quinta-feira, setembro 20, 2018
Perugrinação 2: Limando arestas
Viajo onze horas, mas aterro seis depois de ter descolado. Um avião pode ser a coisa mais parecida com um sonho de olhos abertos, o momento em que as rodas tocam a pista é apenas uma passagem entre fases de sono e as malas nem são reais, apenas um recado que o cérebro te envia de que não deixaste a bagagem onde querias. Enquanto espero, ainda não aterrei, acho, ou pelo menos se o fiz, não me despenhei por completo. É estranho que em longas viagens de avião, não se chega bem de todo, vamo-nos reunindo às partes, uma peça de cada vez até que o nosso corpo agarra com os dentes, a realidade. O processo demora-me e quando saio do aeroporto de Lima, baptizado Jorge Chavez - famoso aviador peruano - são quase seis da manhã. Uma noite carregada em escuridão e peso, em nebulosidade e torpor, recebe-me, deixo Portugal em brasa e chego de casaco ao Peru. Nunca estive à distância de um oceano do que quer que seja. O meu grupo de viagem está reunido, vão falando, mas nem ligo. Sinceramente, ainda nem me sinto eu e esta cidade é-me estranha, mais estranha do que qualquer outro local onde já estive. Há um peso sobre mim nos ombros, carrega-me e não consigo entender de onde vem, o que é, porque fica. Nunca me aconteceu em viagem, normalmente fico mais leve. Não sei se as horas em falta se transformaram em cúmulos. Mas quando entro na carrinha que nos levará ao nosso hotel em Lima, sinto-me capaz de ocupar todos os lugares dos passageiros.
Mesmo por entre o brilho torrado das luzes amarelas, Lima define-se como um caos descontrolado, mas intuído. O aeroporto situa-se numa periferia da capital, Callao, que se liga ao centro através de uma longuíssima e agitada avenida. Apesar de o sol ainda se esconder para lá do mar, o movimento é revolvido, carros e carrinhas brilham sobre si, ultrapassam-se e arrependem-se, uma azáfama incrível de publicidade e brilho, sombras em todo o lado, polícias sinaleiros com fardas verdes. Dentro da carrinha, ouvem-se os acordes do estilo musical que dominará a viagem: a Cumbia. Define-se, grosso modo, por um comboio que leva dentro uma orquestra de sopros e circula em carris de bitola estreita, quase sempre em risco de descarrilar. Surgiu na Colômbia, mas neste vizinho a Sul, é quase tão popular quanto Marte nos sonhos eróticos de Elon Musk. A sensualidade quer fazer-se sentir, mas perante o silêncio que reina na viatura, é uma tentativa falhada. Toda a gente sente falta de sono e sei que também preciso quando, entre um delírio e outro, vejo um enorme cartaz anunciando alguém que se intitula "El tío de Bigode". Confirmando que não, a minha sanidade não me desertou algures entre os Açores e Vera Cruz, confirmo que o cartaz é real, tem o tamanho da fachada do Dolce Vita de Coimbra e destina-se a fazer política. Sim, política, "El tío de Bigode", candidato a algo, votem em mim, tenho uma linha de pelos entre o nariz e o lábio, é a minha brand. Tino de Rans parece Franklin Roosevelt em comparação. Os edifícios de Lima somem e na minha retina, sobra apenas a multidão de publicidade eleitoral que enche paredes, postes, solo. Decorrem no país eleições autárquicas para presidentes da câmara e da junta, governadores dos estados e representantes nos governos regionais. É uma boa ocasião para estudar a fauna local e a primeira conclusão é óbvia: incrível como num estado multi-cultural do Peru a esmagadora percentagem dos candidatos é branca, que são 15% da população geral. Não admira, é provavelmente o grupo mais endinheirado da capital, mas cruzar isto com a Cumbia, estilo musical de raízes africanas, torna tudo irónico. Outro pormenor que me fica é a noção de que algures no mundo, os problemas quotidianos são muito diferentes dos meus: já perto do mar, passamos por várias placas que indicam o caminho de fuga em caso de tsunami. É um evento com tanta probabilidade peruana que houve a necessidade de a organização municipal estudar o assunto e avisar os habitantes sobre os procedimentos. Se estudarem no mapa, o país fica no chamado Anel de Fogo do Pacífico, área de grande actividade sísmica e vulcânica. Do lado direito, o mar que só se escuta. Do esquerdo, um morro enorme, onde assentam prédios. Pergunto-me o que aconteceria se soassem os alarmes e o horizonte fosse engolido por um muro de água rugindo, galopando com pernas sem forma. Tento nem pensar na conclusão.
