terça-feira, fevereiro 19, 2019
Perugrinação 14: A velha montanha - segunda parte
Machu Picchu significa " a velha montanha" e diz respeito, obviamente, ao descomunal calhamaço de pedra que faz parte da sua iconografia. Estabelecida mesmo no meio dos Andes, não é tão antiga quanto a maior parte dos Europeus pensa, acostumados a associar velhas relíquias arqueológicas de outros continentes a tempos anteriores a Cristo. A Universidade de Coimbra, por exemplo, foi fundada quase dois séculos antes que este povoado fosse construído, algures em meados do século XV. Ao que parece, o seu propósito inicial era o de residência real para Pachacutec, imperador inca, o líder temporário de uma civilização que no espaço de quatro séculos armou o maior império da época pré-colombiana, que abarcava parte ou a totalidade de seis países actuais da América do Sul, unificados pela língua Quechua, a liderança Inca e o culto solar. Portanto, Machu Picchu apareceu bem tarde na cronologia inca, mas pela sua mística, por ter sido descoberta praticamente intocada já no século XX e também pelo cenário que traduzido em fotografia seduz de imediato, tornou-se sinónimo de uma civilização de cidades maiores, construções mais complexas e uma capital declarada e central do império em Cusco. O que é espantoso em tudo isto é que os Incas não são, de todo, uma cultura civilizacional normal. Aliás, procurar semelhanças entre esta e outras civilizações europeias ou mesmo asiáticas é fútil. Ao contrário destas, os Incas não possuíam veículos movidos a rodas, ainda que conhecessem o seu princípio de funcionamento; desconheciam animais de carga poderosos como cavalos ou bois; não criaram um sistema de escrita que possamos reconhecer como tal; e também não usavam ferro ou aço de qualquer maneira. No entanto, como expliquei, governaram o mais extenso império das Américas.
Percorrer a cidade ajuda a entender como tal foi possível, no entanto, a quem repare nos pormenores. Depois de vermos o nascer do sol, cada um ficou livre durante umas horas para circular livremente. Se estivermos no centro de Machu Picchu, é inevitável repararmos, situado num monte sobranceiro, num conjunto de três arcadas que nos vigiam. São as Portas do Sol, Inti Punku em Quechua. É o meu objectivo. Para lá chegarmos, é necessário fazer-nos ao caminho, rochoso mas seguro, que sobre gradualmente pela montanha. Não sou o único a fazê-lo, enquanto caminho vejo centenas de pessoas seguirem na mesma direcção, idades variadas, algumas com ajuda de batons. Pelo meio existem ruínas de antigas construções, pedras talvez sagradas, o mistério de como foram feitas sem o auxílio de metal. De vez em quando olho para trás, para ver a cidade lá em baixo cada vez mais longe e está geometricamente feita e organizada, rectângulos agrupados e delineados, casas que um dia foram algo mais do que buracos que vejo agora ao longe. Também começo a entender o quão difícil há-de ter sido encaixar tudo isto nas encostas das montanhas. Para mais, a zona peruana, como referi noutra crónica, é muito dada a achaques sísmicos. A engenharia e arquitectura da cidade fez-se para evitar terramotos, cheias, deslizamentos de terras e chuvadas repentinas. Um pouco como os nossos Açores e Madeira, a Natureza deve ter deixado letreiros a ameaçar com mil e uma catástrofes caso escolhessemos tornar os locais habitáveis. Mas fez-se. O mesmo caminho que percorro faz parte do extenso conjunto de estradas que liga todo o Império Inca. Daqui a Cusco, por exemplo, são cinco dias a pé; e foram encontrados achados arquelógicos neste local que mostram um comércio intenso com povoados do lago Titicaca, que fica a centenas de quilómetros no sul do país. Parte destas estradas ainda hoje existem e ligam aldeias e pequenas vilas de maneira pedestre. Quanto mais penso nos Incas, mais me lembro dos Romanos e de como certas inspirações estão apenas num éter qualquer, que culturas diferentes acabam por absorver em momentos diferentes da História.
