quinta-feira, julho 20, 2017

Render da guarda




Há semanas, numa das idas à terra (uso esta expressão pelo simples motivo que me faz parecer um emigrante a sério, um cosmopolita desenvolvido que abandonou a sua aldeia perdida nos montes à procura de uma vida melhor, uma personalidade ao nível dos sonhos de menino de um Tony da Pampilhosa), envolvi-me numa tradição com a qual cresci, mas passei ao lado: a festa-baile, com direito a tudo de bom - bar, quermesse, porcos em currais, jogos para todos, aquele tipo de coisa que nos lembra que por muito que leia Maquiavel ou Tony Judt, que saibamos explicar de trás para a frente Tarkovski e Kubrick, sou um aldeão de cima a baixo. Maquilhem a Luciana Abreu quanto quiserem, mas ela nunca deixará de parecer uma sopeira da Trofa. No meu caso, é algo de semelhante, excepto que o meu silicone é tecido adiposo; mas passando da vaca quente para a vaca fria, a minha presença despertou desde logo sobrancelhas em arco de volta perfeita, rumando pessoas na minha direcção com a plena certeza de que era eu e não um clone ou um holograma. A minha relação com festas é semelhante à que um obeso tem com restrição e auto-controlo, logo a desconfiança era justificada. Mas quando quero, até sei ser humano, ou finjo de maneira competente,  e lá fui conversando, escutando, estando simplesmente. Num certo ponto, um rapaz que servia no bar saudou-me e no meio de todas as habituais perguntas a quem vive no Alentejo ("Faz calor agora, não é? Aquilo é muito isolado? Vens de comboio ou de carro? Passas o tempo todo na praia, admite lá"), saiu-se com uma daquelas tiradas que já ouvi várias vezes na vida: "Ainda bem que estás a dar aulas, tu nasceste para ser professor. Podes não acreditar, mas comunicas muito bem. Tornas cativante até mesmo coisas pelas quais uma pessoa não se interessa, poucos conseguem fazer isso. Os teus alunos têm sorte".

Quem já rodou por aqui, sabe dois pormenores que tornam esta afirmação algo de irónico. Em primeiro lugar, não me vejo como professor, como já admiti num texto sobre o assunto; em segundo, encaro elogios como quem leva pancada; e sim, eu sei que tenho problemas sérios e profundos, daqueles que necessitam de um psiquiatra, um exorcista e um guru New Age em atendimento permanente. Veio comigo, aquela opinião, principalmente porque me preparava para encarar a recta final do ano. Não dava aulas desde 2011 quando vim para aqui e todos os rudimentos de estar numa sala a formar crianças e adolescentes perderam-se por cima do Atlântico entre a Macaronésia e Portugal Continental. Quase seis meses passados, continuo a ser uma mangueira de alta pressão a quem fizeram um corte, cavalgando em tensão na atmosfera. Sendo justo, a experiência não é má. Tensa, sim, mas eu consigo transformar o yoga numa corda de viola esticadinha até à última fibra: é a minha cena, como diz a pequenada que passou este tempo todo a ouvir-me falar de História, numa tentativa desesperada de lhes fazer perceber que sim, é importante, e que não, não serve apenas para testar as capacidades de memória de petizes. Gosto de transmitir conhecimento, mas de maneira mais informal - à volta da mesa de café, em caminhadas pela cidade, com amigos numa sala - e embora assim invariavelmente o papel de quem quer ensinar, e se torna algo insuportável por isso, estar numa posição professoral não é algo que me agrade. A razão é simples: a responsabilidade de reduzir conceitos complexos a um público que se esforça para entender a narrativa de um filme sa saga "Fast and furious" é um esforço que me obriga a ser algo que, por muito que tente, nunca serei: um empata intelectual. A minha dificuldade em descer um pouco ao nível de quem menos sabe afecta-me de alguma maneira e sempre foi uma espada e uma parede: se sou demasiado óbvio quando o faço, parece que trato os outros como mentecaptos; se é imperceptível, existe logo a acusação de que me estou a armar. É certo que os alunos só pode trocar estas estocadas no intervalo, entre si, raramente se atrevem a dizê-lo nas aulas. Mas é sempre um risco.

