terça-feira, junho 06, 2017

Colos e Companhia


Durante praticamente todos os anos da minha adolescência, e alguns da pós, tive um sonho bastante recorrente. Deitado num chão branco de mármore, frio e passado por repulsa, abria os olhos sem entender muito bem onde me encontrava. Erguendo-me, rodeiam-me paredes pálidas de dó, erguidas à força do arrepio e sustentadas por um certo pavor que se encontra nas morgues. Dentro de mim, o sentimento é de que a morte não anda longe, puxa-me pelas narinas, lambe-me o pavilhão auditivo numa aspereza rouca. Vagueio, perdido e num vago instinto, para, sem entender bem como nem por que corredores e distâncias, dar pela minha pessoa numa imensa sala vazia, povoada em demografia única por um objecto lá ao fundo, no meio, equidistante dos quatro cantos. Aproximo-me, é um caixão castanho, muito simples, sem tecidos, só com a madeira como decoração. Olho para dentro e contemplo, assombrado, a minha própria imagem. Morri, mas vivo em desconhecimento de mim mesmo. veste-me um fato azul veludo, uma camisa branca. Não tenho marcas na cara nem expressões de terror: estou ali, mas o facto é que já deixei de estar de todo. A prova é que me observo, do exterior, e existo em simultâneo quando não existo. No sonho, demoro alguns segundos a percebê-lo e o dobro do tempo a aceitar e o triplo a sentir-me confortável, talvez um pouco mais. Mas cedo cai em mim uma perturbação lancinante que corta, constato que a sala está vazia por completo. É o meu funeral, deduzo, e ninguém veio. Ou será apenas no dia seguinte? Terei aparecido cedo demais? As portas estarão abertas para os convidados? Pressinto que tudo isto é inerte, que eu deixei de ser e ninguém apareceu. Só o meu fantasma desencarnado e embarco numa viagem mental buscando por justificações de desprezo e não encontro e pouco tempo depois acordo e sinto-me na pessoa mais só do mundo e só não choro porque nem tenho presença de espírito para invocar lágrimas.

Desde então, a solidão é o meu maior medo. E reparem que não é estar sozinho, erro comum cometido por muita gente, o de julgar que ambos os conceitos são iguais. A maior parte das pessoas tem, de facto, medo de estar sozinha, de fazer coisas a solo, de viver um mundo interno e experiências pessoais. O júbilo faz-me cócegas sempre que me lembro da expressão que algumas pessoas fazem quando lhes digo que quase sempre vou ao cinema na companhia de mim mesmo. Há ali um misto de surpresa, admiração e terror onde este último domina e uma incompreensão quase total acerca do que pode levar alguém a experimentar tal aventura épica. Sempre fiz muitas coisas sozinho: passear, caminhar, ver espectáculos, viajar, até mesmo existir. Se bem que nalgumas fases tenha sentido que tal se devia a uma extrema repelência da minha parte, com algum trabalho e encaixe fui percebendo que faz parte da minha natureza. Uma das minhas grandes lutas foi tentar conciliar a minha natureza solitária com uma outra necessidade, que existe em todos nós, de conviver. A solidão está ,aqui, o medo de que por mais gente que conheça e com quem conviva, todos vão, inevitavelmente abandonar-me. Não é tão idiota assim e tenho exemplos práticos, que não vou desenvolver. Talvez a grande parte da culpa seja minha, estou há anos para entender se sou boa pessoa ou não e acho que mudo de opinião umas dez vezes ao ano. Quero ser útil para os outros, estar lá, quero que se preocupem comigo e me recordem, quero que me deixem preocupar-se com as pessoas. Acima de tudo, quero partilhar o meu mundo e partilhar do mundo dos outros e tantas vezes me apercebo que estou tão mal equipado para ser social.

A solidão aqui em Colos leva-me a pensar ainda mais vezes nisso e factores da minha vida recente pesam ainda mais nesse pequenino mal-estar dramático, problema de primeiro mundo destacado. neste fim de semana, recebi visitas de amigos. Cada um está na minha vida há relativamente pouco tempo, não os conheço há mais de dois anos e meio. Com tempo, e num projecto pessoal, fui-lhes dando espaço, talvez provando que posso ter amigos e conquistar pessoas que não me conhecem desde a infância. Sei que esta ideia poderá parecer tola a muitas pessoas, principalmente quem me conheceu nos últimos cinco anos e ainda cá anda, e não sou nenhuma ilha, tenho quem se interesse por mim, quem ocasionalmente pergunte como estou e queira combinar coisas, mas parece haver em mim um tremendo medo, de abismo, que um dia o meu funeral não tenha alguém. Mas eles tinham dito que vinham, e vieram. Foi um fim de semana divertido e animado, passeámos e mostrei-lhes um pouco do meu quotidiano da casa, da escola, passeámos pelas praias da Costa Vicentina, visitámos monumentos e locais abandonados, rimos e mandámos piadas, entendemos as peculiaridades uns dos outros com portais e piadas idiotas à mistura, inseguranças e cansaço de viagens de carro, com a paciência para perceber ritmos e gostos diferentes, com a noção de que a amizade é o único local onde a teoria da relatividade não pode funcionar, pois o tempo nem existe, nem passa e pode-se dobrar e pontapear à vontade de quem aceita; e foi bom e gosto destas pessoas e sei que têm apreço por mim, não sou um idiota que considera que um trio com vida e ocupação viaja 350 km só num projecto de piedade, é algo que se faz por afecto, mas naquele local maligno na parte de trás da minha cabeça, há sempre algo que me devora em dentadas vorazes, uma boca de um inferno, onde tremo e vivo numa insegurança tremenda. Vai sempre existir, acho, vou aprendendo a lidar com ela sem danos colaterais e amigos como estes, por quem tenho mais do que respeito, uma amizade sincera e nalguns casos uma admiração que não nego, que me mantêm à tona.

Em dois dias fui um bocadinho mais eu, muito por causa de outros. Não sou o que o alheio faz de mim, sou o que sou, o que me constrói, mas partes de mim só revivem quando outros lhes tocam. Aprendo a ser humano, mais e mais, vendo e sentido quem me está exterior. Podemos viver connosco, mas há sempre um apelo qualquer, uma reacção química que nos torna moléculas que se querem agregar a outras. Neste fim de semana, a minha casa foi um laboratório e a reacção em cadeia atómica, ao ponto de me dar energia para algumas semanas. No fundo, nós, pessoas, somos um bocado isso: energia; e no mármore branco do funeral do meu sonho, são elas quem enche o espaço de flores e faz a festa enquanto o meu fantasma percebe que não morreu de todo: apenas se tornou matéria viva nos outros.

3 comentários:

Mónica disse...

:). E pronto. Palavras para quê... Com o tempo, chegas lá.
No man is an island. Indeed.

Anónimo disse...

Se nenhum homem é uma ilha, está na hora de mudar o nome do blog :p

z3r0_ disse...

"o meu fantasma percebe que não morreu de todo: apenas se tornou matéria viva nos outros."

Tens uma forma incrível de ver o mundo e transformar isso em palavras!