À minha frente, um garoto de olhos oblíquos denuncia-se como oriental. Tento perceber de onde é e quando os pais, enfim, comunicam entre si, descubro que é chinês, ou pelo menos taiwanês. Dois anos de japonês não serviram de muito, mas sempre aprendi a distinguir dialectos asiáticos. É um rapazola com uns quatro, cinco anos e a sua cabecinha navega por cima e por baixo das ondas da cabeceira do lugar. Vai sorrindo e fixando-me e eu entro na brincadeira com caretas e línguas de fora. Ele sorri e ri, não desarma e também ensaia na sua cara luzidia números de comédia infantil improvisados e destinados à inocência. Dura uns minutos e quando termina, uma moça ao meu lado, talvez da minha idade, liberta por fim uma comichão entalada desde o início do vôo, quer falar com alguém e calhou apanhar-me. Chama-se Teresa e é alentejana, ó coincidência, algures de perto de Évora. Não está de viagem, como eu, e é uma das milhares que respondeu ao apelo visionário do nosso amado líder Passos Coelho na procura de felicidade em locais onde a felicidade não se parece com o caule de uma roseira por uma garganta descendo. É psicóloga e adora o que faz, já trabalha com miúdos problemáticos de vários tipos e de momento nem engraça com Portugal e diz, à boa maneira dos emigrantes querosianos, que tudo é uma choldra. O Governo abandonou o Alentejo, nisso tem razão, e decidiu procurar vida num local mais civilizado. A Dinamarca encaixa-se bem naquilo que ela espera da vida profissional: os horários são certinhos, a descontracção presente e as cidades são recreios de vida, não amontoados de obrigações burocráticas, selvas de betão com lianas onde se dependura o nosso stress. Tão cedo não volta e reconhece de imediato o Alentejo que lhe descrevo da minha passagem por Colos, gaba-me a disponibilidade para ter aceite a aventura e quando lhe conto que o meu destino são as Faroe, nunca lá pôs os pés ainda que habite em Copenhaga há seis anos. Neste momento está desempregada, mas não se importa, na Dinamarca tratam muito bem quem não tem emprego e até encorajam que se limpe a cabeça de vez em quando, como que aceitando que trabalhar sem parança não é o nosso estado natural. Sábios, estes nórdicos.
A aterragem é péssima, mas sobrevivemos. A Teresa e eu trocamos e-mails, prometo que lhe enviarei fotos das Faroe, ela quer sentir o pulso da ilha, está muito curiosa por visitá-las. Despedimo-nos à portuguesa, com dois beijos, e ela ri-se, há muito tempo que não fazia estas coisas à portuguesa. Parto em busca do meu grupo de viagem e acabo por encontrá-los na cinta das malas. Dizemos olá, nomes rápidos que nem fixo e quando recolho a minha mochila, o desconforto de sentir a humidez. Abro-a e descubro que o meu champô rebentou e não o tinha fechado num saco. É fácil ser-se estúpido quando se habita a minha cabeça. Quando estamos para sair do aeroporto, sinto um toque no ombro e sou interpelado pela língua inglesa, sotaque australiano. Um homem com os seus quarenta e muitos anos aponta-me para a t-shirt. "Have you been there, sir?" e eu não sou qualquer sir, tenho 34 anos e estou desempregado e ando aqui a viajar e nem sei bem que vida tenho e "sirs" são pessoa bem orientadas. O que visto exibe, contra um fundo vermelho, o brasão solar da bandeira do Quirguistão. "Yes, I have, it is a very beautiful country", e ele concorda, é de Melbourne e vive algures na Alemanha onde conheceu a esposa, que nasceu nessa terra longínqua da Ásia Central. É um momento globalização de grande coincidência e que fica comigo pela simples razão que por muito que tente ser várias versões de mim, as anteriores acabam sempre por apanhar-me em inesperados relances.
