domingo, fevereiro 10, 2019
Perugrinação 13: A velha montanha - primeira parte
É uma faca de um ouvido ao outro, o toque de despertar. São três da manhã, enxofrina-me o visor do telemóvel. Sim, são três da manhã e estás acordado. O quarto é pequeno e na cama ao lado da minha, o Jorge parece ter sido apanhado no mesmo deslizamento de terras do que eu. Um pequeno sorriso mútuo, reconhecendo o mundo ao contrário onde nos encontramos, onde é noite e temos de fazer de conta que é de dia. Sinto-me grogue e com alguma dificuldade, distingo que as pernas têm lugar nas calças e não na camisola. Estamos em Aguas Calientes, uma pequena povoação no Leste do Peru que nada mais é do que um aglomerado de casas com uma única justificação: Macchu Pichu, a atracção turística mais popular do país. Não é isto que me traz cá, mas o Peru não fica exactamente ao lado de Portugal. Uma pessoa atravessa meio mundo e já que o meu corpo deu por si nos Andes, seria pecado não ceder a um cliché. Desde que, há uns anos, este local arquelógico inca foi incluído nas novas Sete Maravilhas do Mundo, toda a gente tem comichão em que cá vir. Claro que podemos questionar critérios - afinal, algo tão sem classe e estilo como o Cristo Redentor brasileiro está também incluído - mas ao menos, ao contrário das mesmas Sete do mundo antigo, estas maravilhas contemporâneas existem mesmo. Seria algo desapontante se, acordado a tão antecipada hora, desse por mim num planalto deserto ou apenas com meia dúzia de calhaus semelhantes aos que encontro espalhados pelo Pisco ceirense.
Ainda é noite e o nosso grupo desce desde o hotel até à zona dos transportes. Mesmo na escuridão, Águas Calientes é um pinhadinho de ruelas entre lojas, restaurantes e hóteis, com a mesma quantidade de personalidade que Luís Montenegro. Ainda assim, ouve-se já um rumor de vozes a alguma distância. Na paragem da camioneta que leva a Macchu Pichu, estão já, pelo menos, umas cinquenta pessoas, assim de cálculo. Organizam-se rudemente, a lembrar um rebanho. Está frio, mas o do inverno peruano, húmido, de lâmina pouco afiada. Sem Internet, não há muito para nos entretermos que não seja conversa de situação, algumas piadas ocasionais e o encosto do passeio. Olho na direcção da nossa chegada e uma rua com meio quilómetro vai-se povoando com o passar dos minutos. Às quatro e meia da manhã, já devem estar 200 pessoas. Meia hora depois, o dobro, a fila deixa de existir passando a ser um magote. Uma praga de turistas. Impermeáveis coloridos misturam-se com descontraídos adolescentes e pós-adolescentes em grupo, barulhentos, o linguarejar da Torre de Babel original. Não sei onde vêm, apenas para onde vão. É o sonho psicadélico de Viracocha. Cinco e meia e chegam as primeiras camionetas. O magote afunila-se. Fiscais de transporte tentam ordenar a entrada. Alguns polícias pairam, caso a praga necessite de insecticida. Depois de verificado o meu bilhete, entro e acomodo-me no meu lugar. No interior do transporte, um silêncio cúmplice de quem deve horas ao sono e poupa energia para a atracção principal. Quando saímos, já se notam matizes do amanhecer, mas o sol não está, ainda. A estrada que conduz a Macchu Pichu é uma serpente emplumada, com as árvores oferecendo cobertura ao corpo ofídio. Pela janela, observo caminhantes de frontal na testa, optando por um caminho alternativo, um trilho que corta a montanha quase a direito. Ainda são numerosos, pessoas que se desafiam fisicamente ou simplesmente tentando retirar o lado turista de um lugar que, para os Incas, sempre foi espiritual. No entanto, pela sua organização, pela ânsia de fotos pessoais, pela devoção às suas redes sociais e projecção no mundo virtual, são tão falsos como eu. Apenas têm maior caixa torácica.
A manada é reunida, depois da chegada gradual das camionetas. Já há luminosidade suficiente para que nos distingamos. Penso em como tudo isto é mais uma apropriação ocidental. Afinal, um arqueólogo americano chamado Hiram Bingham gabou-se de ter sido o primeiro a descobrir este povoado perdido a mais de três mil metros nos Andes. Olhando para a entrada, há uma placa, celebrando a amizade peruana e norte-americana com base no feiot desse garboso - e racista - cidadão americano. Como se Macchu Pichu fosse um presente envenenado. Como em quase tudo da versão histórica ocidental que se faz do chamado mundo dos pequeninos, é uma falsidade. O local já era conhecido de vários historiadores nacionais, em descrições, relatos e estudos. Pelo menos desde o século XVIII até que missionários espanhóis traziam consigo histórias de uma cidade, na base de uma montanha, nesta região. Quase de certeza que se referiam a este povoado. Mas Bingham pensou que era mais esperto do que os outros. Vinha dos EUA, claro. Bingham, um homem de boas famílias e hábitos eticamente discutíveis, ficou como o explorador das nuvens.
