terça-feira, junho 19, 2018

Portalegre


A grande digressão do ensino que ocasionalmente vai garantindo que a minha conta bancária não se transforma numa cópia da vitrina de troféus do Benfica trouxe-me em Novembro a Portalegre. A voz grave e agressiva de uma senhora perguntou-me se aceitava deslocar-me ao Agrupamento de Escolas do Bonfim para partilhar o meu conhecimento a nordestinos do Alentejo e eu, que receberia principescamente por isso (ou não... se calhar não), lá fui em procissão até à capital do mais desertificado distrito de Portugal. Tanto amo os grandes espaços quando viajo que as Nornas escandinavas, três anciãs que em Asgard mexiam nos teares que desenham os destinos das pessoas, encaminham a lotaria do concurso nacional de professores para o meio de nenhures. Se Colos era a encarnação literal deste conceito - sempre paradoxal ao nível da Física porque se nenhures é nada não pode ter um meio - , Portalegre é a sua sofisticação cosmopolita.

A cidade atravessa-se a pé de uma ponta à outra numa meia hora e passear no seu centro histórico é uma experiência semelhante à descrita na canção "Sound of silence, de Simon and Garfunkel: rara gente se vê e a que aparece, amiudemente usa bengala.  Portalegre é a excepção à ideia que temos acerca de um Interior que luta para não ser esquecido, que faz dos seus problemas um caminho em direcção ao triunfo: é uma cidade acomodada ao marasmo e não se nota um esforço substancial para mudar esse paradigma. Basta passear por qualquer uma das vilas que a rodeia para perceber um outro dinamismo, uma outra vontade. Em Portalegre, há um contentamento pela banalidade e nesse aspecto, não há como não me sentir em casa, pois lembra-me bem a minha Coimbra natal. A diferença é óbvia:pela sua posição e tradição histórica, a cidade funciona em piloto automático, sem que as exigências mínimas de decência sejam beliscadas. Aqui, onde a Beira encontra a planície, há uma tempestade perfeita de inércia que se estende como um bolor.

No entanto, apesar das queixas, há vantagens óbvias, a principal das quais ter reduzido a metade a distância para o que me é familiar. A Escola Mouzinho da Silveira, onde exibi a minha falta de habilidade para ensinar durante um ano lectivo quase inteiro é incomparavelmente maior e mais frenética que qualquer coisa em Colos. Demorei quase um período inteiro a decorar o nome dos meus alunos, o que é compreensível quando se têm oitenta e tal caramelos ao nosso encargo. Quatro turmas, três do Secundário - e uma com duas alunas surdas parciais, um regresso - e uma do sétimo ano para não perder a forma. Lidar com turmas de Secundário é uma experiência com os seus tons de diferente. Existem, como sempre existirão, aquilo que chamo alunos com olhos de tubarão - aquele olhar preto sem pupilas, de quem não tem nadinha na cabeça e nos permite ver a parte de trás do crânio;  mas há pérolas, alguma luz nas sombras, cabeças que se erguem quando se fala de geo-política ou arte, quando se conta uma pequena história da História ou se associam conceitos simples que eles nunca sonharam. É o momento da faísca, quando de súbito alguém se apercebe que andar na escola não é totalmente inútil. Ainda que o Ensino não seja uma actividade que me preencha ou estimule por completo, ter a oportunidade de acordar algumas mentes, poucas que sejam, não é um mau serviço.

Não me vejo como um professor que traduz a matéria para a aula. Eu quero lançar barro à parede, abrir horizontes, ver o que cola, dar a conhecer coisas novas ainda que aparentemente nada tenham a ver com História. Todas as semanas, no Secundário, sugeri filmes e séries; preparei-lhes uma lista de Spotify actualizada todas as semanas; falei-lhes do mundo actual; desmontei mitos; usei coisas diferentes para acompanhar matérias, que vão desde Monty Python a Rage against the machine. A escola, para mim, devia ser isto, um local de descoberta. Claro que me obrigam a ser um pisteiro de conteúdos, há aulas que são simplesmente explicações e organização em esquemas daquilo que deve ser estudado. Constato que estes adolescentes estão formatados para isso,sabem que há testes e que haverá algures a obrigação de estudar. No entanto, haver quem me peça empréstimos de livros porque me viu na aula com eles, quem aceite ler Borges gostando, quem gosta de Elliot Smith e o passa na rádio da escola, todos me fazem crer que não é trabalho desperdiçado, que se semeia e se colhe alguma fruta, ainda que a maior parte do pomar permaneça estéril e inerte. Há sempre um outro garoto que nos enche de orgulho e se bem que nunca guardei amigos entre alunos, há sempre um punhado muito reduzido que me faz ter vontade de manter contacto, perceber que não se perdem, que cumprem o destino. É uma das razões pelas quais a minha vida de contratado me chateia tanto. Sinto sempre um dever moral em relação a alunos de qualidade.

Agora que o ano lectivo termina, admito-me que vou ter saudades de um ou outro magarefe. É inevitável. Fui chefe de escuteiros durante anos e aprendemos que as ligações humanas são importantes. Continuam a sê-lo, ainda que os números dominem o Ensino; mas nem tudo é redutível à Matemática: quando, no fim de um ano, há quem te abrace (e já tem nota garantida) e chore, não podem ser equações.

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