terça-feira, outubro 24, 2017

Ihas Far Away: A chegada a Copenhaga


Nunca voei numa low-cost. Até agora, quero dizer, porque ir do Porto até Copenhaga foi com a Ryan Air e há uma certa diferença no ambiente quando se entra num avião desta companhia irlandesa. Não é bem o tamanho e embora as condições de longitude e latitude sejam mais curtas no interior, também não se trata disso. Ao meu olhar, os rebites aparecem mais evidentes, invento rachas nos vidros e cada tremelique penso no imediato que o bólide aéreo se vai desfazer. Por aqui se vê que tenho pouca pinta de viajante, nunca poderia ser um Joel Neto desta vida. Os voos da Ryan Air são um pouco como aquele canal de televendas que vos adormece pela noite fora, com a diferença de que tudo é em directo e dormir é a última coisa que o pessoal de bordo vos permite: ofertas em catadupa de perfumes e quinquilharia, sob promessas de transformar o avião num paraíso fiscal mesmo à medida de José Sócrates... se ele não fosse, como é, um perseguido pela Justiça portuguesa. Até lotarias e sorteios nos tentam impingir, como se brincar à estatística já não fosse a raison d'être dos negócio da aviação. Recolho-me à minha própria companhia que é aérea só no sentido que ando sempre com a cabeça no ar. Na viagem até Copenhaga, fazem-me companhia "The devil's dictionary", divertidíssimo compêndio de recalcitrantes definições por Ambrose Bierce, parente perdido de Mark Twain; e "Os sete loucos", do argentino Roberto Arlt, livro que me foi oferecido pela P. e é demente na mesma proporção que não considera a demência louca o suficiente para se alhear deste mundo. Quando olho fundo para a traseira das caveiras de uma das hospedeiras de bordo, juro encontrar um pouco desta demência; mas afinal não, apenas vamos estar sujeitos a turbulência e ela apenas me pede que desligue aparelhos electrónicos e recolha a biblioteca pessoal

À minha frente, um garoto de olhos oblíquos denuncia-se como oriental. Tento perceber de onde é e quando os pais, enfim, comunicam entre si, descubro que é chinês, ou pelo menos taiwanês. Dois anos de japonês não serviram de muito, mas sempre aprendi a distinguir dialectos asiáticos. É um rapazola com uns quatro, cinco anos e a sua cabecinha navega por cima e por baixo das ondas da cabeceira do lugar. Vai sorrindo e fixando-me e eu entro na brincadeira com caretas e línguas de fora. Ele sorri e ri, não desarma e também ensaia na sua cara luzidia números de comédia infantil improvisados e destinados à inocência. Dura uns minutos e quando termina, uma moça ao meu lado, talvez da minha idade, liberta por fim uma comichão entalada desde o início do vôo, quer falar com alguém e calhou apanhar-me. Chama-se Teresa e é alentejana, ó coincidência, algures de perto de Évora. Não está de viagem, como eu, e é uma das milhares que respondeu ao apelo visionário do nosso amado líder Passos Coelho na procura de felicidade em locais onde a felicidade não se parece com o caule de uma roseira por uma garganta descendo. É psicóloga e adora o que faz, já trabalha com miúdos problemáticos de vários tipos e de momento nem engraça com Portugal e diz, à boa maneira dos emigrantes querosianos, que tudo é uma choldra. O Governo abandonou o Alentejo, nisso tem razão, e decidiu procurar vida num local mais civilizado. A Dinamarca encaixa-se bem naquilo que ela espera da vida profissional: os horários são certinhos, a descontracção presente e as cidades são recreios de vida, não amontoados de obrigações burocráticas, selvas de betão com lianas onde se dependura o nosso stress. Tão cedo não volta e reconhece de imediato o Alentejo que lhe descrevo da minha passagem por Colos, gaba-me a disponibilidade para ter aceite a aventura e quando lhe conto que o meu destino são as Faroe, nunca lá pôs os pés ainda que habite em Copenhaga há seis anos. Neste momento está desempregada, mas não se importa, na Dinamarca tratam muito bem quem não tem emprego e até encorajam que se limpe a cabeça de vez em quando, como que aceitando que trabalhar sem parança não é o nosso estado natural. Sábios, estes nórdicos.

