"Dame mi paz , por favor!!!!" e assim canta uma pungente voz masculina que enquanto se espalha pela carrinha, balançando o ritmo da cumbia, reforça aquele que é para mim o drama maior da existência: querermos sossego e não nos ser permitido gozá-lo. Aqui, no entanto, tal parece possível: saimos de Huacachina bem cedo e uma viagem de 150 quilómetros através do deserto rochoso e baço conduz-nos a Nazca. O sol estampa-se no solo e pelo caminho, atravessamos algumas pequenas aldeias, ajuntamentos de casa e gente entre faixas de alcatrão. A certa altura, numa paragem para esticar as pernas, a carrinha estaciona junto a um casebre de cimento solitário no meio de tudo isto. Ninguém para trás, nada para a frente. À porta, um garoto imberbe entretém-se a estampar carrinhos de brincar uns contra os outros. Faz vozes, inventa personagens, tem o maior recreio do mundo, útil quando se é o último riso infantil do deserto. Um oásis, afinal. Olhamo-nos e aceno-lhe, ele sorri e devolve, mostra-me um dos carros. Talvez seja um convite. Não posso aceitá-lo, temos de partir, há um horário em cumprimento constante; e afinal, dirigimo-nos ao mistério principal que me trouxe ao Peru.
As chamadas linhas de Nazca são um conjunto de complexos desenhos gravados no chão rochoso do deserto que lhes dá nome, delineados e construídos pela civilização homónima. Entre 500 AC e 500 DC, por razões que ainda hoje nos são desconhecidas, uma sociedade inteira girou em torno de dois objectivos: arranjar comida a partir de uma zona semi-desértica e espalhar pelo seu território rabiscos brancos que só podem ser vistos em altitude. Não é difícil entender como é que o fizeram: o complicado é explicá-lo. Isto não foi propriamente o passatemplo displicente de um solitário - tornou-se na meta recorrente de séculos. Se nos dirigirmos para Norte, ao longo do vale de Palpa até Paracas, encontramos mais conjuntos daquele que deve ser o mais épico jogo de Pictionary que a história humana registou. As figuras variam em tamanho e elaboração. Há simples linhas que terão provavelmente alguma intenção de mapeamento ou orientação astronómica, mas o que obviamente impressiona são as intrincadas representações de animais e figuras antropomórficas que se estendem ao longo dos ermos de Nazca, por cinquenta quilómetros quadrados. Encontramos macacos, baleias, colibris, flores, jaguares, peixes e outras representações que são recorrentes até em culturas andinas posteriores. A imagem de animais marinhos mistifica, pois o mar fica longe daqui, mas a partir do momento em que aceitamos que estas linhas são uma realidade, tudo o mais é bizarria acessória.
A primeira menção que lhes é feita por europeus data do século XVI, por um explorador espanhol, mas só começaram a ser referidas com seriedade e método na década de 20 do século passado, quando alguns aviadores amadores e expedições militares entraram em contacto com um oásis arqueológico no deserto. Desde 1940 que os estudiosos ocidentais, em colaboração com académicos peruanos, têm sido mais sérios. Mas apenas nos aproximámos mais de perceber como funcionava a civilização Nazca, não da sua intenção quando deixou no mundo estas enigmáticas marcas. Há uns anos, activistas zelosos do Greenpeace mostraram que estão bem a marimbar para o ambiente histórico quanto estragaram alguns dos desenhos numa manifestação; e este ano, um cmaionista pouco sóbrio guinou para o parque arquelógico onde danificou também algumas linhas. Em ambos os casos o governo peruano interveio a sério. Para eles, isto é de honra. Os vorazes teóricos de de antigos astronautas encontraram aqui uma inesgotável fonte de conspirações e intriga, mas o facto é que mesmo com instrumentos simples, um conjunto reduzido de pessoas conseguia desenhar qualquer um destes esboços na rocha. Os cépticos riem, mas o facto é que ninguém consegue explicar o motivo e esse é o grande busílis e a razão pela qual as linhas de Nazca não só hipnotizam na sua faíscanta intensidade curiosa, atraindo todos os anos milhares de turistas a esta inóspita região peruana, mas também incomodam quem acha que o mundo se explica facilmente e a História nada tem de misterioso e é uma narrativa linear e simples. Crentes iludidos passam atestados de estupidez à raça humana assentindo que algum tipo de engenharia complexa na nossa infância civilizacional só se pode dever a intervenções extraterrestres; empedernidos desmistificadores mataram no interior de si próprios a capacidade para se admirarem e sonharem perante o mistério e o desconhecido. Nazca recorda-me sempre a razão pela qual gosto de História - a eterna, permanente e inesgotável capacidade de escapar a quem quer prendê-la numa jaula de tédio, porque baseando-se em motivações humanas, será por natureza imprevisível e imensa nas suas explicações.