À entrada do aeroporto, somos um grupo de onze pessoas que nem sabe muito bem como se orientar. Um funcionário observa a nossa perplexidade e de imediato pergunta o que queremos, arranja um táxi-carrinha e em dois minutos estamos a sair dali. Se fosse em Lisboa, estávamos neste momento a ir pela A1 em direcção a Alverca. à noite, Copenhaga é um ninho de ocasionais pirilampos. Fora do centro, predominam as transparências dos vidros e a solidez do metal que suporta edifícios de arte contemporânea, as suas luzes artificiais misturando-se na natureza aquática do mar que rodeia a ilha de Zealand, onde se fixa a capital dinamarquesa. Por entre estações de serviço e outros pontos habituais numa grande cidade, fica-me o contraste entre esta área e o centro de Copenhaga, carregado de arquitectura neo-clássica e industrial. Quando chego ao meu hotel, principescamente chamado "Christian IV", já me sinto alienado. Ficarei aqui a dormir com o guia da viagem, o Paulo, um indivíduo cuja face não destoaria de um quadro de Rembrandt. O check-in é feito por um tipo que tem menos uns dez anos do que eu e fala um inglês fluente. Informa-nos que o nosso quarto tem uma cama apenas, larga, e quando olho para o Paulo, o funcionário quer avançar com uma piada mais gay, mas morde a língua a tempo. Informa-nos que na sala de jantar há café, chá e biscoitos à borla toda a noite, se quisermos. Rica vida.
O elevador sobe e apertadinho. Chegamos ao último andar e a nossa dormida instala-se num sótão, umas águas furtadas bastante acolhedoras. Os corredores preenchem-se com estantes livrescas, companhia para os mais solitários em noites da Dinamarca. O nosso quarto é o 57 e a cama única são afinal duas coladas. Há espaço para declararmos fronteira entre nós, mal nos conhecemos, mas brincamos já com a situação. Depois de um banho merecido, e de limpar o meu estojo de higiene que jamais deixará escapar o odor a Linic mentol, decidimos descer até à tal sala de jantar. O estômago sente-se reconfortado e entre leite e café, o Paulo confessa-me a sua atracção pelo Norte da Europa e um amor imortal, qual Duncan Macleod, pela Escócia. Muitas vezes a visitou e jurou retornar sempre que possível e até já por lá passeou de kilt e tomou para si um nome escocês. Está bem mais à vontade com o mundo do que eu, e isso não é nada complicado. Mando umas piadas e partilho histórias e algumas fotos do Quirguistão e devo passar por um tipo que sabe muito da vida e de passeios, mas apenas fui até à Ásia Central no ano passado. No entant,o a viagem não é uma coisa que se possa quantificar, na verdade, interessa mais a marca bruta de pegada que nos deixa, o quanto nos abrimos a essa experiência alienígena de estar noutro lugar, noutro meio, noutro fim. Se calhar até sou um tipo bem vivido, mas na minha cabeça e naquele lugar onde conta de facto, onde remexe connosco o conhecimento e a curiosidade, a exploração do que desconhecemos, onde moram as expectativas e também as pessoas que se tornam habitat em nós, e onde penso em alguém que não devia e em alguém que devia, mas não sei bem ainda porquê. É no momento em que o Paulo acaba de descrever o seu pedido de casamento à Sara e damos pelas horas na etrada da madrugada, em Copenhaga estamos adiantados uma horinha e o melhor é ir para cama.
Enquanto subimos, registo-me em perguntas e inquietações, em como me projecto e em como sou com quem não me conhece e sem dar pelo tempo a passar, já estou deitado, na cama. Olho o tecto, uma janela branca sobre mim deixa passar um rasgo de luz e em Copenhaga não é diferente de Ceira e o que penso aqui, nesta cama, neste pequena metrópole nórdica, é o que me inquieta também como moço de aldeia quando me agarro a uma almofada e faço perguntas que nenhuma voz pega de caras. Também não será hoje. Deixo que o cansaço aterre em mim bem mais suavemente do que o avião e nem sei o que se passou a seguir e portanto não posso contar.