Desconheço se os quase 60 garotos que se sentaram nas minhas salas de aulas este ano saem mais conhecedores de História ou menos. Dá-me ideia que alguns, pelo menos, se foram embora mais interessados. Uma das coisas boas desta posição é demolir preconceitos e esclarecer tanto lixo que se ouve, demorar-me o suficiente em pontos absolutamente necessários neste mundo actual estranho e cada vez mais subjectivo nas atitudes dos seus protagonistas. Fiz questão de explicar de forma mais demorada o que é, de facto, o nazismo e o fascismo e o perigo de qualquer um deles regressar; o arrepio que me percorreu quando senti as minhas turmas de 8º ano num silêncio beatífico perante a minha explicação do quadro "Las meninas", de Velazquez e os segredos que encerra o que é na aparência um simples retrato trouxe-me um sentimento que raramente possuo, orgulho; uma aula sobre mitologia grega no 7º ano transformou-se em 45 minutos de ter um grupo de gandins controlado pelo puro poder de pequenas narrativas que os Gregos usavam para explicar o mundo. Não estou convencido em nada que ser professor é para mim, mas para mim, sou um professor convincente, pelo menos. O trabalho burocrático (e que me acaba sempre por me calhar...) é um contra, por completo, é claro; mas a sensação de despertar qualquer coisa lá no fundo de seres humanos que ainda agora entraram numa idade de descoberta de conhecimentos e emoções mais evoluídos, que se podem ainda moldar e captivar, é algo no qual, aparentemente, sou bom. É algo a favor.

O meu trabalho aqui por baixo está quase no fim. Não sei se deixo herança ou lembrança, se para o ano os meus alunos recordarão um professor de História que surgiu a meio do ano para lhes dificultar a vida. Mas noto como, quase em tudo, a vida é sempre injusta no esforço e na memória, já me habituei a isso noutras áreas, de ser importante num momento e ignorado toda a vida. O que me interessa mesmo é que fique algo da centelha, da simpatia pela curiosidade, da vontade de parar um pouco e reconhecer que o único lugar que o saber deve ocupar em nós é naquela poltrona a partir da qual observamos o mundo com olhos de ver e um leve trejeito de sorriso reconhecendo que há tanto de fascinante como de decadente e que isso é o mais natural. O professor de poltrona: ora aí está uma maneira pela qual não me importava de ser lembrado.

quarta-feira, julho 12, 2017

12 de Junho


Soube da morte do meu pai três horas depois de ter estado com ele. Não sei se estranhei ou encolhi os ombros, não notei nada de diferente. A particularidade do padecimento de uma doença prolongada, longa, lenta, que age como um ladrão a longo prazo que vai tirando e tirando e tirando sem que se note sempre muito, mas que em pouco deixa uma pessoa sem nada, é que nunca há crises constantes. Acontecem de quando em vez e respira-se, fala-se quando se pode, mas morre-se, morre-se assim a vista de toda a gente mas escondido por dentro, uma toupeira que rói e esburaca e cada túnel invisível conduz a uma cova. É muito isto. Não vos sei dizer se havia algo de particularmente agourento no seu aspecto da última vez que o vi. Acho que não. Nos últimos dois, três meses, as diferenças são subtis e mais notórias para quem não está envolvido. Eu estava, embora passasse o tempo todo a dizer que não, até a mim mesmo. Foi por isso que quando recebi a fatal notícia, a minha primeira ideia nem foi chorar ou cair em mim. Pensei nos pormenores do funeral, de quando seria e dos horários, de quem viria, se muita ou pouca gente, da necessidade de preparar, de ajudar a minha mãe, que levou com a lambada bem mais do que eu, de estar ali. Sou uma pessoa depressiva por natureza, mas funcional, mesmo nas minhas covas mais côncavas. Assim reajo, assim vivo. Mesmo com o meu pai morto.