A melhor maneira de observar estes mistérios é a partir do céu, embora haja no parque arquelógico uma torre com treze metros de altura a partir da qual se vêem duas figuras e meia. A pouca distância das figuras, um aeródromo oferece a possibilidade de voos regulares diários sobre o deserto, meia hora de procura a partir do firmamento. O turista compra bilhete, espera sentadinho a sua vez e se assim o desejar, ainda lhe carimbam o passaporte - é uma viagem à séria. Chegamos e temos logo direito a
check-in. Dividimo-nos por duas passagens, por sermos nove bandidos e haver cinco lugares na avioneta que oferece o serviço. Muitos algarismos para a conta simples de assistirmos ao fantástico. Enquanto esperamos, não há muitas possibilidades de diversão. Na sala de espera do aeródromo, três televisões passam em
loop um documentário da National Geographic, narrado pelo inconfundível Peter Coyote, onde vários arqueólogos discorrem sobre quem eram os Nazca, o que faziam, de onde vieram e para onde foram. Sento-me durante um pouco a assistir, a verdade é que sei mais sobre as linhas do que sobre aqueles que as fizeram. A própria National Geographic não consegue escapar ao folclore místico dos alienígenas.
No exterior, várias bancas vendem souvenirs e
t-shirts remetentes a este local e o tema dos nossos irmãos de outros planetas recorre quase sempre. Embora seja mais céptico hoje do que o era na minha adolescência, é-me impossível estar na América do Sul sem sentir um pequeno tremor do meu interesse pelo fenómeno OVNI. Recordo-me sempre de um documentário chamado "Ovnis nos Andes", que embora se centrasse no Chile, cravou no meu cérebro este éter de arcano desconhecido que de mão dada faz dançar discos voadores e a austral América. A certa altura, um trio de radialistas chilenos, habitantes de uma pequena cidade mineira, descrevia como, durante uma emissão ao ar livre, viram com uma multidão luzes movendo-se sobre a grande cordilheira que forma a espinha dorsal deste continente. Isto enquanto falavam de OVNI na rádio. A história é tão incrível e contada tão expressiva e tão natural em simultâneo, um entusiasmo infantil e irrepreensível, que já a recriei em vários escritos de ficção. Anos mais tarde, tive a oportunidade de encontrar uma gravação online, no Youtube. Quando me recordo da mesma, a fornalha do apaixonado por mistérios, que em mim arde incandescente em várias intensidades, entra no ponto de fusão. Sei que é algo que as pessoas aprenderam a associar-me e o mesmo amigo que me encaminhou o documentário de que falei acima disse-me que nas questões do amor, o melhor era revelar o mais tardiamente possível este interesse que alguns de nós temos por algo que corre debaixo da realidade. Terá a sua razão, pois é preciso é uma loucura maior até do que o próprio amor, esta de procurar o que todos consideram insanidade ou ridículo. Felizmente, estou numa parte do mundo onde o ridículo é tão parte do tecido da realidade quanto o banal.