Chegar às Portas do Sol não é cansativo, num passo decidido, mas moderado e com tempo para muitas fotografias, alcanço o topo e tenho uma vista privilegiada para o local de onde parti. A cidade é-me pequena à vista agora, a montanha que lhe faz sombra ainda mais dominadora, presente. Em redor, os picos andinos cobertos de vegetação relevam o clima tropical que afecta esta zona durante todo o ano. Olhando para o meu lado esquerdo, consigo ver o seguimento do trilho que percorri, perdendo-se entre a vegetação, mas com acesso proibido ao público geral. Por aqui se fazia a entrada para a Machu Picchu, imagino guardas imperiais controlando o movimento dos viajantes e dos comerciantes. Pela sua localização remota, creio que a admissão ao local seria muito selectiva, entregue apenas a alguns escolhidos. Aqui só encontramos ruínas, mas aproveito o meu esforço para desfrutar da vista. Sento-me num socalco relvado e pousando a mochila, permaneço uns momentos fora de mim. Vejo em meu redor pessoas a fazer palhaçadas, outras que sentadas no chão cerram os olhos em meditação e mais uns apenas cansados, provavelmente ainda não habituados à altitude de quase 2800 metros em que se encontram. Eu apenas penso. Quero sentir, mas só consigo pensar. Não vou partilhar o que me baila convosco, guardo-o; mas várias coisas me sobressaltam, coisas que o éter do local, ou então uma diminuição drástica da quantidade de oxigénio no ambiente, apenas tornam maiores, mais ofegantes e presentes. Ser eu não é uma má experiência todo o tempo, mas alturas há em que me pesa por demais, ou se calhar ando a carregar tanta coisa inútil no meu saco, não aprendendo a largar, que esse mesmo saco se colou a mim e já faz parte. Ou então estou a dar uma simples desculpa para o meu aumento de peso. Uma pessoa com quem me envolvi uma vez ensinou-me alguns exercícios de respiração. "Experimenta, quando achares que o mundo é só aquilo que te pesa e assusta" e desde então que os uso a espaços. Ela comentou comigo que adorava estar aqui um dia e uma maneira de trazê-la talvez seja aproveitar essa dica que me deu. Estou assim durante uns minutos e pareço um daqueles maluquinhos New Age que tanto gozo. Mas resulta. A mente torna-se mais clara e vejo tudo como é: o sol a bater-me na face e estou vivo para poder presenciar toda esta maravilha e voltar para contar o que vi com a imperfeição das palavras.
O caminho de regresso faz-se mais devagar, atenção aos pormenores e também às pessoas, nas faces, a procura de algum tipo de iluminação em quem aqui a buscou. Nada reparo. Quando chego à casa do guarda, ponto de partida de todas as visitas turísticas a Machu Picchu, reparo nalguns magotes de gente. Nuns casos, são claramente grupos de vivenciadores New Age, juntam-se em círculo e de braços abertos para o sol, alguém no meio veste de forma folclórica e procura dar alguma orientação e rumo a quem tão sequiosamente o observa. São os turistas da procura, aqueles que vão fugindo do seu mundo na crença de que se algo melhor os espera, está bem longe, inalcançável e assim é que está bem. O que interessa é a busca, a vida é movimento e indagação, a caçada da verdade, seja ela qual for, por mais largueirona e manienta que se revele. É a de cada um, mas acima de tudo é a de alguém que no-la dará. Outros grupos são de simples turistas que segurando folhetos e livros, Lonely Planet talvez, exigem conhecimento e interpretação por parte de um guia. Topam-se bem, estes guias. São homens, quase sempre, corpo curtido pelo sol e esquálido pelas caminhadas constantes. Não é o parque quem os fornece. Se queremos um, contratamo-lo directamente.Invariavelmente, são peruanos e para eles os Incas não são um simples povo desaparecido no passado: fazem parte do que os agarra à terra. A nós, calha-nos o Joel. Não tem mais de 40 anos, não lhe pergunto a idade e por cortesia, não lhe revelo que sim, estudei História. O Pedro, nosso líder de viagem, dá-me uma cotovelada e comenta "Sobre isto não lemos nós na escola em Portugal", mas o que o Pedro não sabe é que tenho um graúdo interesse pela América Pré-Colombiana praticamente desde que comecei a pedir enciclopédias emprestadas aos vizinhos. Que sei perfeitamente distinguir Quetzalcoatl de Viracocha, os Olmecas dos Toltecas e Chichen Itza de Technotichlan. É verdade, que o foco da História escolar é a Europa, esse centro do mundo que não é, umbiguismo de apenas quem usa palas no olhos; mas felizmente, a escola nunca foi o meu limite de conhecimento e curiosidade. Não me dei ao trabalho de pesquisar sobre este local a fundo e estou com genuína curiosidade em ouvir o que o Joel nos vai contar.