Rapidamente apareceram alguns elementos da família. A minha retirada de cena foi célere e já no sótão, a dois andares de tudo, cumpri uma promessa: por esses dias, eu e a D. estávamos naquela fase de ocaso que caracteriza a passagem de quarto minguante para Lua Nova. Nunca percebi muito bem o que se passou. Acho que nem ela, mas com o tempo entendi que as pessoas são assim muitas vezes, não se entendem, nem a elas mesmas, e depois é difícil entenderem-se com os outros. Éramos ambos inteligentes, mas não para aquilo. Ainda assim, o que nos faltava em entendimento sobrava no carinho que mantínhamos mútuo, um vapor tépido, e ela fez-me prometer que se algo de decisivo acontecesse, ligar-lhe-ia. Ora, a ocasião parecia pedir a minha lealdade. Do outro lado da linha, alguns segundos de silêncio. No tempo em que estivemos juntos, abri-lhe este lado da minha vida, conheceu o meu pai, acompanhou-me, susteve-me até. "Queres que vá já hoje? Saio do trabalho às 2.00". Não, era melhor não. À janela, olhava para o céu e as estrelas pareceram-me um pouco baças quando ouvi isto. "Vem amanhã de manhã, espero-te na estação". Se estava bem? Disse-lhe que não sabia, e era verdade, a dormência é elevada nestas alturas. Não desligou antes de me tentar confortar, de sentir em cada letra um beijo, em cada palavra uma cama onde nos podíamos encostar um ao outro e sentir que no mundo havia algo de bom.

Na manhã seguinte, a notícia já se espalhara. O meu pai morre a 12, o funeral é a 14 e 13 é azar, não só porque é o primeiro dia em que o meu pai não está de facto, mesmo lá longe, mas porque há muito mais gente que, não vindo substituí-lo, lhe ocupa o lugar com as memórias que traz. Já fui a vários velórios. Sei que o morto se recorda com histórias e gargalhadas, com alguém que traz mais um "Lembras-te quando...?". Ali, a justiça divina foi questionada várias vezes, para depois ser assentada como existente, que não vemos os desígnios de Deus, que este escolhe maneiras de testar os seus seguidores e senti vontade de testar a estabilidade e graça da minha mão nalgumas faces. Decidi ir buscar a D. Encontramo-nos, não sei bem como reagir. O que somos? Ela abraça-me: sei que o que somos é muito menos do que amamos e basta-me. O abraço é longo, queremos chorar ambos mas não ali. A minha mão é agarrada e só será solta no fim de tudo. No regresso a casa, vejo já imensa gente: vizinhos, antigos vizinhos, antigos colegas, gente que conheço desde criança. A D., para todos os efeitos, é apresentada como minha namorada, porque já há complicações a mais entre vivos e mortos. Ao longo do dia, e antes da chegada do corpo do meu pai, a minha casa é invadida por pessoas que sofrem e outras que querem sofrer, mas não sabem como. Vi homens que habitualmente transformam o mundo no melhor dos espaços através da sua boa disposição com ares tão cabisbaixos quanto um pântano cheio de algas. Encostados aos muros e às paredes, sustendo o sol, tentando fugir da realidade tomando para si a responsabilidade de tudo: contactar pessoas para informar que o Vitinho morreu, ajudar a coordenar o funeral com a minha mãe, pondo-me a mão pelas costas porque já me viram com um metro e menos, porque o meu pai fez parte da vida deles mais anos do que da minha, porque o conhecem sempre e agora foi-se, e eu sei que se foi e não nego nem fujo, mas a morte é sempre uma coisa tão natural e fluida, como um ar que nos dá e que se deu, como um momento de transição para nenhures.