A aterragem é péssima, mas sobrevivemos. A Teresa e eu trocamos e-mails, prometo que lhe enviarei fotos das Faroe, ela quer sentir o pulso da ilha, está muito curiosa por visitá-las. Despedimo-nos à portuguesa, com dois beijos, e ela ri-se, há muito tempo que não fazia estas coisas à portuguesa. Parto em busca do meu grupo de viagem e acabo por encontrá-los na cinta das malas. Dizemos olá, nomes rápidos que nem fixo e quando recolho a minha mochila, o desconforto de sentir a humidez. Abro-a e descubro que o meu champô rebentou e não o tinha fechado num saco. É fácil ser-se estúpido quando se habita a minha cabeça. Quando estamos para sair do aeroporto, sinto um toque no ombro e sou interpelado pela língua inglesa, sotaque australiano. Um homem com os seus quarenta e muitos anos aponta-me para a t-shirt. "Have you been there, sir?" e eu não sou qualquer sir, tenho 34 anos e estou desempregado e ando aqui a viajar e nem sei bem que vida tenho e "sirs" são pessoa bem orientadas. O que visto exibe, contra um fundo vermelho, o brasão solar da bandeira do Quirguistão. "Yes, I have, it is a very beautiful country", e ele concorda, é de Melbourne e vive algures na Alemanha onde conheceu a esposa, que nasceu nessa terra longínqua da Ásia Central. É um momento globalização de grande coincidência e que fica comigo pela simples razão que por muito que tente ser várias versões de mim, as anteriores acabam sempre por apanhar-me em inesperados relances.

À entrada do aeroporto, somos um grupo de onze pessoas que nem sabe muito bem como se orientar. Um funcionário observa a nossa perplexidade e de imediato pergunta o que queremos, arranja um táxi-carrinha e em dois minutos estamos a sair dali. Se fosse em Lisboa, estávamos neste momento a ir pela A1 em direcção a Alverca. à noite, Copenhaga é um ninho de ocasionais pirilampos. Fora do centro, predominam as transparências dos vidros e a solidez do metal que suporta edifícios de arte contemporânea, as suas luzes artificiais misturando-se na natureza aquática do mar que rodeia a ilha de Zealand, onde se fixa a capital dinamarquesa. Por entre estações de serviço e outros pontos habituais numa grande cidade, fica-me o contraste entre esta área e o centro de Copenhaga, carregado de arquitectura neo-clássica e industrial. Quando chego ao meu hotel, principescamente chamado "Christian IV", já me sinto alienado. Ficarei aqui a dormir com o guia da viagem, o Paulo, um indivíduo cuja face não destoaria de um quadro de Rembrandt. O check-in é feito por um tipo que tem menos uns dez anos do que eu e fala um inglês fluente. Informa-nos que o nosso quarto tem uma cama apenas, larga, e quando olho para o Paulo, o funcionário quer avançar com uma piada mais gay, mas morde a língua a tempo. Informa-nos que na sala de jantar há café, chá e biscoitos à borla toda a noite, se quisermos. Rica vida.

O elevador sobe e apertadinho. Chegamos ao último andar e a nossa dormida instala-se num sótão, umas águas furtadas bastante acolhedoras. Os corredores preenchem-se com estantes livrescas, companhia para os mais solitários em noites da Dinamarca. O nosso quarto é o 57 e a cama única são afinal duas coladas. Há espaço para declararmos fronteira entre nós, mal nos conhecemos, mas brincamos já com a situação. Depois de um banho merecido, e de limpar o meu estojo de higiene que jamais deixará escapar o odor a Linic mentol, decidimos descer até à tal sala de jantar. O estômago sente-se reconfortado e entre leite e café, o Paulo confessa-me a sua atracção pelo Norte da Europa e um amor imortal, qual Duncan Macleod, pela Escócia. Muitas vezes a visitou e jurou retornar sempre que possível e até já por lá passeou de kilt e tomou para si um nome escocês. Está bem mais à vontade com o mundo do que eu, e isso não é nada complicado. Mando umas piadas e partilho histórias e algumas fotos do Quirguistão e devo passar por um tipo que sabe muito da vida e de passeios, mas apenas fui até à Ásia Central no ano passado. No entant,o a viagem não é uma coisa que se possa quantificar, na verdade, interessa mais a marca bruta de pegada que nos deixa, o quanto nos abrimos a essa experiência alienígena de estar noutro lugar, noutro meio, noutro fim. Se calhar até sou um tipo bem vivido, mas na minha cabeça e naquele lugar onde conta de facto, onde remexe connosco o conhecimento e a curiosidade, a exploração do que desconhecemos, onde moram as expectativas e também as pessoas que se tornam habitat em nós, e onde penso em alguém que não devia e em alguém que devia, mas não sei bem ainda porquê. É no momento em que o Paulo acaba de descrever o seu pedido de casamento à Sara e damos pelas horas na etrada da madrugada, em Copenhaga estamos adiantados uma horinha e o melhor é ir para cama.