Há uma paixão nas palavras do Joel. Avançamos por entre as ruínas da antiga cidade e em pontos específicos, ele explica os segredos dos locais, ao variedade agrícola, o génio de engenharia, os sistemas de irrigação, os mistérios do culto religioso, de como o mundo se esquece do Império Inca, tão grande e tão organizado, como os Incas foram os primeiros a pensar em tanta coisa, de como as suas construções resistiram até hoje e como a sua capacidade organizacional não tem par no mundo. À minha volta, os meus colegas deliciam-se maravilhados; eu, simplesmente, sorrio e penso nos Romanos. Sei que a História não é uma competição de pilas entre povos. O orgulho nacional nisso a transforma e o Joel, de um Peru que há duzentos anos estava ainda sob o domínio espanhol e há menos de vinte e cinco permanecia ainda satélite na órbita da importância do mundo, mata uma fome de protagonismo não pessoal, mas da pátria. Não está ali para nos deliciar com arqueologia, mas simplesmente marcar posição e a imagem nas nossas mentes de que eles, os peruanos, são mesmo bons e importantes. Respeito isso, claro; e um olhar minimamente atento obriga ao espanto, principalmente pelo uso de técnicas de construção que não exigem cimento ou argamassa: as pedras pousam umas nas outras e é a pressão que as mantém rijas e hirtas. O problema arqueológico que isto coloca, e o Joel faz questão de referir, é que as casas e edifícios mais modernos são, precisamente, os mais frágeis aqui em Machu Picchu. Desde o Templo do Sol até à Intihuatana, a pedra de múltiplas pontas, quase tudo está alinhado especificamente na direcção dos grandes acontecimentos astronómicos, solstícios e equinócios, a relação com o Sol sendo o centro da vida Inca. A cidade está dividida por zonas sociais, o povo e a realeza vivendo em locais com separação bem delineada. Machu Picchu é uma cidade que desce por socalcos. Um pouco como a paisagem do Douro vinhateiro, embriaga da mesma forma.
Já na parte final da visita, o Joel explica particularidades da sociedade Inca. De como homem e mulher viviam juntos antes de casar, só para ver se a coisa resultava. De como o divórcio era permitido e as relações gay também, desde que o casal não fizesse muito alarido disso. A mulher podia propôr divórcio e trabalhava, concluindo eu que o antigo Peru era mais avançado socialmente de que a moderna Arábia Saudita. Por falar nas arábias petrolíferas, passa a meu lado um pequeno grupo de norte-americanos. Fazem barulho, como era expectável e como que cumprindo um cliché, fazem alarde público da sua ignorância em relação a tudo aquilo que não seja "America, fuck yeah!". Uma moçoila bem jovem, que tomou aparentemente a resolução de se bronzear de corpo inteiro aqui nos Andes, pergunta a um rotundo barbudo se não era esta uma das maravilhas do Mundo Antigo. E ele diz que sim, que é; uma terceira figura, porte atlético e louro de capilares, contrapõe e engelha o nariz. Isto não é assim tão bonito, não pode ser; mas o primeiro matulão garante, viu isso num programa, até houve umas eleições. Que até o Cristo do Brasil também era do mundo antigo. Quem me conhece há mais tempo, sabe que tenho uma baixíssima tolerância à estupidez, que vai diminuindo na proporção da estima que tenho pela pessoa. Não conheço estes burgessos, logo conseguem adivinhar o que se segue. Intrometo-me na conversa, de mansinho. Correcção: esta não é uma maravilha do mundo antigo. É impossível, porque elas localizavam-se todas na bacia do Mediterrâneo. Silêncio momentâneo. O génio barbudo insiste no que viu e eu explico, mais calmamente do que já fiz a alguns alunos que me passaram pelas salas, que isso foi algo recente, feito por questões turísticas para renovar o interesse no conceito. "Sabes muita coisa sobre isto, tu; mas por acaso estudaste História?" O tom gozão acalma quando respondo que sim. Cinco anos. E sou professor. Este foi o momento em que ele se apercebeu de que há poucas coisas mais eficazes do que um estranho desagradável que percebe daquilo que fala. Retirei-me com "Sabes, benefícios de uma educação europeia" e deixei-o a digerir o quanto o meu mundo é Velho, mas o antiquado era ele.
