segunda-feira, novembro 26, 2018

Perugrinação 10: Alucinação


Nunca quis ser cobaia científica. Não é uma carreira pela qual tenha optado, em parte por falta de vocação. Também digo o mesmo em relação à docência, mas aí há quem diga que tenho jeito. na verdade, gosto de me ouvir falar. Por não me sujeitar a experiências, jamais tive o contacto directo com os efeitos nefastos que uma viagem de autocarro de 24 horas pode ter no frágil cérebro humano, dos riscos inerentes à meninge esponjosa que se agarrou às paredes do crânio. Quer dizer, agora posso riscar isso da minha bucket list...  o que faria caso lá estivesse. Apenas quando cheguei ao Peru soube que algures no final da primeira semana me esperava um trajecto praticamente sem parança desde Nazca até Cusco, aprisionado numa camioneta encarnada. Sei que sou do Benfica, mas não vivo assim tão enredado nas cores do clube. Não sabia o que pensar. Confiei que com livros, uns jogos de telemóvel e a minha simples predisposição para soltar a mente - vamos riscar esta, no entanto... a minha mente amiúde é tão inimiga que de mim que poderia, eventualmente, partir um vidro e saltar para a estrada sem qualquer apego pela minha integridade física - me iria safar, distrair ou simplesmente esquecer que o Tempo é um conceito Na realidade, 24 horas são números. Algo psicológico. Nem existe, na prática. É deixar seguir; e vendo o mapa, até se percebe a estafa: entre as duas cidades peruanas, ergue-se a inabalável muralha dos Andes. Qualquer estrada que atravesse as montanhas pode ser um preliminar orgásmico se o vosso fetiche for a morte enredada em metal esmagado de colisão. Não foi para isso que paguei uma batelada do dinheiro. Para além disso, seria uma desonra para mim ter sobrevivido à Ásia Central apenas para morrer aqui. A Ásia sempre traria o martírio e a glória mediática da zona perigosa, da tensão política. Aqui, sobrava-me a monótona motivação das curvas de estrada, do alcatrão gelado feito ringue de patinagem. Se é para isso, prefiro contar para a estatística das estradas portuguesas.

Confesso que tenho memórias difusas da viagem. Se me mostrarem imagens de satélite, sei indicar-vos por onde passei, talvez. Nem sei. Talvez pela falta de oxigénio na cabine do autocarro, do pouco sono ou simplesmente por ter entrado neste tormento depois da experiência gregoriana da avioneta, tive o cuidado de, ao longo da viagem, ter sempre comigo um caderninho. O melhor que posso fazer é uma experiência de fluxo de consciência. Vou transcrever-vos, integralmente, tudo aquilo que anotei, ainda que algumas coisas possam ser inventadas ou sido apenas alucinações bem vívidas. Embora estas crónicas vivam de anotações - tenho boa memória, mas não iria longe como gravador humano - é a primeira vez que a salganhada que são os meus jogos mentais e os pormenores que me ficam no rio das recordações atracam directamente nas vossas margens. Não é a mais elegante experiência do mundo, e o facto de a solidão dominar a minha vida prova como um contacto demasiaro directo comigo não ganharia o voto popular na Eurovisão. Mas é a viagem como ela foi.

"Dedicatórias fúnebras em carros peruanos: para a avó para a prima, para a mãe, para a Juanita e o Pedro. Vidros traseiros tapados a negros com inscrições macabras a branco. No Peru, as crianças usam todas uniformes escolares e vão de mão dada para a escola sem vigilância adulta como se tivessem saído de uma qualquer Arca de Nóe escondida dos nossos olhos. Arequipa na base dos Andes. É quase tão desinteressante quanto ficar a ver o gelo derreter no congelador. É grande, mas não é grande merda. Camioneta pára, pequeno-almoço à beira da estrada. Há umas banquinhas, compro pão, se calhar tem bichos e não sei. Já comi pior e não morri. Nem é mau o pão e é do dia, não ganhou ainda a consistência para servir de arma de mão para palestinianos. Oito da manhã e vê-se o sol. Arequipa está a mais de dois mil metros de altitude. Saímos do deserto, estamos na montanha. Ainda não sinto nada, hei-de sentir se continuarmos a subir. O autocarro afasta-se e vejo o pináculo de uma torre branca ao longe. Deve ser igreja. Consegui dormir umas horas durante a viagem e não sei como. Entretanto, põe a meio um filme com o Nicolas Cage. Acho que é o Gone in 60 seconds. Posso estar enganado. Ando tão grogue que já nem consigo reconhecer filme do Nicolas Cage. Deve ser a altitude.

