Diz muito de mim que uma das minhas histórias preferidas acerca do espírito humano envolva uma tragédia que matou dezenas de pessoas. A 20 de Março de 1980, o monte St. Helens, um vulcão julgado extinto no interior do estado de Washington dos EUA, anunciou ao mundo através de rugidos que os rumores da sua morte haviam sido manifestamente exagerados. Os vulcanólogos americanos não sabiam muito bem o que julgar disto, pois apenas estavam habituados aos vulcões do Hawaii, que são mais escorredores de lava. Adoptando uma política de esperar para ver, à medida que o vulcão começou a expelir magma em pequenas quantidades e o barulho aumentava, decidiu-se criar um perímetro de 13 kms em redor do vulcão, proibindo a passagem de pessoas. Mas o cidadão comum não sentia como um perigo potencial: era uma atracção turística, um divertimento e todos os fins de semana, centenas de pessoas subiam as encostas do vulcão para sentir e ver o espectáculo. Equipas de televisão chegaram de todo o lado para reportar o fenómeno, apontar os melhores pontos de observação. Helicópteros voavam por sobre a cratera esfumaçante, com reportagens divertidas. No entanto, o tempo foi passando e tanto barulho não dava em nada. As pessoas, impacientes, achavam que o vulcão não ia explodir e que desilusão seria esta. A 19 de Abril, o lado esquerdo da montanha começou a inchar. Os cientistas foram incapazes de reconhecer um sinal básico de explosão iminente, pois não estavam preparados. A História registou o final deste regabofe: um mês depois, esse mesmo lado esquerdo rebentou de tal forma que lançou monte abaixo uma tempestade de rochas e matéria a 250 kms hora, que apanhou tudo o que pôde pelo caminho. Para terem uma ideia da coisa, este material era suficiente para soterrar a ilha de Manhattan até 120 metros de profundidade. Pouco depois, o vulcão explodiu e a nuvem decorrente transformou-se numa cortina assassina que tudo varreu a uma velocidade de 1050 kms hora. Malta a 30 kms de distância foi apanhada e no meio disto tudo morreram 57 pessoas. Foi sorte, era um domingo: à semana, haveria centenas de madeireiros a trabalhar nas florestas no sopé da montanha. Noventa minutos depois, uma chuva de cinzas arejou a cidade de Yakima, a 130 kms. O dia transformou-se em noite, a cidade ficou isolada durante três dias.
Reparemos que estamos a falar de um local habitado num raio aceitável de um vulcão que exibia um comportamento perigoso. Como não foi feito nada? Não havia procedimentos de emergência ou preparação. Os cientistas falharam nas previsões, foram incapazes de reconhecer o óbvio; e por sorte, o número de mortos, perante a proporção da catástrofe, revelou-se baixo. Penso que já terão reconhecido o motivo deste relambório e não, não vou apontar dedos nem discursar sobre métodos e mudanças; nem sequer me vou armar em protector das florestas e amante do verde quando, provavelmente, nunca meti os pés numa, a sério, nem sei apreciar a beleza intrínseca de uma árvore. Há, no entanto, algo sobre o qual quero falar e a razão que me faz adorar este relato escabroso, e não é o meu humor negro. Tudo isto revela uma das nossas características mais óbvias como seres humanos e em muitos bitaites ocorreu-me muitas vezes. Os Gregos, povo com jeito para metáforas e mitos, produziram uma palavra para designá-la, de que gosto muito:
hubris. Numa explicação muito simplória, significa, basicamente, a ideia do Homem de que é superior a qualquer coisa, um orgulho indestrutível que torna qualquer um invulnerável aos factores que lhe são claramente superiores. Há disso aos montes na história do St. Helens, como expliquei, e reflecte-se simplesmente na incapacidade que toda a gente teve em reconhecer não só um perigo, mas também a sua inevitabilidade. Depois da revolução científica do século XVII, o ser humano expulsou qualquer deus do seu trono e assumiu o seu lugar como descodificador do mundo. Eu percebo o planeta, declarou, consigo dominá-o e traduzi-lo simplesmente. Nada me é superior; e este "deus" não é uma entidade espiritual, mas sim a própria Terra, um ente de rocha caprichoso, com humores incontroláveis, com espirros que despertam tempestades e arrotos em escala de Richter. O Homem, como sempre, esquece-se que não é senão uma partícula pequenina no grande esquema universal, animado por inteligência, mas condenado pela fraqueza da sua carne e da sua pequenez. Por muito que insista e se debata, não pode contornar isto: está à mercê e como em tudo, é uma situação muito difícil de aceitar. Uma tragédia assim é uma experiência de humildade, de reconhecimento de que podemos ser dominados e sempre seremos, mas muito não aceitam e querem justificar e racionalizar o que está para lá da mão com que queremos guinar a Natureza.
