A resposta mais simples é de que sou parvo. É clara e aceitável para quem me conhece. De uma complexidade maior é a hipótese de que ando mal habituado. Passo a explicar melhor. Paulo, nosso líder de expedição, sugerira no dia anterior uma visita fora do programa. Com tempo a mais e motivação extra, porque não dar uma saltada à ilha de Sandoy? Nunca lá pus os pés, disse ele, e gostava, mas só se concordarmos todos. O vosso Bruno, estando ali tão longe, pensa que está por tudo, embora se recorde vagamente de, quando criança, possuir um estômago mais sensível do que um fã de Tokyo Hotel no pico da puberdade. Pois volta e meia acompanhava o meu pai para o emprego e trabalhar nas Lages, perto de Coimbra, implicava uma deslocação com curvas de grau de dificuldade montanha-russa. Chegava do avesso ao batalhão da GNR e a saga repetia-se sempre que a estrada se torcia. Visitas de estudo eram épicas e cedo fui aprendendo truques para me distrair de tudo isto - fechar olhos, aspirar o ar da viagem até cantorilar qualquer coisa para me distrair da agrura. Certas viagens aterrorizavam-me ainda antes de o carro ter começado a rodar. Com o tempo, fui curtindo o enjôo a um ponto onde este, repassado, se foi tornando em algo de tão esporádico que o julguei desaparecido. Portanto, à sugestão de uma viagem de barco, que é só das situações mais sedutoras para um vómito mor, nem sequer me ocorreu pensar, apenas aceitar, nada ia correr mal.
E havia Sandoy. A viagem até lá foi calma e sem grandes sobressaltos. De entre nós, alguns tremeram, sim, mas uma senhora já com a sua idade e experiência, enfrentava tudo como se estivesse a ler o jornal da manhã num café à sua escolha. Fora capitão de navios nos seus tempos de maior juventude e o elemento marítimo era-lhe tão confortável quanto o chão que todos os dias pisamos. Se tivesse poderes crísticos, aposto até que faria paso doble ali mesmo no mar. E perguntam: valeu a pena a viagem? Bem, Sandoy é dos locais mais deprimentes que já estive. Não é que seja feio ou desagradável, sofre apenas uma elevada dose de inconsciência. Não sei sequer se alguma vez se apercebeu de que existe. Existe apenas uma vila, Sandur, e mais tarde apercebemo-nos que tem zero cafés. Zero. É o mesmo número que existe em toda a ilha. Quem ali vive apanha o barco, como em jovem eu apanhava o autocarro, para se vir divertir a Torshavn. Não há nada para fazer, só ir falecendo de quando em vez, a pouco e pouco, sem grande escolha. O nome significa "Ilha de Areia" e enquanto lá estou, sinto um pouco como se o meu espírito se afundasse nelas movediças, de uma maneira lenta e armadilhada. E o que mais me surpreende é que há gente a viver aqui desde o século XI. Que parvoeira. Houve malta que se meteu em embarcações de casca de noz propositadamente para chegar aqui e dizer "Olha, parece-me bem fixe, acho que fico por aqui". Há terrenos férteis, é certo, mas ainda assim só consigo entender que algo seja aqui cultivado apenas por desprezo.
Talvez a bílis não seja merecida, mas vamos regressar ao início deste relambório. Este vosso caríssimo instalado em pleno trono do Hades. A coisa descreve-se rapidamente: mal a viagem de regresso começou, estava eu na cabine de passageiros a tentar simplesmente colocar-me numa certa ambiência de abstracção total, quando a conhecida sensação de centrifugação abdominal meteu a sua cabecinha de fora... E depois o resto do corpo, pés e tudo. A animação da viagem, afinal, estava guardada para o meu estômago. Cerrei as pálpebras, mas só consegui ver rios de vómitos na minha cabeça e perante isso, cantei para mim vários êxitos de Dino Meira, mas mentira mentira, é gregório que se atira. Recorri ao último recurso, quiçá também por alguma vergonha. No exterior, instalei-me de peito ao vento, literal e aspirei golfadas cada vez maior do ar marítimo. Era capaz de jurar que nesse dia alguém ligou uma máquina de lavar roupa no fundo do oceano e cada onda era causada pelo próprio Hulk a pedir boleia. Não sei se o barco abanava ou se era eu e a certa altura confundi a minha má disposição com a de outras pessoas, como se mentalmente todos os indispostos da viagem, numa manobra de baixa estirpe, tivessem depositado em mim os seus acessos. Era como se todo o mundo estivesse numa viagem de foguetão e eu fosse o foguetão. Foi mais ou menos um bocadinho depois do meio da travessia que me passou pela cabeça que o melhor mesmo seria acabar com a coisa ali. Pensei em cabecear um extintor, mas não me pareceu definitivo o suficiente; vi cordas, mas o mais certo era ficar ainda mais agoniado por ver uma coisa que faz tanta curva defronte de mim; lembrei-me que trazia comigo uma lata de atum, mas era de muito mau tom manchar o navio com o meu sangue. Ainda por cima, de tão ácido que sou, corria o risco de tudo corroer e levar comigo mais umas dezenas de passageiros. Por isso, mesmo que me tenha recusado a engolir em seco, fixei-me e agarrei-me ao mastro. A decisão de me aguentar à bronca era a única que sobrava para manter algum orgulho.
Senti então outra mão na minha. Segurando com força, como que me fixou entre o mastro e eu mesmo. "É normal, mas já passa... Vai correr bem e com os pés no solo, sentes-te outro. Já vi homens que faziam dois de ti a viver isso e com vergonha." E reconheci a voz, era da capitã que, sentindo problemas na embarcação, veio meter mãos ao leme do meu desespero para me guiar a bom porto. O silêncio tomou conta de tudo e nem ouvi nada mais que não fosse o mar e o mundo. Com ritmo certo, a minha respiração tomou conta do corpo e o tempo passou numa corrida de proa. Quando o barco atracou, ainda revolvido por dentro, consegui pelo meu próprio pé voltar ao meu meio natural, o chão que está bem paradinho e não magoa ninguém. Vitória da Marinha Portuguesa. Mais tarde, vim a saber que está nos planos da Dinamarca abrir um túnel até Sandoy, passando por baixo do oceano que me transformou num Matutazo. Só estará pronto em 2021. Filhos da puta.
1 comentário:
Se achaste essa viagem má havias de ter ido ver as baleias no Sri Lanka em dia de tempestade. Essa dava quase para escrever um livro ☺☺
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