sexta-feira, julho 07, 2017

Infantilidades



Há um estranho efeito secundário de se ser professor e que nunca vem contabilizado nos problemas de saúde derivados da profissão. Não é físico, embora afecte o corpo em escalas quase imperceptíveis, e funciona um pouco como a exposição a uma substância radioactiva muito perigosa, invariavelmente letal, que causa uma dor profunda na nostalgia, no bom senso, no bem estar. Falo do adolescente, esse pequeno concentrado de hormonas, mas acima de tudo de potencial e sonhos em abertos em copa de árvores, raízes profundas, um tronco rijo que espreita o futuro a partir da sua altura e ignora por completo que este é uma moto-serra que espera apenas uma volta de corda para iniciar a sua tarefa intrínseca de abater florestas de optimismo. Tive uns 60 alunos este ano e em quase todos eles senti aquilo que já me foge, ou seja, a capacidade de acreditar que tudo é possível e que todas as hipóteses têm igual probabilidade de voar se assim lhes soprarmos.Mais do que idiotas irritantes (que também os há) ou velcros de chapadões que nunca poderei dar, os mânfios e mânfias pelos quais passei pelo corredor todos os dias lembram-me da minha própria caminhada em direcção à velhice, de que o tempo, como o crocodilo que persegue o Capitão Gancho, nada nas profundezas, esperando a melhor altura para me transportar consigo para elas, não me deixando sequer a carne nos ossos. O tempo corre e nós corremos com ele numa maratona em que perdemos por chegar em primeiro. Viver é a única prova de atletismo a subverter as regras habituais da competição e também por isso se torna cada vez mais paradoxal com o remar dos anos.

Apesar de alguns mitos de que já nasci velho e carrancudo, também eu nasci criança. Acredito haver uma ou outra testemunha a comprová-lo, se por aí indagarem. Não sei se me revejo totalmente num aluno que tenha tido jamais, mas há pedaços de mim nalguns, até nos mais parvalhões. A criança e o adolescente não são tão diferentes assim: ambos sabem pouco do mundo e querem descobrir - a criança é a única que tem o bom senso de fazer as perguntas em primeiro; e mesmo quando se chega a adulto, não se deixem enganar pelas frases feitas das redes sociais: a criança mantém-se lá, apenas desobre que afinal o recreio é outro: ninguém lhe faz a papa à borla, a sesta é muito opcional e andar nu pela rua é aceite com muito menos tolerância. Há uns dias dei por mim a pensar na minha infância e fiquei espantado por me escaparem boa parte das memórias numa primeira busca. Não estavam à mão de semear, nem ao pé de colher: de facto, pelo tempo demorado, julguei até nunca terem sido semeadas. Mas eu sabia que sim e fui desvelando; mas só isto fez-me perceber o quanto essa tal criança que não morre está a desaparecer. A criança perpétua vive na exacta proporção do optimismo. Se repararem, é tão raro ver crianças com negativismo nos olhos. É por isso que se espalham e aleijam, porque acreditam, contra todas as probabilidades da lógica, que aquele salto é possível, e que o muro não é assim tão sólido, e que deslizar em cima de uma casca de eucalipto faz tão bem às vias respiratórias quando o que conta aqui é a conta a pagar num ortopedista. São elas que crêem que os pais se amam muito, mesmo quando não amam, e que o Pai Natal pode existir, e que na Páscoa é o Jesus quem vem a casa, e que estamos quase a chegar mesmo que faltem cinco horas. As crianças não são ingénuas, porque a ingenuidade implica um desconhecimento do mundo. Elas apenas fingem que este não se encontra lá, que as regras são tão moles quanto a plasticina e fáceis de partir como rebuçados na boca. Afinal, lembremo-nos que esta é a fase da vida em que os dentes caem e crescem. Miúdos vêem-se como Wolverines. Para quê acreditar no pior?

Gostava de me ver como na minha foto preferida onde apareço desdentado da vida, mas morto de felicidade, sem me importar sequer com fotogenias. Só feliz. Ser filho mais velho é também ser o filho amado, ser aquele desejado pelos pais como nenhum depois, ser numa espécie de milagre, de realização de que duas pessoas podem produzir outra, têm essa divindade em si. O primeiro apanha com os efeitos de tentativa/erro, mas é também esse farol pelo qual certas mães sonham e outros pais, anseiam. Não sei se estou a pensar naquilo nessa foto. O mais provável é que tivesse acabado de ler um livro qualquer, uma enciclopédia. Mas quando me fui esquecendo daquilo que é tão meu, que me constrói, soube que algures em mim, num canto talvez entre o estômago e o coração, os dois órgãos preferidos das crianças, a minha infância meteu férias e não sei se volta. Podia culpar o mundo, mas na generalidade a responsabilidade é minha. Sou eu quem toma conta dela; e se bem que não posso controlar a morte e os seus efeitos, tomei gosto de adolescente e decidi, depois de anos a guardar-me como uma caixa-forte, investir em negócios que o meu coração não pode nunca pagar. Como eu disse, um adulto é uma criança potencial menos na biologia, e em questões amorosas, não existe a velha infância: existe uma burra permenante quando se quer provar o que afinal todos os autores literários sabem estar errado - que querer não é poder, é às vezes foder e quase sempre roer a corda que nos prende à inteligência. Depois de quase trinta anos de babysitting, a criança foi deixada refém dos seus próprios meios e o resultado é um castigo permanente, pior do que não ver televisão a seguir ao jantar ou ficar no quarto de luz apagada.

Nem sei bem se o desdentado regressará. Sei que pode parecer uma preocupação menor comparada com a realidade da vida dos adultos, mas é ele que mais me preocupa, que mais procuro, que quero recuperar. Sei que sem ele não estou completo e que sem o seu inestimável contributo, parei. Sou feliz na mesma proporção da estupidez natural que sempre me dominou e que leva muita gente a questionar a minha sanidade, que arranca de mim loucuras temporárias e solta interrogações permanentes, perguntas e curiosiade, voracidade intensa de conhecer e descobrir, estar nos outros e ser neles, simplesmente sorrir na presença de quem me prende num fogo de rabia. Sei que partiu, sei que anda longe, não o ouço ou sinto ou vejo. Apenas espero; e se a criança é esperança, esperar é aplicá-la em mim. Talvez se esperar, mesmo com muito compromisso, essa espera se transforme em esperança e o miúdo perceba que já chega de brincadeiras.

Está na hora do regresso.

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