segunda-feira, outubro 16, 2017

As Ilhas Far Away: a bagagem que se leva



Sou uma pessoa de mochila. Pode haver a hipótese de levar malas em viagens, de o conforto ser maior, de o que é prático se transformar no que é indicado, mas há qualquer coisa nas minhas costas que implora pela sensação de peso quando a viagem se aproxima. São tiques nervosos, acho. Restos mortais que vivem na minha memória de uma vintena de anos como escuteiro. Os meus dedos recuam no tempo, a carícia daquela agressiva fibra plástica apertando os ombros, tentando equilibrar o peso em ambos os lados para não me incomodar a coluna. A mochila, para mim, é o engodo da viagem. Desta vez, estou a umas horas de descolar a partir de Portugal rumo ao Norte da Europa. Nos dias anteriores, partilhei com muito poucos o desígnio. Rumor em surdina foi crescendo e quando partilho que dentro de alguns dias visito as Ilhas Faroé, a surpresa é apenas uma pequena baforada. Há um ano e pouco, estava na Ásia Central, num país cujo nome os meus amigos mal conseguiam pronunciar. Neste momento, pouco pode sobressaltá-los no que à minha pessoa lhes diz respeito. Limitam-se a mostrar curiosidade, perguntam onde é, o que se faz, nem sequer questionam os motivos, e ainda bem porque não saberia responder-lhes. A minha lógica de escolha é habitualmente simples e bruta: procuro e olho. Se gosto e está dentro do que a minha bolsa pode comportar, vou. O único critério, desta vez, foi o de uma região geográfica bem diferente da anterior, para variar cenários, moldura humana. Tudo o resto é acaso e instinto.

Ainda assim, fiz uma pesquisa prévia sobre o meu destino. As Ilhas Faroé situam-se a meio caminho entre a Islândia e a Noruega, mas o país mais perto é o Reino Unido, através de uns ilhéus da Escócia. Ainda assim, o arquipélago de dezoito ilhas pertence à Dinamarca. Habitam-na quarenta mil. faroeses, que ainda assim são menos do que o imenso rebanho de ovelhas que se propagou por todo o lado e deu às ilhas o seu nome ("Faroe" significa "Ovelhas" no idioma local que nem é o dinamarquês, mas sim o Faroês). Os faroeses gerem-se através de um governo autónomo dependente da da monarca sediada em Copenhaga, mas não podem ver dinamarqueses nem pintados. Têm selecções desportivas própria, a sua língua é muito mais parecia com o norueguês e já fizeram um referendo à catalão para se desvincularem do país ao qual pertencem e que basicamente só os mantém por ali porque a zona económica exclusiva marítima dá um jeitão nas negociações com a UE. São donos de uma moeda própria - a coroa faroesa, que é muito parecida com as nossas antigas notas de escudo - e tirando as partes militar e judicial, auto-governam-se da maneira que entendem. O que dá jeito porque, venho a descobrir mais tarde, há zonas desta ilha que se instalaram onde toda a gente se esqueceu que era possível habitar. Ao longo da História, foram terreno predilecto para renegados da sociedade, que procuravam aqui refúgio sempre que um conflito interno os obrigada a fugir dos respectivos reinos, fossem na Grã-Bretanha ou na Noruega, que já aqui mandou. Quando os reinos norueguês e dinamarquês se separaram em 1814, a pátria de Mads Mikkelsen levou no bolso estas dezoito ilhas e ainda hoje as tem. Hoje, lutam pela independência e querem ser deixados em paz. Isto é tão evidente que se recusaram a juntar à União Europeia, quando os dinamarqueses o fizeram. A religião maioritária é a Cristão, esmagadoramente, e no meio das restantes, algumas há em que não se arranja sequer uma equipa de futsal. Há três sikhs, por exemplo, em todas as Faroe.

Algures parei nas buscas e pesquisas. Não me interessava saber mais, a necessidade de partir e desligar-me era premente; mas quis a ironia que o início deste percurso fosse na cidade de Porto, que é com toda a probabilidade p único ponto do mundo onde gostaria de exercer uma prerrogativa divina de destruição. Detesto a cidade do Porto com uma tal energia que Oppenheimmer me teria fechado numa gigante bola de metal. Nunca gostei dela, de uma altivez negra e acabrunhada, um engano urbano, o único local onde já fui ameaçado de morte e a dobrar. Nos últimos anos, ganhei ainda mais motivos para me sentir desconfortável na maior cidade do norte português e passei algum tempo a tentar descodificar isto, se era do meu percurso emocional ou do próprio espírito portuense, de uma aparente simplicidade genuína que é labreguice e chico-espertice. Concluí que a culpa é geográfica, que nunca senti em Lisboa, por exemplo,a mesma opressão e desconforto que tomam conta das minhas linhas físicas quando calcorreio o chão portuense, quando o rio Douro é apenas uma ilusão prateada na retina e as pontes de metal são grades. As ruas do Porto são um labirinto de Minotauro, com os Clérigos como Knossos. Percebo o fascínio de Sophia pela cultura clássica, também o devia saber. Se vives o que é forte e quase do avesso no Porto, o mel emocional fica contigo, mas os favos cheios de abelhas que picam, a dor lancinante, está presa e capturada no escuro do Porto, no seu angustiante e abafado desenho, na arquitectura com te prende uma âncora que te afunda bem longe das águas fluviais ou das ondas da Foz. É nesta cidade que desaguam as dores do coração e estar aqui, por muito que seja tangencial, amarra-me as pernas aos ventrículos.

Mas a viagem foi-me marcada para o Sá Carneiro. Não fui, foi... alguém, um alguém que não me conhece e que apenas vê na proximidade do Porto um auxílio à minha viagem. Tento ignorar a cidade, mas é-me impossível. Passo por ela, nunca incólume, mas tão de fininho como aquele maior da Cantareira. Chegado ao aeroporto, as alças da mochila devolvem-me alguma estabilidade e avanço, é a viagem que me acalma e me dá a certeza de que algures no mundo, há um local onde não penso nesta, onde a D. só existe no nevoeiro e onde mundos em forma de L. podem tomar outras formas, outros contornos de alto coturno. Check-in feito, aeroporto cheio de gente e quando me sento já depois da segurança, a música preenche-me na espera, enquanto leio um livro de Sam Shepard e tento isolar-me, voltar a mim, colocar-me no centro do meu mundo antes de desvendar um recanto daquele que partilho com os outros. Uma viagem não começa noutro local que não em mim, e o seu término sou eu também; e antes de entrar no avião, sinto-me um risco abstracto, não tenho medo nem temor como há um ano atrás, passei pela transformação do Quirguistão e numa poltrona de confortável hábito, sinto-me um passageiro pouco acidental. Sinto que estou onde escolhi e onde desejo. Sinto que estou perto, mas nas Faroé, estarei Far Away. O trocadilho é infantil, mas em mim, sinto-me pronto a referendar a independência do que me incomoda, se preciso for. Quando me sentar no avião, já nem penso na dor e o avião, ao levantar voo, deixa um pouco de mim para trás, a parte que não interessa, a Ryan Air aliás tem uma apertada política de bagagem. O que conta, a multiplicar, sai rumo a Copenhaga e eu sinto-m e um arquipélago perto de se reunificar.

2 comentários:

Gil disse...

Até que enfim. Estava a ver que desta vez te tinha faltado uma musa nórdica para fazeres os teus artigos de viagem. Abraço

luminary disse...

Foi necessário tem po para digerir... E sabes que as musas nórdicas precisam de descongelar em primeiro! Um abraço!