quinta-feira, abril 02, 2015
Mentiras
Abri a caixa de correio e no fundo, dois envelopes inclinavam-se. Num deles, a escrita apressada e empilhada de uma caneta azul atirara-me aos olhos o nome do meu pai. Não é uma novidade que ele espreite ocasionalmente para fora daquela caixa. Nos serviços públicos e privados, nomes são números, e como a Matemática do luto, os números são imortais: existem sempre, porque prestam um dever. Mas ver assim na caligrafia personalizada de alguém que, pegando num envelope, tomou o meu pai como vivo e se demorou a enviar uma mensagem, abanou-me um pouco. Por alguns segundos, deixei-me levar pela ilusão e tentei-me a regressar para o interior de casa, chamando o meu pai do seu silêncio habitual para lhe entregar a carta. Durante esse pequenino espaço de tempo, onde couberam vários desejos, ele estava vivo. Menti a mim mesmo no 1 de Abril, e foi a única mentira que poderia tolerar: a de que o mundo não é mundo, mas sim uma construção, e que de quando em vez, os blocos tombam para se reorganizarem e termos a ilusão de que o tecido da realidade se vira do avesso, e que Julho foi apenas uma saída que não se tomou, e afinal o caminho correcto é mais à frente.
Contei então outras mentiras que queria ouvir. A dor que se vem acumulando no último ano não é afinal dor, mas sucesso; o afogamento de um adeus é afinal esbracejar livre em águas cristalinas; todos os choros de revolta são sorrisos de satisfação; a raiva permanente é comichão passageira; a derrota está rota e deixa passar todas as vitórias que mereço; cada dia ímpar encontra-se quando somos par um do outro; a minha boca na tua é a verdade que procuro, e tudo o resto leves rumores que me levantam a pele para soprarem tudo o que partilhamos num olhar. Deixo que a carta me minta, e crio também uma ilusão da realidade, porque sem ilusão e sem as mentiras que podemos contar, não existe sequer a esperança de que tudo não passou de uma possibilidade, e existem múltiplas possibilidades. Até conseguir sorrir é uma mentira, mas escolho, nesses segundos, não falar com a realidade, sermos mudos, cada um no seu canto.
Vítor Manuel Paiva Cristóvão Simões. Assim mesmo, no azul de uma BIC, cravado na carta entre o recorte do papel. Ali, na mão de alguém, o meu pai voltou a estar comigo, vivo; e por momentos, também eu voltei à vida, aquela que queria e não a que tenho. Uma mentira. No sopro dos teus lábios, mesmo que na minha mente, também não me importo de ser enganado; e voltar a abraçar o meu pai é real, e isso basta-me.
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