A visita termina no local onde começámos, o pórtico de entrada. Vão chegando camionetas de turistas. Uma atrás da outra. Apesar das restrições colocadas pela UNESCO e pelo parque, os limites são claramente ultrapassados: o Joel contou-nos que mais de seis mil pessoas visitam este local diariamente. Segundo as regras oficiais, apenas duas mil e quinhentas podem fazê-lo. É uma mina, Machu Picchu. Séculos depois de ser um dos últimos refúgios de um povo que viria a ser explorado pelos Espanhóis, a herança inca é hoje abusada aos pés do mesmo deus que seduziu os Europeus. Também reluz, mas não é o Sol. "Foi giro isto", diz-me alguém ao meu lado, e não usaria exactamente esse adjectivo. Gostava de ter sido largado à solta por entre as ruínas, sem constrangimentos ou tempo contado, mas o bilhete era válido por apenas uma manhã e à medida que viajo, percebo que o Tempo e o Espaço só casam bem na Física de Einstein, não nos desejos de quem se passei pelo mundo. Não vim ao Peru por estes calhaus, mas ficava cá mais uns tempos à conta deles. Para lá das imagens de Instagram ou do falso impulso epifânico que tantos aqui pretendem encontrar, há um genuíno encanto inusitado e intrigante sobre a Antiguidade nestas montanhas. Quando estou fechado numa sala de aula, a explicar História a gandulos, sinto-me sempre preso nos limites do que me corre na cabeça, no que quero mostrar, nesta paixão pelo percurso da espécie em sociedade e desiludo-me pois as paredes não expandem mentes. Ao ar livre do oxigénio reduzido, nesta banda que é mais do que um cliché ou um objectivo de vida que dura duas semanas, há um desconhecido arcano que como um sofá, obriga a sentar e contemplar. É o que me apetece fazer, mas chega a nossa camioneta, eu entro e instalo-me num lugar e de seguida, sou levado daqui. Só com memórias, fluidas e em fumo. A velha montanha fica para trás e a única coisa que me sobra é o velho eu que aqui chegou e continua a não renascer.
domingo, fevereiro 10, 2019
Perugrinação 13: A velha montanha - primeira parte
É uma faca de um ouvido ao outro, o toque de despertar. São três da manhã, enxofrina-me o visor do telemóvel. Sim, são três da manhã e estás acordado. O quarto é pequeno e na cama ao lado da minha, o Jorge parece ter sido apanhado no mesmo deslizamento de terras do que eu. Um pequeno sorriso mútuo, reconhecendo o mundo ao contrário onde nos encontramos, onde é noite e temos de fazer de conta que é de dia. Sinto-me grogue e com alguma dificuldade, distingo que as pernas têm lugar nas calças e não na camisola. Estamos em Aguas Calientes, uma pequena povoação no Leste do Peru que nada mais é do que um aglomerado de casas com uma única justificação: Macchu Pichu, a atracção turística mais popular do país. Não é isto que me traz cá, mas o Peru não fica exactamente ao lado de Portugal. Uma pessoa atravessa meio mundo e já que o meu corpo deu por si nos Andes, seria pecado não ceder a um cliché. Desde que, há uns anos, este local arquelógico inca foi incluído nas novas Sete Maravilhas do Mundo, toda a gente tem comichão em que cá vir. Claro que podemos questionar critérios - afinal, algo tão sem classe e estilo como o Cristo Redentor brasileiro está também incluído - mas ao menos, ao contrário das mesmas Sete do mundo antigo, estas maravilhas contemporâneas existem mesmo. Seria algo desapontante se, acordado a tão antecipada hora, desse por mim num planalto deserto ou apenas com meia dúzia de calhaus semelhantes aos que encontro espalhados pelo Pisco ceirense.
