Sou o produto de dois pais que se esfalfaram a trabalhar desde cedo, acabando eu por provar que as maçãs podem cair bem longe da árvore, e por isso cresci mimado por algo que o meu colega de escola da cidade nunca soube o que era: uma casa com vários andares, ou como o planeamento urbano gosta de chamar, uma vivenda. Rés-de-chão, primeiro andar e sótão, assim ordenados. O meu pai demorou três anos a construí-la, com a ajuda de amigos e alguns profissionais, mas sempre ouvi histórias das obras e do esforço que ele fez para conseguir um dia estar defronte dela, inteira, com a sensação de projecto cumprido. Por isso, desde que não me lembro que vivo aqui. Nunca fui uma criança que saísse muito de casa, mesmo vivendo na aldeia. Os meus amigos de infância contavam histórias de assaltos a pomares e corridas na linha de comboio, espalhos de bicicleta e saltos destemidos no poço do Almegue, mas sempre me agarrei a livros e brinquedos, a olhar para o tecto do meu quarto, a explorar a minha casa em recantos e pormenores. Lembro-me bem dela antes de ser do que é, azulejos que já não moram, alcatifas que deram em tacos, o meu quarto como já não existe, paredes azul-claras, mobiliário de placas de madeira, os meus brinquedos alinhados como se fossem soldados na defesa da minha criancice. A memória de tudo isto é também uma casa, tem a sua morada na minha cabeça.
Uma casa tem o seu ritmo e a sua respiração, a sua vida. Desde a adolescência que mantenho uma lista das pequenas derivas que fazem destas paredes e betão uma pessoa, os pormenores e os sons que funcionam em mim e são hábito. A gravidade profunda dos pés que sobem os degraus de mármore da minha escada exterior, o fogo mantido do velho esquentador na cozinha, a sofreguidão das torneiras exteriores - velhas e soltas, qualquer toque um pretexto para soltar um rio - a impossibilidade progressiva que tem sido fechar uma porta pelos constantes defeitos das mesmas, abrir a porta exterior da cozinha com tosse engasgada, um sótão cheio de tralha que durante tanto tempo pareceu assombrado a uma criança, a banheira antiga com a sua ferrugem visível, as manchas de humidade irrevogáveis, as estatuetas de Guardas Fiscais na sala do andar de cima, a porta do meio do armário do meu segundo quarto que só fecha com chave girada, o reboliço na loja quando mais do que uma pessoa caminha, a minha cama que range ainda que ninguém se deite em cima, o reflexo da luz quando penetra nas frinchas do meu estore e reflecte numa cómoda com espelho oposta criando a sensação de não ter paredes, o tilintar dos talheres na cozinha do rés-do-chão anunciando que a comida está quase pronta... É um álbum completo, com lados A e B, e em 34 anos que puxo, pensei que não havia segredos entre nós, entre dois produtos dos meus pais, entre mim e o meu irmão mais velho de cimento e tijolo.
No entanto, a surpresa não pede licença, nem se anuncia com antecedência. Enquanto tomava um duche, há uns dias, sentindo a água quente amolecer-me a carne ao ponto do
filet mignon, os meus olhos cruzam-se com a janela da minha casa de banho, um rectângulo pequeno que dá para a casa do meu vizinho e, obliquamente, me permite observar a linha do horizonte. Passava das seis da tarde, não sei precisar melhor, e porque os hábitos são tiques da teimosia, a música disfarçava-se por entre a água, porque desde há vinte anos, é-me impensável fazer a minha higiene sem acompanhamento sonoro. É a minha maneira de ser adulto. Einaudi tocava "Primavera" e enquanto penso em fantasmas e assombrações que sempre me agarram nesses momentos, e nessa semana com a força do que crava unhas, sou cegado por uma luz. Enquanto os meus olhos se habituam, o meu cérebro rapidamente sabe que é o sol e abrindo a janela, vejo a estrela que nos acompanha a submergir no mar fictício lá longe. As nuvens ocultam-no, mas o hidrogénio queima mais forte, mostra-se e marca presença e de repente as pedras da muralha caem, o pouco que há de adulto soçobra e a mesma criança que cresceu fascinada com um imenso mundo de três andares exclama: consigo ver o pôr do sol enquanto tomo banho. É algo de praia, mesmo, como se Ceira fossem as Caraíbas. Ceiraíbas, portanto. Com Einaudi, a hidromassagem garantida, a minha mente perdida em divagações, a leve vertigem da vida que se questiona, um corpo que se entrega ao acaso, é mágico, inesperado e consigo ver no que é familiar a pequena surpresa do encanto mágico da descoberta. Recordo outros pormenores da casa, transitórios, pormenores de amores e beijos na intimidade do meu quarto, tão bálsamo quanto a água tépida, tão quentes quanto o sol, tão enfeitiçados quanto os meus olhos. Fazem também parte de uma casa, como se o amor pudesse ser uma outra camada de realidade, de existência, uma casa dentro de uma casa, e aquele pôr-do-sol me lembrasse que nada está escrito e fechado, que há mais por descobrir até naquilo que se pensa repassado.
Seco-me com a toalha, já o sol sumiu, mas não todas estas memórias. Memórias da D e da L e de outras letras, memórias de sorrir em criança e chorar em adulto, de ver nascer o meu irmão e morrer o meu pai, de sentir que tudo passa como água por um ralo, que pelos canos é colocada algures num reservatório, daí para um rio e se renova num ciclo aquático. Como se a minha casa fosse corpo presente, espírito ausente, mas ambos em permanência; e perto do dia dos Namorados, enamoro-me da minha morada e para mim está tudo bem: o amor é, para mim, o tempo que se aplica naquilo que se gosta e a minha casa está comigo desde que eu era apenas amor em células. Um beijo em cada parede é pouco.