quarta-feira, maio 29, 2019

Perugrinação 21: Nostalgia, mas não de Tarkovski




Deixei Lima há duas semanas e quando volto, está diferente. Ou estou eu. Com mais pó acumulado, aposto. Quilometragem. Chegámos ontem de Cuzco. Ainda passámos um dia na antiga capital de Inca. Males estomacais voltaram a apanhar-me, mas ainda assim ganhei coragem para me levantar da cama e passear de tarde numa última vistoria pelas ruas, compras para amigos e família. A minha sobrinha começa assim uma carreira de ter um tio que lhe faltará a muitas festas de aniversário, em troca, terá prendas de todo o mundo. Num portal rectangular que dá para o interior de uma torre, um velhote quechua de chullo na mona sorri-me, um cliente. Pergunto-lhe sobre tamanhos pequenos, ele inquire a idade da destinatária - "Una ninã? Pero que linda!" - e ele nunca a viu. nem eu, sendo honesto. O que é que se pode escolher para alguém que não conhecemos? Sinto que é uma espécie de blind date com alguém que nem sequer tem gosto formado. Sou péssimo a escolher roupa, mas vem aí o Outono, a seguir o Inverno... Engraço com umas luvas verdes com quadrados de várias cores e um barretinho quechua com orelhas de abano e cordéis que parecem caracóis desfiantes, azul-claro, com algo de branco e laranja. Acho que a Beatriz gostará. Estou, basicamente, a escolher ofertas para daqui a uns anos. Não sei quem ela será tão à frente no futuro. Nem sei sequer como me verá, se me perceberá ou aceitará sequer, se não achará tudo isto pindérico. Mas pensando nela, torno-a bem real, defino-me em relação ao que lhe quero dar. Está pago, guardo num saco com as restantes prendas que adquiri. Dou mais umas voltinhas e regresso ao hotel. À noite jantamos e é a última vez que vejo aquele mar de casas com os pirilampos nocturnos a dizer presente. Pode parecer idiota, com tantas coisas bonitas que vi neste país, mas continua a ser das coisas mais fascinantes desta viagem, uma vista a partir da varanda do hotel, sobranceira a Cusco, num silêncio que crio para que tudo o mais fale, fale, diga. Não vos conto o que guardei da conversa, fica para mim. Fica para um caderno que é de alguém que não vocês. Escrevo nesse caderno na manha seguinte, enquanto esperamos no aeroporto da cidade por um voo interno para Lima. É o único aeroporto onde estive em que fui cheirado por cães polícia, procurando folhas de coca. Já tive armas apontadas a mim no Quirguistão, logo precisam de mais para me impressionar.