A minha relação com a zona do Pinhal Interior é sentimental: passeei ali muitas vezes, fotografei e fui momentaneamente feliz nos seus espaços de Pedrógão Grande a Castanheira. Custa-me muito ver arder algo que é meu património mesmo que não seja eu o dono, que me constrói de alguma maneira, de ver a destruição de qualquer coisa que sempre julguei imutável e permanente. É uma das razões pelas quais estes acontecimentos me tocam. Uma segunda razão é precisamente a
hubris. Em cada testemunha que fala na TV, reconhece-se o pânico e a tristeza, mas por detrás dos olhos, num local que temos de saber procurar, está ainda o nosso antepassado original. Não possuía ilusões de grandeza. Desconhecia, temia, tacteava e o seu mundo era a permissão do temor. Os relâmpagos tremiam-lhe a espinha, as chuvadas secavam-lhe a boca, os terramotos tiravam-lhe o tapete dos pés. Tudo era um risco potencial; e nos seus descendentes em 2017, depois de uma sova tremenda, injusta da aleatoriedade desta tômbola planetária onde somos bolas sem número, o antepassado espreitou. Esquecido de que as leis e os planeamentos são apenas precauções e não garantias, encontrou uma força sempre presente, raramente reconhecida, que na sua fúria deixou estrago muito maior do que cinza. O que os críticos e juízes dos tribunais digitais esquecem, na sua soberba de homens-deuses, é que a Natureza é isto: não é amor nem boas energias, nem o recreio do Homem - é em definitivo o dono da propriedade. Nós só cá estamos a atrapalhar e quando se dá o imprevisível, não há muito que se possa fazer. Reconhecer isto é o primeiro passo para encarar as catástrofes e até para nos tornarmos pessoas melhores.
É sempre difícil lidar com o luto e a dor, principalmente quando é tão arbitrário que 64 pessoas sumam, assim, sem identificação e sarcófagos de cinza à beira da estrada. É duro e qualquer um de nós, em empatia, imagina-se no soçobro da existência do limite da vida. Custa, no nosso orgulho, aceitar que aconteça, mas é o mundo, horrível, sem grande sentido no geral, com a morte em potencial em todos os elementos à espera da tempestade perfeita. Ainda assim, este mesmo mundo, em que teimamos em ser maiores do que devíamos, é o mesmo em que minúsculos primatas com cérebro avançado combatem um elemento fogoso sabendo-se inferiores e ainda assim, erguem-se como heróis; é o mundo em que as pessoas dão as mãos e delas brota comida, água e abrigo para quem precisa; é o mundo em que no regresso à destruição, a pessoa dobrada se ergue para reconstruir o que foi seu, para recuperar no máximo do seu sonho aquilo que já foi, mas no fundo sabe que não volta. Neste duelo que desde sempre o planeta trava com a nossa espécie, e com traições da nossa parte, o nosso corpo pertence ao pó e ao domínio da Terra, mas o nosso espírito é o único capaz de justificar um orgulho próprio gigante, incomensurável. é um outro tipo de hubris, mas é nesta que, ao invés de nos agigantarmos em orgulho, humildemente reconhecemos que sem os outros não somos nada; e isto não é mito: é a realidade dos nossos dias, se assim quisermos fazer parte dela, abraçá-la e, num conforto de alma, reconhecer que só somos maiores do que nós próprios.