As horas de velório são uma viagem surreal ao meu interior. Quanto mais pêsames me dão, menos me pesam. Adopto gestos maquinais, frases cliché, aceito os outros, que conheço na maioria, como estranhos que não vejo de momento. É um cortejo de espelhos foscos com a mesma cassete. No caixão aberto, o meu pai, de olhos fechados, dorme, mas não ressona. A D. está ali e não foge, mesmo quando uma e outra vez tem de falar e estar com gente que nem nunca viu na vida, nem voltará a ver. Quando me sinto a desfalecer de tédio, de sair dali e não estar, os olhos dela garantem-me que é ali que estou como devo, com ela ao lado, e de repente o que resta do mundo que conheço tolera-se, com algum contra-gosto. Não me recordo da maior parte das pessoas, se vou ser honesto. Sei que aceitei muitos sentimentos, ouvi muitas queixas de como tudo era injusto para o meu pai, de como só me apetecia arrasar a capela e gritar a todos que sim, que era injusto, que vi gente ali cuja perda não pesaria tanto, de que foda-se, o meu pai nunca esteve doente a vida toda e está uma vez e morre e que mundo é este onde a única coisa que todos querem fazer é estar e sentar e encolher os ombros porque a vida é assim? Tem de sê-lo, tem, temos de assobiar descansadinhos e numa sentença de morte levar ano e meio a sumir e encher assim um espaço de gente que sente falta? Não, não devia ser! Mas amigos antigos surgem, a L. abraça-me sem dizer palavra, num repelão como se quisesse levar-me dali e a mão da D. não larga a minha e no meio de tudo, de todo o luto e da perda, de quem chega e diz baboseiras, de quem chega e sabe que palavras colocar para que eu não caia num buraco, no meio de tudo, no meio de tudo isto a sua mão é o meu mundo. No meio da morte, é um pouco de vida; e o meu pai não me fez para estar morto enquanto respiro.

O momento mais doloroso desta experiência, para mim, foi o fecho do caixão. Nas semanas seguintes, pensei em como a imagem e a forma, o corpo e os olhos, são de facto o que nos liga ao mundo. A tampa cai e o meu pai deixa de estar visível. O meu irmão, que passou dois dias a enganar-se e com um ar fleumático, numa resignação de que sabe o que espera porque a vida está mapeada e segue determinados trâmites, cai por fim. Chora desalmado, lágrimas que salpicariam as paredes se ao menos ele deixasse e abraça-se instintivamente a mim, um fenómeno cuja ocorrência só pode ser comparável a uma decisão sensata de Donald Trump ou a Marcelo Rebelo de Sousa negando-se a uma foto. Eu choro também, um pouco porque o momento me bate tão fundo quanto uma bomba atómica detonada em profundidade, um pouco porque não deixo o meu irmão mais novo chorar sozinho. Carpimos ambos e é verdade, ele não volta. É real por fim, andámos a enganar-nos. A minha missa é passada em estoicismo, procurando pormenores de uma igreja que conheço de trás para a frente, pois uma boa parte da minha vida está dentro daquelas paredes. Só quero fingir que não estou ali. Noto que o espaço está tão cheio que gente ficou de fora. É uma segunda de manhã, atentem. Acho incrível e de certa forma surpreendo-me. A minha relação com o meu pai não foi próxima. Não me estou a queixar, às vezes é assim quando as incompatibilidades se amontoam. Mas era meu pai, claro, e ver tantas caras pungentes, pesando em si o momento numa perda inconsolável, suspiros sérios e olhares líquidos, memórias que não se perdem e só ganham substância na certeza de que são tudo o que sobra quando não há nada mais, conforta-me de alguma maneira. Catrapisca-se no enorme radar da existência, mas deixa-se marca. Não dá para a imortalidade, mas é um feito e conhecendo de onde veio aquele que me fez a meias, garanto-vos que é uma vitória sair do mundo quase em ombros.

O funeral foi o que foi. É o fim. Gente vem do nada para chorar comigo, gente que se aproxima e ainda hoje é próxima. Passaram três anos desde que recebi aquela notícia. Do alto desta torre, espreito então esse 2014 e ainda o sinto como um atropelo. Não me recordo de ter tido um ano tão intenso em toda a minha existência, em esplendor e ruína. Nunca mais fui o mesmo depois, em tudo. Quebrei regras pessoais, estiquei os meus limites e ainda hoje envergo um guarda-chuva de amianto, para me proteger da chuva nuclear resultante. Há muito mais histórias em 2014 e se a curiosidade vos espicaçar, sugiro que leiam o que está para trás nesta ilha e tentem decifrar. A D. esteve comigo até ao fim, mesmo quando criámos esses mesmo fim para nós. Sinto que passei por estes momentos de perda com os seus ganhos, pelos pingos do aguaceiro por sua causa e nunca me esqueci que apesar de se parecer tantas vezes com a tômbola do Jogos de Santa Casa, o grande desenho da existência não é linear. A nossa maior dor pode oferecer-nos uma cura milagrosa e quando alguém desaparece, o buraco só fica se o deixarmos por tapar. Ainda que o sumiço seja o mais definitivo de todos. A D. doeu-me tanto, ainda me comicha um bocadinho às vezes quanto estou sozinho e sopro bolas de sabão invisíveis, mas aumentou o meu coração em escala macro. Nunca lhe agradeci isso, nunca lho disse. Talvez o leia aqui eventualmente.

