terça-feira, fevereiro 17, 2015

Conhece-te a mim mesmo



Nas cordilheiras de lençóis, surge a tua cabeça curiosa que faz deslizar "Sabes que és como este lençóis, sabes? Chegas sempre aqui cheio de pregas, mas mal te estico debaixo do meu corpo, pareces outro, mais uniforme e menos agressivo, que posso fazer festinhas em mim mesma com a tua tua pele e com esse não sei quê de não sei quando que vestes e só eu vejo aqui, quando nos dispomos sem roupa depois de despirmos a roupa cem vezes. Depois, tapas-me tu e não me sinto fria, nem quente, apenas confortável. Não me olhes assim... Já vi que não sabias o que és, que triste é isso, não se saber o que se é. Eu sei bem, que às voltas tantas dos lençóis, só sei quem sou quando fecho os olhos e te encontro para lá das pálpebras quando regresso ao mundos. Se um dia vivesses nos meus olhos, conhecerias o quão bom é, nem que seja nos segundos em que regressas a ti, saber quem és e o que queres. Invariavelmente, és tu quem eu quero e o que quero, embora não sejas uma coisa, e se calhar até és, porque a felicidade é uma coisa, não é? Não é uma pessoa. Quer dizer, pode ser, podes ser tu, e de cada vez que cubro a tua cara de beijinhos, encharco os meus lábios felizes, e eles estão mesmo felizes porque não param, não querem, nem vacilam, e a certa altura já beijam debaixo da felicidade, e pareço um peixe mergulhado em ti, a dar à boca, e nesses beijinhos sei mesmo quem sou. Sabes, sabes?"

Beijo-te, nesse momento, não como quem ama, mas não tem outra maneira de rezar. O teu altar em forma de boca recebe.me, ora por mim, ide em paz por aí baixo e que este senhor te acompanhe nas voltas dos lençóis. Nas voltas de mim, porque eu também sei quem sou quando te descobres. Porque me descobres também.

sábado, fevereiro 14, 2015

Deixar-se levar



No rio, as luzes são pregas de lençóis, espectros amareliços que da nossa rua se projectam algures num mundo onde nunca pertencerão: a água é demasiado densa para que as partículas luminosas aí montem morada, e eu e tu, casas um do outro, nem sequer conseguimos apanhar a luz. Mas no rio, forma-se a imagem do nosso beijo, quando o lençol aparentemente se alisa, com as curvas dos nossos lábios. Um longo fôlego. Depois, os meus olhos pescam nos teus com um anzol em forma de saudade. Todos os dias são nunca para os meus olhos, o teu rosto uma novidade e esse olhar um relógio sem ordem onde todos os tempos de misturam. Sei apenas que lá no fundo, fluido como a água do rio, estou eu, em trânsito para o teu coração. Consigo mesmo ver-me, depois de um beijo, a renascer algures onde guardas as luzes maiores do que as pregas do rio. Enquanto o rio passa, tu paras no meu abraço e deixas-me um pouco à deriva, apenas para me agarrares, a tua mão na minha, na noite fria. Mas o teu ar não tem vapor, não tem fumo, quando respiras é como se me acariciasses, com festinhas que tornam a minha pele uma montanha que no degelo do teu sorriso, se permite conquistar por quem arriscar.

Voltamo-nos para o rio e mergulhamos em nós. Num abraço, a noite é uma esfera, e fora dela estamos nós. Fora da noite, dentro de um outro rio, mais lento, mais escuro, mais tudo. Mais até do que nós. Um rio planeta, perdido nas estrelas que também morrem nas águas. Eu e tu, um planeta. Mãos que são placas tectónicas e novamente lábios em erupção. O resto da noite é um movimento de rotação e a manhã ocupará o seu trono. Dois rios correm: um para o mar, o outro para si mesmo. Eu e tu, um planeta.

quinta-feira, fevereiro 12, 2015

(Espuma)



Cai a neblina, que sabe a mudança, e na areia espessa, que se prende ao mundo, está um búzio. É o búzio das seis e meia da manhã, quando a noite ficou para trás e os olhos só se fecharam para esquecer. Quando o mar me calça os pés com espuma, o búzio é a minha única garantia que tudo isto é real, e que a neblina me veste no faz de conta do despertar. Pego-lhe então e a sua abertura lembra-me lábios que beijo nebulosamente todas as vezes que me solto em mim. Encosto-os ao meu ouvido e ouço a canção das esferas, o cosmos, as nebulosas e mesmo entre uma ou outras supernova, velhos destinos, sussurros e murmúrios. Há quem ouça o mar nessas aberturas: eu mergulho em ti, e naquela manhã, a primeira desde há muito em que o mundo me sabe a outra coisa que não a tua pele, regresso a outros tempos de mar revolto, e de barcos encontrados na tempestade, onde parecem encontrar a razão de navegar. Dou por mim a abraçar um búzio, como se me pudesse devolver tudo o que quero dar e não sou autorizado, e num momento entre minutos, o meu corpo está deitado na areia, mas nem se molha quando o mar se aproxima, o mar foge e nem lhe toca, e enquanto estou a assim, juro que o búzio também me beija, que as manchas madrepérola são os teus olhos castanhos e a praia tem as nossas paredes brancas. Não sabia que a saudade sabia a iodo, mas o teu corpo sempre aqueceu o mercúrio do meu sangue, e num beijo que não existe, o vestido de neblina puxa o sal como cobertor e sinto-me temperado pela tua memória.

É memória de quem não volta. Há mar e mar, e o teu ir implica não voltar, excepto lembrar-te quando ainda sorrias, ainda amavas e ainda respiravas. Tudo o mais são marés, que vêm e voltam, e estando eu na lua, a atracção é imediata. Às sete da manhã, ainda vives num búzio, que guardo no bolso. Ao fundo, a linha de horizonte confirma-se que não voltas, mas que eu tenho o eterno retorno aos teus lábios, no calor de um búzio. O limite chama-me, mas olhando à volta, o meu lugar é aqui, contigo, numa aparição marinha.