Enquanto subimos, registo-me em perguntas e inquietações, em como me projecto e em como sou com quem não me conhece e sem dar pelo tempo a passar, já estou deitado, na cama. Olho o tecto, uma janela branca sobre mim deixa passar um rasgo de luz e em Copenhaga não é diferente de Ceira e o que penso aqui, nesta cama, neste pequena metrópole nórdica, é o que me inquieta também como moço de aldeia quando me agarro a uma almofada e faço perguntas que nenhuma voz pega de caras. Também não será hoje. Deixo que o cansaço aterre em mim bem mais suavemente do que o avião e nem sei o que se passou a seguir e portanto não posso contar. 

segunda-feira, outubro 16, 2017

As Ilhas Far Away: a bagagem que se leva



Sou uma pessoa de mochila. Pode haver a hipótese de levar malas em viagens, de o conforto ser maior, de o que é prático se transformar no que é indicado, mas há qualquer coisa nas minhas costas que implora pela sensação de peso quando a viagem se aproxima. São tiques nervosos, acho. Restos mortais que vivem na minha memória de uma vintena de anos como escuteiro. Os meus dedos recuam no tempo, a carícia daquela agressiva fibra plástica apertando os ombros, tentando equilibrar o peso em ambos os lados para não me incomodar a coluna. A mochila, para mim, é o engodo da viagem. Desta vez, estou a umas horas de descolar a partir de Portugal rumo ao Norte da Europa. Nos dias anteriores, partilhei com muito poucos o desígnio. Rumor em surdina foi crescendo e quando partilho que dentro de alguns dias visito as Ilhas Faroé, a surpresa é apenas uma pequena baforada. Há um ano e pouco, estava na Ásia Central, num país cujo nome os meus amigos mal conseguiam pronunciar. Neste momento, pouco pode sobressaltá-los no que à minha pessoa lhes diz respeito. Limitam-se a mostrar curiosidade, perguntam onde é, o que se faz, nem sequer questionam os motivos, e ainda bem porque não saberia responder-lhes. A minha lógica de escolha é habitualmente simples e bruta: procuro e olho. Se gosto e está dentro do que a minha bolsa pode comportar, vou. O único critério, desta vez, foi o de uma região geográfica bem diferente da anterior, para variar cenários, moldura humana. Tudo o resto é acaso e instinto.

Ainda assim, fiz uma pesquisa prévia sobre o meu destino. As Ilhas Faroé situam-se a meio caminho entre a Islândia e a Noruega, mas o país mais perto é o Reino Unido, através de uns ilhéus da Escócia. Ainda assim, o arquipélago de dezoito ilhas pertence à Dinamarca. Habitam-na quarenta mil. faroeses, que ainda assim são menos do que o imenso rebanho de ovelhas que se propagou por todo o lado e deu às ilhas o seu nome ("Faroe" significa "Ovelhas" no idioma local que nem é o dinamarquês, mas sim o Faroês). Os faroeses gerem-se através de um governo autónomo dependente da da monarca sediada em Copenhaga, mas não podem ver dinamarqueses nem pintados. Têm selecções desportivas própria, a sua língua é muito mais parecia com o norueguês e já fizeram um referendo à catalão para se desvincularem do país ao qual pertencem e que basicamente só os mantém por ali porque a zona económica exclusiva marítima dá um jeitão nas negociações com a UE. São donos de uma moeda própria - a coroa faroesa, que é muito parecida com as nossas antigas notas de escudo - e tirando as partes militar e judicial, auto-governam-se da maneira que entendem. O que dá jeito porque, venho a descobrir mais tarde, há zonas desta ilha que se instalaram onde toda a gente se esqueceu que era possível habitar. Ao longo da História, foram terreno predilecto para renegados da sociedade, que procuravam aqui refúgio sempre que um conflito interno os obrigada a fugir dos respectivos reinos, fossem na Grã-Bretanha ou na Noruega, que já aqui mandou. Quando os reinos norueguês e dinamarquês se separaram em 1814, a pátria de Mads Mikkelsen levou no bolso estas dezoito ilhas e ainda hoje as tem. Hoje, lutam pela independência e querem ser deixados em paz. Isto é tão evidente que se recusaram a juntar à União Europeia, quando os dinamarqueses o fizeram. A religião maioritária é a Cristão, esmagadoramente, e no meio das restantes, algumas há em que não se arranja sequer uma equipa de futsal. Há três sikhs, por exemplo, em todas as Faroe.