Se for sincero, o meu pai não me ensinou assim tanto sobre a vida. Não porque não soubesse, mas porque não me sabia explicar. Nasci-lhe estranho. Fui a primeira criação e talvez lhe tenha saído mais do que a encomenda. Nunca percebeu bem o que era, apenas que não seria mau ou de deitar fora e passou o resto da vida, se não a tentar entender-me, pelo menos a garantir que nada se atravessaria no meu caminho de me entender também. Não sei bem o que pensaria hoje de mim, se me tornei em algo que ele acharia aceitável como pessoa, se lhe carrego a memória como devo, se não traio de alguma maneira a expectativa de quando lhe deram também uma notícia, mas a de que ia deixar de ser apenas marido e GNR, mas também aquilo pelo qual o tratei durante esta história toda: meu pai. Talvez tenhamos deixado muita coisa por dizer, mas se a vida fosse feita de finais felizes, ninguém queria lê-los ou vê-los. Sei que estou aqui e ele não. O mundo é um pouco pior por isso: não pela minha presença, que algures levará a alguém um certo conforto, mas não estando ele, fico sempre com a sensação de que os homens decentes nunca estarão completos. Por mais anos que passem e por mais bébés que nasçam, sinto que nunca o estarão; e essa talvez tenha sido a morte mais esmagadora desse dia.

sexta-feira, julho 07, 2017

Infantilidades



Há um estranho efeito secundário de se ser professor e que nunca vem contabilizado nos problemas de saúde derivados da profissão. Não é físico, embora afecte o corpo em escalas quase imperceptíveis, e funciona um pouco como a exposição a uma substância radioactiva muito perigosa, invariavelmente letal, que causa uma dor profunda na nostalgia, no bom senso, no bem estar. Falo do adolescente, esse pequeno concentrado de hormonas, mas acima de tudo de potencial e sonhos em abertos em copa de árvores, raízes profundas, um tronco rijo que espreita o futuro a partir da sua altura e ignora por completo que este é uma moto-serra que espera apenas uma volta de corda para iniciar a sua tarefa intrínseca de abater florestas de optimismo. Tive uns 60 alunos este ano e em quase todos eles senti aquilo que já me foge, ou seja, a capacidade de acreditar que tudo é possível e que todas as hipóteses têm igual probabilidade de voar se assim lhes soprarmos.Mais do que idiotas irritantes (que também os há) ou velcros de chapadões que nunca poderei dar, os mânfios e mânfias pelos quais passei pelo corredor todos os dias lembram-me da minha própria caminhada em direcção à velhice, de que o tempo, como o crocodilo que persegue o Capitão Gancho, nada nas profundezas, esperando a melhor altura para me transportar consigo para elas, não me deixando sequer a carne nos ossos. O tempo corre e nós corremos com ele numa maratona em que perdemos por chegar em primeiro. Viver é a única prova de atletismo a subverter as regras habituais da competição e também por isso se torna cada vez mais paradoxal com o remar dos anos.