Ainda é noite e o nosso grupo desce desde o hotel até à zona dos transportes. Mesmo na escuridão, Águas Calientes é um pinhadinho de ruelas entre lojas, restaurantes e hóteis, com a mesma quantidade de personalidade que Luís Montenegro. Ainda assim, ouve-se já um rumor de vozes a alguma distância. Na paragem da camioneta que leva a Macchu Pichu, estão já, pelo menos, umas cinquenta pessoas, assim de cálculo. Organizam-se rudemente, a lembrar um rebanho. Está frio, mas o do inverno peruano, húmido, de lâmina pouco afiada. Sem Internet, não há muito para nos entretermos que não seja conversa de situação, algumas piadas ocasionais e o encosto do passeio. Olho na direcção da nossa chegada e uma rua com meio quilómetro vai-se povoando com o passar dos minutos. Às quatro e meia da manhã, já devem estar 200 pessoas. Meia hora depois, o dobro, a fila deixa de existir passando a ser um magote. Uma praga de turistas. Impermeáveis coloridos misturam-se com descontraídos adolescentes e pós-adolescentes em grupo, barulhentos, o linguarejar da Torre de Babel original. Não sei onde vêm, apenas para onde vão. É o sonho psicadélico de Viracocha. Cinco e meia e chegam as primeiras camionetas. O magote afunila-se. Fiscais de transporte tentam ordenar a entrada. Alguns polícias pairam, caso a praga necessite de insecticida. Depois de verificado o meu bilhete, entro e acomodo-me no meu lugar. No interior do transporte, um silêncio cúmplice de quem deve horas ao sono e poupa energia para a atracção principal. Quando saímos, já se notam matizes do amanhecer, mas o sol não está, ainda. A estrada que conduz a Macchu Pichu é uma serpente emplumada, com as árvores oferecendo cobertura ao corpo ofídio. Pela janela, observo caminhantes de frontal na testa, optando por um caminho alternativo, um trilho que corta a montanha quase a direito. Ainda são numerosos, pessoas que se desafiam fisicamente ou simplesmente tentando retirar o lado turista de um lugar que, para os Incas, sempre foi espiritual. No entanto, pela sua organização, pela ânsia de fotos pessoais, pela devoção às suas redes sociais e projecção no mundo virtual, são tão falsos como eu. Apenas têm maior caixa torácica.
A manada é reunida, depois da chegada gradual das camionetas. Já há luminosidade suficiente para que nos distingamos. Penso em como tudo isto é mais uma apropriação ocidental. Afinal, um arqueólogo americano chamado Hiram Bingham gabou-se de ter sido o primeiro a descobrir este povoado perdido a mais de três mil metros nos Andes. Olhando para a entrada, há uma placa, celebrando a amizade peruana e norte-americana com base no feiot desse garboso - e racista - cidadão americano. Como se Macchu Pichu fosse um presente envenenado. Como em quase tudo da versão histórica ocidental que se faz do chamado mundo dos pequeninos, é uma falsidade. O local já era conhecido de vários historiadores nacionais, em descrições, relatos e estudos. Pelo menos desde o século XVIII até que missionários espanhóis traziam consigo histórias de uma cidade, na base de uma montanha, nesta região. Quase de certeza que se referiam a este povoado. Mas Bingham pensou que era mais esperto do que os outros. Vinha dos EUA, claro. Bingham, um homem de boas famílias e hábitos eticamente discutíveis, ficou como o explorador das nuvens.
Somos encaminhados para o início de todos os trilhos que atravessam o parque arqueológico. Existem quatro percursos, mas a ideia do nosso grupo é chegar à primeira plataforma e fotografar a imagem mais icónica deste local no preciso momento em que o sol nasce. Aquela montanha elíptica verde e negra. Há uma fila de dezenas de metros que se contorce pelo caminho acima, pessoas como formigas, mochilas balouçando às costas, casacos coloridos combatendo o frio, sorrisos e compenetração. Por isso viemos tão cedo. A plataforma que buscamos, no entanto, preenche-se, curiosos e voyeurs, gente que anunciará a todo o mundo, segundos depois, que estão onde todos querem estar, apaparicados por uma certa sensação de superioridade geográfica do momento. A vista é reconhecível a qualquer pessoa que tem o Atlas Obscura na sua lista de favoritos. Aproveito uma nesga e planto-me, pés criando raízes para só me arrancarem dali à força da boa educação. Cedo a uma fraqueza e peço a alguém que me fotografe com o telemóvel. Mexendo nas definições da máquina fotográfica, tento calcular qual a melhor maneira de guardar para mim este momento; mas mais importante é o que baila na minha cabeça. Custa-me admitir inicialmente, mas há de facto um éter que não se vê nem se palpa em meu redor. Vai-se entranhando, tento definir, mas ainda não consigo. Preciso de mais presença. Cinismo de lado, absorção, encarar tudo isto não como um bacanal de turismo vendido e empacotado, mas algo mais que me preencha, que me faça atravessar a barreira do real. Há sete séculos, uma civilização trepou toda esta montanha, enfrentou a altitude ofegante e como uma criança que empilha uma torre de legos, deixou-nos uma cidade. Não se tinham dado ao trabalho só porque fica num topo. Quer dizer, talvez; boa parte das grandes cidades portuguesas devem a sua localização ou a rios ou a montanhas. Mas entre tantos topos, porquê este? A minha pele repousa, afrouxa, tenta mostrar-se receptiva. Já foste místico, já acreditaste nalgumas destas coisas. Era mais novo e mais parvo, mas ainda vive em ti, ou então definias-te ateu e não, como gostas sempre de afirmar com nariz empinado e quase num trejeito ridículo, que és agnóstico. Faz um esforço, instala-se e deixa que se instale. Sais do teu país à procura de motivos que façam a presença deste teu corpo físico e alma cadavérica justificação de existência. Atravessas meio mundo para encontrares o que quer que seja que achas que está no final da viagem, na ânsia de finalmente perceberes essa pergunta que não cala, mas também se anuncia. Se o fazes, ao menos fá-lo por completo. Aceita e nao recuses.