Somos encaminhados para o início de todos os trilhos que atravessam o parque arqueológico. Existem quatro percursos, mas a ideia do nosso grupo é chegar à primeira plataforma e fotografar a imagem mais icónica deste local no preciso momento em que o sol nasce. Aquela montanha elíptica verde e negra. Há uma fila de dezenas de metros que se contorce pelo caminho acima, pessoas como formigas, mochilas balouçando às costas, casacos coloridos combatendo o frio, sorrisos e compenetração. Por isso viemos tão cedo. A plataforma que buscamos, no entanto, preenche-se, curiosos e voyeurs, gente que anunciará a todo o mundo, segundos depois, que estão onde todos querem estar, apaparicados por uma certa sensação de superioridade geográfica do momento. A vista é reconhecível a qualquer pessoa que tem o Atlas Obscura na sua lista de favoritos. Aproveito uma nesga e planto-me, pés criando raízes para só me arrancarem dali à força da boa educação. Cedo a uma fraqueza e peço a alguém que me fotografe com o telemóvel. Mexendo nas definições da máquina fotográfica, tento calcular qual a melhor maneira de guardar para mim este momento; mas mais importante é o que baila na minha cabeça. Custa-me admitir inicialmente, mas há de facto um éter que não se vê nem se palpa em meu redor. Vai-se entranhando, tento definir, mas ainda não consigo. Preciso de mais presença. Cinismo de lado, absorção, encarar tudo isto não como um bacanal de turismo vendido e empacotado, mas algo mais que me preencha, que me faça atravessar a barreira do real. Há sete séculos, uma civilização trepou toda esta montanha, enfrentou a altitude ofegante e como uma criança que empilha uma torre de legos, deixou-nos uma cidade. Não se tinham dado ao trabalho só porque fica num topo. Quer dizer, talvez; boa parte das grandes cidades portuguesas devem a sua localização ou a rios ou a montanhas. Mas entre tantos topos, porquê este? A minha pele repousa, afrouxa, tenta mostrar-se receptiva. Já foste místico, já acreditaste nalgumas destas coisas. Era mais novo e mais parvo, mas ainda vive em ti, ou então definias-te ateu e não, como gostas sempre de afirmar com nariz empinado e quase num trejeito ridículo, que és agnóstico. Faz um esforço, instala-se e deixa que se instale. Sais do teu país à procura de motivos que façam a presença deste teu corpo físico e alma cadavérica justificação de existência. Atravessas meio mundo para encontrares o que quer que seja que achas que está no final da viagem, na ânsia de finalmente perceberes essa pergunta que não cala, mas também se anuncia. Se o fazes, ao menos fá-lo por completo. Aceita e nao recuses.
A luz então começa a surgir e envolve a cordilheira em nosso redor. Vegetação desce pelas escarpas abaixo, é um caldeirão verde. O sol espreguiça-se por uma frincha entre dois picos, oculto ainda lançam os seus raios, arautos da sua chegada. São brancos, são amarelos, mas se repararmos bem, nem têm cor, são apenas um anúncio. O que está escuro, baço, de repente sorri. Na base daquela montanha reconhecível, as ruínas finalmente aparecem, uma dança entre a vida e a ausência dela na pedra que guarda séculos. O sol gradualmente beija todo os cantos das casas, as faces do monte, até as nossas próprias caras quando se liberta da prisão dos montes e assume o seu lugar no céu. Sento-me, fotografo e respiro, não tanto o ar, mas a luz. Por momentos consigo, e juro que é verdade, ignorar que estou rodeado de uma multidão. Não existem maníacos das redes sociais, agarrados do telemóvel, simples monos que não entendem fazer parte de um mundo com tanta gente, terroturistas de ocasião. Eu estou aqui e quase sou o único, enquanto me reservo e mantenho no óculo da máquina. Já várias vezes falei desta sensação de ser um apenas através da câmara e que na busca de registar aquilo que mais tarde vos trago de cada uma das minhas viagens, o foco é apenas no momento. Vejo com os olhos, mas todo o meu corpo sente. Nesta chegada a Machu Picchu, as primeiras impressões marcam-se na pele, em mãos invisíveis de um misticismo próprio e genuíno, não de expressões faciais forçadas e alegria barroca, mas numa certeza que ganho em cada uma das viagens: de que comecei as minhas aventuras a fugir de algo, mas que nunca serei apanhado agora, precisamente porque já não fujo. Em troca, apanho todos estes instantes que aos trambolhões e como se os escrevesse dentro de uma máquina de lavar roupa em funcionamento, vos entrego imperfeitos.
Subo mais um patamar. Continuo a caminhar sem reparar bem no que vejo, apenas no momento em que o dia nasce e estou aqui, no meio dos Andes peruanos, nestes despojos do Império Inca. Agora, vejo a velha montanha sobranceira às ruínas do lado oposto ao que me encontrava. Acomodo-me e volto a fotografar. Num golpe de sorte e de vista, enquanto o sol trepa a pulso do meu lado direito, do lado esquerdo a Lua descobre que não é mais bem vinda e retira-se para as profundezas. No momento em que olho, parece pousar num pico montanhoso que se assemelha à base de um cálice. É como uma bola de gelado pronta a comer, aluada. Sem muito tempo para pensar, capturo o instante em três momentos diferentes. Apenas um sai perfeito, mas faz-me sentir sortudo, algo que muito, muito raramente me acontece. A sorte de estar e de ser, de ver acontecer, de sentir o suficiente para encontrar a beleza em algo tão simples quanto uma percepção. Aquilo que a vida é, afinal. Um ponto de vista, uma impressão, ângulos múltiplos de um espelho e que se olha e reflecte aquilo que está dentro de nós. Baila em mim, sempre, o turbilhão do abismo, aquela sensação de que o poço é real e a minha boca a única entrada para o mesmo. Mas neste momento, sentado numa palete de plástico preto, nada disso importa. Só eu e o mundo, que consigo ver sem mais alguém. Talvez seja um qualquer feitiço inca que só acontece a quem acorda às três da manhã.
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