Hoje é o último dia neste país, na América do Sul. Amanhã regresso ao mundo que é meu. A ideia é visitarmos o centro histórico da cidade, que por própria admissão do Pedro, não é tão grande quanto isso. Por isso, sugere-nos a visita a um museu muito conhecido na capital, aquele que tem o nome de Mario Testino. Para os menos informados, é um famoso fotógrafo que ficou conhecido mundialmente devido a uma sessão feita com a falecida Diana Spencer, ex princesa de Gales. Localiza-se em Barranco, o tal bairro dos artistas sobre o qual já escrevi anteriormente. Num antigo palacete, reúne-se gente à porta, pinta de modernaços, alguns laivos hipsters, apreciam o sol da tarde num relvado da moda. Por sorte, a entrada hoje é à borla. Conheço várias fotos suas, são icónicas e no geral, celebram o excesso da fama, da festa, com um barroquismo muito próprio; e só quando paro de facto a observá-las, a reparar com olhos menos de quem folheia uma revista e de facto estaca para decifrar um mistério, de como a sua noção de cor é tão sul-americana. Há algo de todos os têxteis que encontrei nas profundezas dos Andes no seu mundo cromático, como se fosse um código de um peruano cosmopolita para os seus conterrâneos que não tiveram a mesma sorte: sou um peruano do mundo. Testino responsabilizou-se por tudo o que vemos aqui. Foi ele quem dirigiu o restauro desta mansarda, as fotos são suas, a curadoria das exposições temporárias de seu próprio gosto e escolha. Colabora com escolas e oferece oportunidades a novos artistas. Belo legado, mais do que fotos a preto e branco de um membro da realeza britânica. O rés-do-chão ocupa-se da carreira do Testino fashionista, fotos de celebridades e modelos, capas de revistas, portfólios da Vogue à Vanity Fair, o lado que projectou o fotógrafo na sua dimensão mundial. É quando acedemos ao primeiro andar que encontramos um espaço dedicado a vestimentas tradicionais do Peru Rural, impecavelmente iluminadas e fotografadas, a lente de um artista ao serviço da memória interna e folclórica do seu país. Mulheres e homens, crianças a saltar, pulsam tanto de vida quanto Kate Moss e David Beckham, se parecerem artificiais. Numa sala ao lado, as famosas fotos da última sessão da princesa morta. Sempre passei ao lado em torno desta plebeia britânica que aceitou um pacto com o diabo monárquico e deu por si acossada por fotógrafos literalmente até morrer. É apenas quando sozinho e em confronto com grande tela que noto como Testino lhe apanha uma melancolia plena nos olhos, mas principalmente nas mãos. É difícil de explicar, mas é um pouco como se os dedos procurassem um botão de passado que não existe. Para lá dos vestidos e da maquilhagem, com a cabeça pousa naquelas mãos, sente-se-lhe uma fome de fuga. Mas Testino não a deixa fugir, ainda que lhe permita a ilusão. Não é muito fácil apanhar pessoas. Eu não sei fazê-lo, não consigo, acho que não gosto. Acho demasiado intrusivo e viro-me para paisagens. Mas este peruano agarra-as pelos colarinhos, com a doçura de uma vicunha embeiçada. Torna alguém interessante, fulgente. É um dom.

De seguida, metemo-nos em táxis e rumamos ao centro histórico de Lima, uma extravagância colonial que vive disso, misturando nalgumas ruas um cosmopolitismo saloio de pequena grande cidade. Não o escrevo com desprezo. Há grandes edifícios e pequenos recantos, vida da América do Sul em curtas salas, cafés, ruelas. Como um grande embrulho espampanante, no qual descobrimos, depois de tirado todo o jornal, berlindes nada foscos. Já aqui falei das origens da cidade. Na altura não me demorei nos seus encantos históricos porque sabia que este momento chegaria; e o nosso percurso começa pela Plaza San Martin, também conhecia por Plaza de Armas. É o espaço público por excelência da consciência pública peruana. Se há manifestação, eclode aqui. Tomou o nome do libertador do Peru, José de San Martin, general que até era argentino. A sua construção marcou o centenário da independência do país, em 1922 e rodeia-o uma zona boémia da capital, com teatros e cinemas, salas de diversão, estabelecimentos nocturnos. Vou notando que a consciência pública não é apenas manifesta, mas anunciada. Este deve ser o Speaker's Corner do Peru. A cada canto, um magote de gente, ouve homens de megafone e aparelhagem sonora debitar as palavras de ordem mais acesa, trovoadas, e teorias de conspiração que fariam Alex Jones envergar uma erecção perpétua. Como quem nem quer ouvir, mas está doidinho por fazê-lo, aproximo-me de uma maralha que entre riso trocista e condescendente e a atenção dos que julgam, de súbito descobrir que o mundo tem uma manivela escondida que permite revertê-lo, escuta um arauto da desgraça; e qual é a sua? O Chile, esse país infame e ardiloso, vai atacando secretamente o Peru com a mais vil doença, o pior de todo os males: a homossexualidade. Pela calada da noite e penetrando profundamente nas fronteiras mais indefesas do país, presumo que as das traseiras, rapta os melhores filhos na nação peruviana e transforma-os com cabros, brócolis - gays. O método? A simplicidade de uma injecção, o tratamento demorado de um gás especial e a ideia é extinguir a população, acabar com ela, facilitar uma invasão futura. O dia brilha ainda, apesar do obscurantismo. Clama ele que a ditadura de Pinochet foi a única resistência a esta cabala da desgraça e que homem com homem é o rumo ao desfiladeiro quente do Inferno. O fim dos tempos, o tempo do fim. O renascer do Peru jaz em vaginas, aparentemente. Rio involuntariamente e ninguém nota, acho. No chão, esta voz do deserto exibe mapas, fotos, esquemas, ligações. Tudo aquilo que imaginariam nas paredes de um paranóico. Faz um grande gesto com o o braço, enquanto menciona Pinochet e por cima de si, passa um arco de sabão, feito por um palhaço - literal - que entretém miúdos numa banca lateral. É surreal, não mais do que aquilo que acabei de ouvir.