Apesar de alguns mitos de que já nasci velho e carrancudo, também eu nasci criança. Acredito haver uma ou outra testemunha a comprová-lo, se por aí indagarem. Não sei se me revejo totalmente num aluno que tenha tido jamais, mas há pedaços de mim nalguns, até nos mais parvalhões. A criança e o adolescente não são tão diferentes assim: ambos sabem pouco do mundo e querem descobrir - a criança é a única que tem o bom senso de fazer as perguntas em primeiro; e mesmo quando se chega a adulto, não se deixem enganar pelas frases feitas das redes sociais: a criança mantém-se lá, apenas desobre que afinal o recreio é outro: ninguém lhe faz a papa à borla, a sesta é muito opcional e andar nu pela rua é aceite com muito menos tolerância. Há uns dias dei por mim a pensar na minha infância e fiquei espantado por me escaparem boa parte das memórias numa primeira busca. Não estavam à mão de semear, nem ao pé de colher: de facto, pelo tempo demorado, julguei até nunca terem sido semeadas. Mas eu sabia que sim e fui desvelando; mas só isto fez-me perceber o quanto essa tal criança que não morre está a desaparecer. A criança perpétua vive na exacta proporção do optimismo. Se repararem, é tão raro ver crianças com negativismo nos olhos. É por isso que se espalham e aleijam, porque acreditam, contra todas as probabilidades da lógica, que aquele salto é possível, e que o muro não é assim tão sólido, e que deslizar em cima de uma casca de eucalipto faz tão bem às vias respiratórias quando o que conta aqui é a conta a pagar num ortopedista. São elas que crêem que os pais se amam muito, mesmo quando não amam, e que o Pai Natal pode existir, e que na Páscoa é o Jesus quem vem a casa, e que estamos quase a chegar mesmo que faltem cinco horas. As crianças não são ingénuas, porque a ingenuidade implica um desconhecimento do mundo. Elas apenas fingem que este não se encontra lá, que as regras são tão moles quanto a plasticina e fáceis de partir como rebuçados na boca. Afinal, lembremo-nos que esta é a fase da vida em que os dentes caem e crescem. Miúdos vêem-se como Wolverines. Para quê acreditar no pior?

Gostava de me ver como na minha foto preferida onde apareço desdentado da vida, mas morto de felicidade, sem me importar sequer com fotogenias. Só feliz. Ser filho mais velho é também ser o filho amado, ser aquele desejado pelos pais como nenhum depois, ser numa espécie de milagre, de realização de que duas pessoas podem produzir outra, têm essa divindade em si. O primeiro apanha com os efeitos de tentativa/erro, mas é também esse farol pelo qual certas mães sonham e outros pais, anseiam. Não sei se estou a pensar naquilo nessa foto. O mais provável é que tivesse acabado de ler um livro qualquer, uma enciclopédia. Mas quando me fui esquecendo daquilo que é tão meu, que me constrói, soube que algures em mim, num canto talvez entre o estômago e o coração, os dois órgãos preferidos das crianças, a minha infância meteu férias e não sei se volta. Podia culpar o mundo, mas na generalidade a responsabilidade é minha. Sou eu quem toma conta dela; e se bem que não posso controlar a morte e os seus efeitos, tomei gosto de adolescente e decidi, depois de anos a guardar-me como uma caixa-forte, investir em negócios que o meu coração não pode nunca pagar. Como eu disse, um adulto é uma criança potencial menos na biologia, e em questões amorosas, não existe a velha infância: existe uma burra permenante quando se quer provar o que afinal todos os autores literários sabem estar errado - que querer não é poder, é às vezes foder e quase sempre roer a corda que nos prende à inteligência. Depois de quase trinta anos de babysitting, a criança foi deixada refém dos seus próprios meios e o resultado é um castigo permanente, pior do que não ver televisão a seguir ao jantar ou ficar no quarto de luz apagada.

Nem sei bem se o desdentado regressará. Sei que pode parecer uma preocupação menor comparada com a realidade da vida dos adultos, mas é ele que mais me preocupa, que mais procuro, que quero recuperar. Sei que sem ele não estou completo e que sem o seu inestimável contributo, parei. Sou feliz na mesma proporção da estupidez natural que sempre me dominou e que leva muita gente a questionar a minha sanidade, que arranca de mim loucuras temporárias e solta interrogações permanentes, perguntas e curiosiade, voracidade intensa de conhecer e descobrir, estar nos outros e ser neles, simplesmente sorrir na presença de quem me prende num fogo de rabia. Sei que partiu, sei que anda longe, não o ouço ou sinto ou vejo. Apenas espero; e se a criança é esperança, esperar é aplicá-la em mim. Talvez se esperar, mesmo com muito compromisso, essa espera se transforme em esperança e o miúdo perceba que já chega de brincadeiras.

Está na hora do regresso.