A luz então começa a surgir e envolve a cordilheira em nosso redor. Vegetação desce pelas escarpas abaixo, é um caldeirão verde. O sol espreguiça-se por uma frincha entre dois picos, oculto ainda lançam os seus raios, arautos da sua chegada. São brancos, são amarelos, mas se repararmos bem, nem têm cor, são apenas um anúncio. O que está escuro, baço, de repente sorri. Na base daquela montanha reconhecível, as ruínas finalmente aparecem, uma dança entre a vida e a ausência dela na pedra que guarda séculos. O sol gradualmente beija todo os cantos das casas, as faces do monte, até as nossas próprias caras quando se liberta da prisão dos montes e assume o seu lugar no céu. Sento-me, fotografo e respiro, não tanto o ar, mas a luz. Por momentos consigo, e juro que é verdade, ignorar que estou rodeado de uma multidão. Não existem maníacos das redes sociais, agarrados do telemóvel, simples monos que não entendem fazer parte de um mundo com tanta gente, terroturistas de ocasião. Eu estou aqui e quase sou o único, enquanto me reservo e mantenho no óculo da máquina. Já várias vezes falei desta sensação de ser um apenas através da câmara e que na busca de registar aquilo que mais tarde vos trago de cada uma das minhas viagens, o foco é apenas no momento. Vejo com os olhos, mas todo o meu corpo sente. Nesta chegada a Machu Picchu, as primeiras impressões marcam-se na pele, em mãos invisíveis de um misticismo próprio e genuíno, não de expressões faciais forçadas e alegria barroca, mas numa certeza que ganho em cada uma das viagens: de que comecei as minhas aventuras a fugir de algo, mas que nunca serei apanhado agora, precisamente porque já não fujo. Em troca, apanho todos estes instantes que aos trambolhões e como se os escrevesse dentro de uma máquina de lavar roupa em funcionamento, vos entrego imperfeitos.
Subo mais um patamar. Continuo a caminhar sem reparar bem no que vejo, apenas no momento em que o dia nasce e estou aqui, no meio dos Andes peruanos, nestes despojos do Império Inca. Agora, vejo a velha montanha sobranceira às ruínas do lado oposto ao que me encontrava. Acomodo-me e volto a fotografar. Num golpe de sorte e de vista, enquanto o sol trepa a pulso do meu lado direito, do lado esquerdo a Lua descobre que não é mais bem vinda e retira-se para as profundezas. No momento em que olho, parece pousar num pico montanhoso que se assemelha à base de um cálice. É como uma bola de gelado pronta a comer, aluada. Sem muito tempo para pensar, capturo o instante em três momentos diferentes. Apenas um sai perfeito, mas faz-me sentir sortudo, algo que muito, muito raramente me acontece. A sorte de estar e de ser, de ver acontecer, de sentir o suficiente para encontrar a beleza em algo tão simples quanto uma percepção. Aquilo que a vida é, afinal. Um ponto de vista, uma impressão, ângulos múltiplos de um espelho e que se olha e reflecte aquilo que está dentro de nós. Baila em mim, sempre, o turbilhão do abismo, aquela sensação de que o poço é real e a minha boca a única entrada para o mesmo. Mas neste momento, sentado numa palete de plástico preto, nada disso importa. Só eu e o mundo, que consigo ver sem mais alguém. Talvez seja um qualquer feitiço inca que só acontece a quem acorda às três da manhã.
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