Paragem em Lagunillas. É um pequeno lago onde o sol bate e parece azul. Não tenho a certeza, a luz é demasiado intensa. Ponho os pés fora do autocarro e de repente, ganho três cabeças, a julgar pelo afluxo sanguíneo ao meu topo. O céu tem um martelo e espetou-me tal marretada que só não me encolho como um acordeão porque Peru não é o país de Piazolla. Uma placa indica os 4400 metros de altitude. Só de ler, dói-me tudo, da ponta do fémur ao interior do baço. A vista é linda, mas o meu sangue ganhou a consistência de cimento termal. Caminho com cuidado, vejo velhinhas vendendo têxteis como quem está na feira. Está claro que o deslocado aqui sou eu, uma espécie de Pingu andando quase de lado, no seu esforço a lidar com esta alteração do paradigma geográfico. Com esforço, consigo regressar ao interior da camioneta, onde alapar o meu esplendoroso rabinho no assento faz desaparecer aquela gostosa sensação de ser estátua de pedra grogue. Passo pelo guia, o Alex. Suspira alarvemente e tenta sorrir, embora parte de mim ache que na verdade este moço tema que o sorriso fique cravado na face sem se mover até que regressemos ao nível do mar. Eu já estive aos 3500 metros. Estou certo de que não sofrerei com isto.


Comício político no meio de uma rotunda em Imata. Duas carrinhas de caixa aberta paradas, um homem discursa a uma multidão que tem acompanhado a marcha dos veículos. Tenho a sensação de ver lamas dançando a Macarena e ainda um cortejo de vicunhas amestradas pintadas por Frida Kahlo naquela fase em que tentou imitar as Pinturas Negras de Goya. Mas pode ser só a ausência súbita de oxigénio. As pessoas parecem contentes, acham que o homem lhes resolverá os problemas. Não lhe dou sete meses até fugir para o Paraguai casado com um hamster chamado Nestor, que conhece pessoalmente Avelino Ferreira Torres.   

Numa colina imensa, e escrito a alvas garrafais letras de pedra, leio "Cristo Viene". Não sei se é publicidade a uma banda de death metal andina, mas parece-me estranho. Não vejo Cristo, provavelmente foi curar o mal da altitude. Ouço Elliot Smith no telemóvel. Juro que o vejo do outro lado do vidro, acenando com o anúncio em fundo. Canta "Between the bars" e sem ninguém ao meu lado no assento, seguro a mão de alguém. É mais palpável que a borracha da minha alma e tão concreta quanto a mesma.

O Tiago e a Vanessa falam português, são portugueses. Andam a passear no Peru e andaram já pelos Andes. Falam maravilhas, mas também histórias de horror com a altitude. Criticam a massificação do turismo do Peru, enquanto ela dá nota a um restaurante no Tripadvisor.

O Peru odeia-se bem quando a decisão se colocar lombas de estrada que não destoariam no Muro de Berlim se mostra corriqueira. É como se tivessem pegado em manilhas de canalização, cortado ao meio e achassem "Ná, isto não vai atrapalhar o trânsito." Quando uma aparece, a camioneta trava, quase estática e balança os passageiros ao ritmo da elevação. Tudo o que o meu estômago não precisava. Temo o pior.

Mais uma voltinha, mais um saco com vómito. Desta vez não me caiu na roupa. O passageiro à minha frente dá um salto quando me vê. Acho que o ouvi chamar-me "La llorona". 

Um buffet em algures. Estou tão revirado que já nem reparo no nome das terras. Convencem-me a comer algo, embora sinta que o meu estômago foi passado a napalm. Na mesa em que me sento, vejo um unicórnio, Napoleão Bonaparte com uma coroa de frutas na cabeça, uma versão do Terminator interpretada pela Carmen Miranda e um adepto do FCP com quem se pode conversar de bolas sem que ele se torne imediatamente insuportável. Acho que mais do que comida, devia procurar oxigénio. Tanto que agarro uma colher, penso, e afinal tenho na mão uma palheta. Um bocadinho de sopa no prato. Ainda consigo sorvê-lo todo. O napalm queimou tudo, a sopa nem sequer serve de chuva. Não têm de me carregar em ombros de regresso ao autocarro, mas só porque eu nem tenho ombros.

Escuridão, montanhas, estradas em obras, muita poeira. Ou então, são os meus olhos em electricidade estática.

Chegada. A dúvida é se consigo sequer pôr um pé à frente do outro. Ergo-me e consigo. Mas não vencerei a maratona."

A partir daqui, os rabiscos acabam. Mas o que me recordo é suficiente. O grupo juntou-se em dois táxis, malas arrumadas e atravessámos a periferia de Cusco rumo ao centro histórico onde fica o hotel. Trânsito confuso em estradas largas dá lugar a revienga totalmente assassinas para o meu estado comatoso já dentro da cidade em ruas estreitas. Depois de um confronto entre três táxis que chegam em simultâneo a um pequeno largo e decidem na hora a ordem de prioridade, o destino não está longe. Já não me vejo ao espelho há uns dias, mas enquanto me carrego, juntamente com as minhas mochilas, pouso tudo com abandono e estardalhaço-me no sofá. Presumo que o meu aspecto deva ser assustador, pois rapidamente se dispõem a preparar um chá de coca, sem toque escobariano. Beberrico um pouco e não fico muito melhor. A coisa vai indo ao sítio. Não sei se é da altitude ou simplesmente de dois dias seguidos a revirar as entranhas, desconfio desta última. Já estive em altitude, nunca fiquei assim. No entanto, por precaução, oferecem-me cinco minutos de oxigénio em botija, É um equipamento standard nesta cidade a 3400 metros de altitude. Disseram-me que veria no Peru paisafens de tirar a respiração. Não se referiam a isto, certamente.





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