pudesse, o rio usava os peixes na mão e apontava-me um dedo na cara, alinhando as pedras numa dentição perfeita, reluzente e zombateira, como quem se ri das desgraças dos outros certos de que os outros nada mais podem fazer que não seja estar sentado e não ter sono. É cedo demais para estar aqui parado, mas não é como se tenha mais para fazer a não ser memoriar e morder-me os braços na procura de sentir alguma coisa mais que não a quente e cómica flutuação numa imensa piscina de alcatrão. Não sei se estaria melhor a flutuar no rio: o alcatrão sempre me prende a algures, e o meu problema maior é andar à deriva.
Agora que penso melhor, ter como companheira esta torrente de água que, indiferente aos impressionismos da minha cara. se desenrola e abre ao mundo não foi o que se pode chamar de ideia de jeito. A impassibilidade fluvial não se compadece da minha dor. O rio não sente, eu sinto demais, e tento não sentir demais apenas reconhecendo, tarde demais, que não querer sentir é o somatório de várias desistência numa operação cujo resultado é ficar aninhado a um canto a olhar as paredes como se fossem cordas de salvação. Agarrar para si a dor é pedir boleia ao desespero quando se quer apanhar a dormência. Não que o rio entenda isso: ele lá vai, indiferente, e nem sente as curvas, ou os declives, ou os rápidos, ou as barragens. Apenas vai. Gostava de ser assim, de ir, e nem me aperceber das barragens. Infelizmente, existe em mim uma barragem enorme, de reservatório cheio e que só sai de vez em quando. Não explode, mas jamais por falta de acumulação. A mágoa acaba por ser como o cimento, cuja densidade e compressão garante a sua sobrevivência. Nem este decurso aquoso a rebenta ou amacia. Por fora, sou pele; mas por dentro sinto-me esse cimento que me mantém em pé, e ao mesmo tempo faz de mim um tapete onde limpa os pés e continua sujo, podre.
Já vi que o rio não me leva a dor. No máximo transportar-se-á a si mesmo, e só isso é muito. A falta de vontade faz com que me mexa, e os meus pés saem da margem do rio e chegam ao carro. Quando me sento ao volante, penso por momentos precipitar-me sobre o rio, na esperança de me tornar na água que nem de si sabe, mas não quero levar a dor onde ela não é nem pedida, nem necessária. Vivo-a sem ser doença para os outros. Está comigo, na minha barragem, e todos os dias verto um bocadinho, para que não expluda. No carro, a primeira mudança é metida, e este parte rumo a onde quero. Ou seja, parte para onde me parto na esperança de voltar a ser um.
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