O primeiro grupo chega da viagem. Se todos gostaram, quase ninguém demonstra. Há um ar tumular na apresentação geral, um certo agouro que dá a entender que não voaram numa avioneta, mas sim em corvos. Comenta-se que a viagem é muito agitada e os aparelhos pouco estáveis. É nesta altura que o fascínio me cai sobre os olhos e me recordo de um pormenor importantíssimo: a relação muito ténue que o meu estômago mantém com movimentos bruscos. Pode-se dizer que é tão antagónica quanto a que Sérgio Conceição estabelece com o yoga ou a que Rui Vitória possui com qualquer tipo de auto-crítica. No entanto, é tarde demais para voltar atrás: 80 dólares estão pagos e para dizer a verdade, a ideia de ver aquela obsessão que alimentei desde criança enraizou-se tanto na minha cabeça que estou por tudo. Devia lembrar-me que os momentos em que estou por tudo são invariavelmente seguidos de desastres dignos do sismo de 1755, mas o meu voo está prestes a partir e manco de uma lente, tento concentrar-me em como usar uma tele-objectiva para melhor trazer a recordação visual das linhas. Somos conduzidos ao
check-in. Eu, a Sofia, o Jorge, a Cina e um peruano jovial e sorridente. Apresenta-se, é o Flores, traz consigo equipamento fotográfico suficiente para cobrir as noivas de Santo António. Saímos do aeródromo, o sol brilha tanto quando caminhamos pela pista. Ao lado da nossa avioneta, os pilotos saúdam-nos. Perguntam-nos se queremos tirar fotos ali, eu escolho não fazê-lo. Quanto mais olho para as asas e para a fuselagem, finas e estou certo que feitas de papel cavalinho, mais reconsidero algumas das minhas opções de vida. A viagem de barco no ano anterior entre duas ilhas das Faroe retine dentro de mim como o sino de alerta do Titanic, mas não há volta a dar. Meia hora no ar está garantida. Pelo meu peso, apontam-me para que me sente à frente. Pelo menos, não estou nos lugares mais problemáticos. Ao meu lado, o Flores ainda não desligou a voltagem dental. Parece esperar algum tipo de serviço de bordo mais exótico de que não fomos avisados.
A avioneta levanta voo normalmente. O piloto, Ernesto, e o co-piloto, Gustavo, apresentam-se com um discurso perfeitamente ensaiado e batido. Já devem ter dito isto tantas vezes que a língua apresenta calos de expressão. Enquanto o avião ganha altitude, referem as linhas, o seu mistério, a possibilidade de extraterrestres serem os seus autores. No Peru, história e pseudo-história cruzam-se com a mesma facilidade com que a avioneta abana à mínima rajada de vento. No entanto, sinto-me bem, sólido. Tomo a minha precaução, agarrando com força elefantina o meu cinto de segurança, que se fosse feito de laranjas teria enchido o
cockpit de sumo, tal a força com que o aperto. Como um metrónomo regular, o co-piloto, que faz também as vezes de guia, avisa-nos: a primeira figura, "La baleña" surgirá daí a 42 segundos. Que precisão, penso, que mestre do ar. Não contei pelo relógio para saber se era verdade. Observando o deserto pela janela, já registei algumas linhas rectas sem forma, mas de facto, vai surgindo na encosta do pequeno monte um aglomerado de traços que parecem ganhar forma. Ligo a máquina, preparo-me. "La baleña", anuncia o cicerone, e o seu colega de manche na mão dá uma súbita guinada e a avioneta coloca-se em posição perpendicular em relação ao solo. A redonda janela, que antes estava ao meu lado, aparece por baixo e as minhas costelas arrastam todo o meu sistema digestivo para o conforto do meu baço.Há em mim uma tentativa de sarcasmo, mas corro o risco de cuspir bílis literal. De facto, lá no solo nada uma baleia, com um olho enorme, chapinhando no mar de areia; tentativamente, tiro uma foto, mas concluo que tenho uma escolha simples: ou fotografo ou vejo as figuras. Combinar ambas pode ser um desastre de proporções Bolsonarianas. No entanto, não ficamos por aqui - a avionta regressa à sua posição normal e efectua a mesma manobra para o lado oposto. Novamente a direito, novamente com os pulmões no meu calcanhar e a minha vesícula biliar perdida algures no meu pescoço.