Algures parei nas buscas e pesquisas. Não me interessava saber mais, a necessidade de partir e desligar-me era premente; mas quis a ironia que o início deste percurso fosse na cidade de Porto, que é com toda a probabilidade p único ponto do mundo onde gostaria de exercer uma prerrogativa divina de destruição. Detesto a cidade do Porto com uma tal energia que Oppenheimmer me teria fechado numa gigante bola de metal. Nunca gostei dela, de uma altivez negra e acabrunhada, um engano urbano, o único local onde já fui ameaçado de morte e a dobrar. Nos últimos anos, ganhei ainda mais motivos para me sentir desconfortável na maior cidade do norte português e passei algum tempo a tentar descodificar isto, se era do meu percurso emocional ou do próprio espírito portuense, de uma aparente simplicidade genuína que é labreguice e chico-espertice. Concluí que a culpa é geográfica, que nunca senti em Lisboa, por exemplo,a mesma opressão e desconforto que tomam conta das minhas linhas físicas quando calcorreio o chão portuense, quando o rio Douro é apenas uma ilusão prateada na retina e as pontes de metal são grades. As ruas do Porto são um labirinto de Minotauro, com os Clérigos como Knossos. Percebo o fascínio de Sophia pela cultura clássica, também o devia saber. Se vives o que é forte e quase do avesso no Porto, o mel emocional fica contigo, mas os favos cheios de abelhas que picam, a dor lancinante, está presa e capturada no escuro do Porto, no seu angustiante e abafado desenho, na arquitectura com te prende uma âncora que te afunda bem longe das águas fluviais ou das ondas da Foz. É nesta cidade que desaguam as dores do coração e estar aqui, por muito que seja tangencial, amarra-me as pernas aos ventrículos.

Mas a viagem foi-me marcada para o Sá Carneiro. Não fui, foi... alguém, um alguém que não me conhece e que apenas vê na proximidade do Porto um auxílio à minha viagem. Tento ignorar a cidade, mas é-me impossível. Passo por ela, nunca incólume, mas tão de fininho como aquele maior da Cantareira. Chegado ao aeroporto, as alças da mochila devolvem-me alguma estabilidade e avanço, é a viagem que me acalma e me dá a certeza de que algures no mundo, há um local onde não penso nesta, onde a D. só existe no nevoeiro e onde mundos em forma de L. podem tomar outras formas, outros contornos de alto coturno. Check-in feito, aeroporto cheio de gente e quando me sento já depois da segurança, a música preenche-me na espera, enquanto leio um livro de Sam Shepard e tento isolar-me, voltar a mim, colocar-me no centro do meu mundo antes de desvendar um recanto daquele que partilho com os outros. Uma viagem não começa noutro local que não em mim, e o seu término sou eu também; e antes de entrar no avião, sinto-me um risco abstracto, não tenho medo nem temor como há um ano atrás, passei pela transformação do Quirguistão e numa poltrona de confortável hábito, sinto-me um passageiro pouco acidental. Sinto que estou onde escolhi e onde desejo. Sinto que estou perto, mas nas Faroé, estarei Far Away. O trocadilho é infantil, mas em mim, sinto-me pronto a referendar a independência do que me incomoda, se preciso for. Quando me sentar no avião, já nem penso na dor e o avião, ao levantar voo, deixa um pouco de mim para trás, a parte que não interessa, a Ryan Air aliás tem uma apertada política de bagagem. O que conta, a multiplicar, sai rumo a Copenhaga e eu sinto-m e um arquipélago perto de se reunificar.