A carrinha abandona as avenidas. Atravessa ruas de subúrbios, casas muito semelhantes entre si, estamos nas zonas habitacionais da cidade, onde edifícios de tijolo colorido, um pouco decadentes, com andares cimeiros incompletos proporistadamente para escapar a impostos de habitação - espertos - dão lugar a casas modernas, com formatos pós-modernos. Quando regressamos à avenida e depois da rotunda mais caótica onde já andei (e que só não me assustou porque levo no bucho quase duas semanas de Quirguistão), paramos. Olho pela janela, leio "Villa Santa". Um hotel. Quando entramos, o lobby está em pantanas "Obras, dizem-nos" e enquanto tento comunicar em português com o funcionário que nos atende, percebo logo que ele me olha como quem tenta decifrar a Pedra de Roseta e nunca viu hieróglifos na vida. "Non entiendo", diz-me ele e em bom Português escrever-se-ia "Não entendo", quase igual, apenas com uma certa picuinhice chamada til que nós, luso povo, achámos por bem enfiar nas nossas palavras. Tão pouco nos separa do Castelhano e no entanto, o jovem observa-me aturdido, atropelado pela conjuntura e pela situação. Vivendo perto da fronteira como este ano, tive várias situações de comunicação ibérica e surpreendi-me pela quantidade de vezes em que as minhas mãos eram mais inteligíveis do que as minhas palavras. Afinal, nem é uma questão de sotaque, pois na América do Sul, que é quase toda uma segunda Espanha linguística, o problema mantém-se. Podia ser da minha destreza, mas falo um castelhano minimamente competente, como mais tarde comprovarei. É mesmo dos achaques idiomáticos. Mudo para o inglês e God Save the Queen. A questão fica tratada em segundos, quarto 404, siga. A cama recebe-me e nem me sinto cansado ou com sono. Simplesmente quero estar de outra forma que não de um lado para o outro. Ando a mover-me há demasiadas horas, preciso de estabilidade. Sete e meia da manhã. Em Portugal, é hora de almoço e por Internet, lembram-me disso. Confirmo que estou bem, o avião na caiu, Lima não é uma favela gigante controlada pelo Primeiro Comando. "Sinto saudades tuas" e o peso que trago alivia um bocadinho. Tenho até às onze horas para me reencontrar. O meu irmão não ajuda quando me diz que a minha quase cunhada acabou de entrar na maternidade, águas rebentadas. A minha futura sobrinha, que devia nascer uma semana depois de eu voltar, decidiu ter pressa de conhecer o mundo. A apreensão torna-se um segundo lençol. Enquanto preparo a mochila, penso em quem ainda não existe mas está prestes a ver o mundo, alguém que cinco minutos antes nem sequer era um fulgor entre os meus neurónios e agora domina-os como se fosse o corpo caloso que une os dois hemisférios do meu cérebro.
Não partilho com o meu colega de quarto, com ninguém. Subo ao último andar, onde está a sala do pequeno-almoço. É pequena e para além de um casal velhote, apenas tenho por companhia uma televisão onde o mito latino Luís Miguel canta os seus êxitos com ar sonhador. Uma caneca de leite, pão acabado de torrar, manteiga à discrição, como e contemplo Lima enquanto tomo o pequeno-almoço. Não lhe encontro fim, só prédios, cinzento, barulho. É o meu primeiro contacto com a América do Sul, menos exótico do que esperava, mas tão vibrante como a promessa que se formou na minha mente. Quando acabo, chegam alguns dos meus colegas de viagem. Conversa de ocasião e refugio-me num recanto colorido, inimigo de daltónicos, onde um porquinho da Índia passeia e as paredes se recheiam de pequenos apontamentos humorísticos. Entre eles, um sinal que ameaça todos os que urinem publicamente de uma subtracção significativa de dois aspectos importantes do aparelho reprodutor masculino. Simpáticos. Marcámos às onze horas num espaço perto da entrada. Recolho a mochila no quarto e desço, tão pesado quanto cheguei a Lima. A sensação não desapareceu. O elevador, enquanto desce, range metafisicamente, a corda sustendo esforçadamente o meu peso existencial. Parou. À saída, desvio-me de trabalhadores, mudando mármores, pedindo desculpa pelo pó e pelo barulho. Quando me livro de tudo isto, quase nem me apercebo que me sentei e olho, elevados, cartazes de filmes antigos. "Gone with the wind". "The godfather". E num canto, "Casablanca", um filme que sei tanto de cor que quase consigo lê-lo em Braille. Como Rick Blaine, estou preso no Peru. Duas semanas. Não conto que do passado qualquer uma das minhas Ilsas ali apareça, mas não se sabe. Afinal, mudei de hora, mudei de estação do ano, com o Inverno arrefecendo a luz e com tantos candidatos políticos, algum deles pode até alinhar com Satã numa plataforma política. Este é o país da Cumbia: segundo se dizia antes, dançar era obra do Diabo; e o Peru pode muito bem ser o seu salão de baile.
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