É neste momento que a minha capacidade de possuir uma excelente memória se volta contra mim. Algures na sala de espera, vi um mapa desta zona. O percurso de avioneta inclui perto de vinte figuras. Tal significa que estes dois moços repetirão as guinadas da morte vezes suficientes para que queira imitar os pássaros, com a diferença de ser muito menos aerodinâmico. Não há qualquer tipo de hipótese na minha guerra: está perdida. O plano de emergência é accionado: duas mãos segurando o cinto de segurança, pernas bem juntas uma à outra, olhos fechados e respiração larga e controlada. Num bolso do banco à minha frente, vejo um saco de papel. Pelo menos, estes carniceiros entendem bem os efeitos da sua barbárie. Num acesso insano, dou por mim a rezar a Viracocha e amaldiçoando todos os conquistadores espanhóis por não terem dizimiado a totalidade dos antepassados de quem guia os destinos da avioneta. O que se segue é hediondo e devia surgir lado a lado com o genocídio do Ruanda como um dos maiores crimes perpetrados contra a raça humana. A cada anúncio, a sensação de suores frios que acompanha os condenados à morte antes de a guilhotina descer. "A la derecha, lo Mono; a la ezquierda, lo Mono. Perfecto". O discurso é sempre o mesmo,maquinal, mudam os nomes: la Araña; el Colibri; lo Pájaro Gigante; las Árboles; é toda uma constelação de monstros que se reuniram numa missão para, quais Vingadores do meu estômago, me deixarem prostrado. Não me rendo, ainda assim. A cada anúncio de nova figura, permito-me abrir os olhos durante uns dez, quinze segundos. Posso garantir que vi todas as figuras, todinhas; e mesmo no meio de tudo isto, consigo ficar fascinado com a sua nitidez, o seu poderoso e hipnótico magnetismo. A ideia de passear num museu sem paredes e que é visto melhor quando estamos fora do nosso elementos, linhas brancas que rasgam o nosso chão apenas para nos fugirem porque melhor se explicam quando não estamos onde podemos ser mais nós. É uma poesia que só me ocorre mais tarde, mas sentia-a naqueles momentos de terror puro. Acreditem que é preciso uma força desmesurada para contrabalançar os meus momentos de agrura. Se estas imagens o conseguem, estou quase tentado a professar que uma inteligência superior as colocou de facto ali.
Quando anuciam que vamos regressar e aterraremos daí a dez minutos, sou capaz de jurar que o nome da última figura era "Lo Thanos", pois sinto toda a minha resistência a ficar em pó. Passei o pior e resta-me apenas uma linha recta em direcção ao aeródromo; no entanto, uma pulsão quase irresistível leva-me a puxar do saco de papel e oferecer-me um golpe de misericórdia. Talvez porque foi educado a criar as condições perfeitas para envergonhar europeus devido ao que fizemos ao Império Inca, o piloto faz saltar o avião e a minha boca falha o alvo quase por completo, dando às minhas calças um odor muito mais poderoso do que lixívia Chanel. Ao meu lado, Flores, continua a sorrir. Com o telemóvel, filma-se em toda a experiência, estende-me o polegar como que dizendo que está tudo bem. Desconhece que em Ceira, um polegar tão descarado facilmente se interpreta como um convite aberto a que lhe parta a cara com um extintor que está mesmo debaixo do meu banco. A tentação, e a boa educação, quase me obrigam e imagino o sorriso deste Flores em tons de rosa sangue. Resisto, até porque estou tão combalido que creio que acabaria por me agredir ao invés. O vómito sossega-me e os restantes minutos de voo são passados quase morto, sem nada sentir. Damos mais uma voltinha para observar uns poços Nazca e a avioneta desce. As rodas tocam no solo e o aparelho imobiliza-se. Esperam que tenhamos tido uma boa viagem e quero lançar sobre os pilotos o resultado mais óbvio da sua crueldade. Novamente, travo-me. Desejo que o Flores descubra que um deles lhe anda a comer a namorada e que haja um combate de navalhada ali na pista. Não acontece. De facto, que país este, que falta de classe.
Os meus companheiros de viagem procuram saber como estou e algum deve ter julgado que expeli sangue, pela palidez das minhas feições. Confessam que também eles sofreram com a viagem, mas ninguém foi tão abertamente honesto quanto eu. Contiveram-se. É isso que separa os indivíduos que sabem viver em sociedade dos magarefes que fazem do mundo uma choldra gregoriana. Demoro a recuperar. Quando vamos embora, aportamos numa pequena gelataria onde se comem uns crepes e tento convencer-me a devorar um. Neste momento, eu sou uma figura de Nazca: "El derreado". Traçam-me contornos irregulares, gelatinosos, mortos. Sou caracterizado pelo facto de possuir visibilidade até a baixa altitude, sendo inconfundível pela minha cor alva e disposição cadavérica. Podem encontrar-me estendido num sofá, num restaurante de Nazca. Não me parece que tão cedo me tirem de lá, nem qualquer camionista, nem activista de Green Peace; mas não pensem sequer em vê-lo de um avião. É muito provável que vos vomite um míssil terra-ar movido a um ódio por fotógrafos peruanos. E depois de terem lido este relato, pouco há-de sobrar de mistério acerca dos meus desígnios.