A pouca distância, encontra-se outro interessantísimo edifício cultural, a biblioteca pública Vargas Llosa. Quem lhe dá nome é do conhecimento geral, escritor do país que já meteu um Nobel ao bolso - de certa forma, é o Saramago desta gente, pois também é filho único nessa demanda Nobeliana das letras. A biblioteca tem o nome oficial de Casa da Literatura Peruana e o seu enquadramento dá-lhe um charme urbano que podia muito caber num largo romance sobre livros, palavras, mistérios presos em páginas. O seu edifício foi originalmente a principal estação de comboio de Lima, a Estación de los Desamparados, quase saída de Paris no seu desenho - o que é apropriado, visto que o modelo desta Lima que hoje conhecemos foi precisamente a Paris do fin de siécle. O nome não vem do facto de os antigos passageiros ficarem constantemente apeados junto à linha, mas sim de uma igreja que antigamente ficava neste local. Quando entro, noto o esforço realizado para manter o traço original da estação, desde a arquitectura até uma magnífico telhado de vidro, que conserva ainda os desenhos em vitral com que nasceu. Hoje guarda livros, mas ainda se sente que a qualquer altura, o gorgolejar mecânico e bruto de uma locomotiva se pode fazer ouvir e encher o espaço de fumo. Na verdade, descubro a ler uns folhetos, uma vez por mês tal acontece: um comboio liga Lima e Huancayo, cidade enfiada no interior dos Andes. Ainda agora lá estive, já me querem transportar de volta... Mantém tudo o que imaginamos, desde as bilheteiras em madeira até à escadaria de pedra e uma arquitectura de ferro que reconhecemos como europeia. É casa de livros desde 2009 apenas, mas que casa, e que utilização curiosa de um edifício civil. Ler aqui deve ser um poema em si. Fico com vontade de trazer os meus livros e escolher uma cadeira, qualquer uma, para durante o dia gozar da luz filtrada pelos vitrais, embalando-me em cenas de cinema que se constroem em camadas de papel, viver vidas alheias enquanto a minha é banhada a romance. Imagino-o e é encantador. Se procurarem em folhetos turísticos, ninguém vos aconselhará, por isso sugiro-vos ardentemente a visita. Vargas Llosa domina tudo, nome fundamental das Letras do país: as suas obras, a sua vida, a fotografia de um poseur artístico profissional com ar boémio, cabelo impecavelmente penteado e olhos daqueles que parecem dissecar a realidade ao mínimo ponto e vírgula.


Depois deste banho de cultura, um pouco de conhaque, com a possibilidade de ser literal. Mesmo à esquerda da Casa da Literatura, o bar Cordano oferece a possibilidade de parar e petiscar alguma coisa. É um daqueles sítios em que se entra e se viaja no tempo. Duas portas abertas, quase como se pudéssemos atravessar o início do século XX em vinte passos e regressarmos de imediato ao nosso. O Cordano foi fundado em 1905 por italianos, naturais de Génova, e ainda hoje aqui se mantém, um dos estabelecimentos mais antigos e tradicionais de Lima. 112 anos de existência e mantém praticamente o seu aspecto inicial. Não há música, não há televisão, não há wi-fi. Existe a conversa e a possibilidade de as pessoas continuarem a ser pessoas. Deve o nome a um par de irmão que foram co-fundadores do café e o legaram, mais tarde, aos filhos, que ainda hoje mantêm negócio em conjunto com os empregados, que também são donos do espaço .Em Lisboa, já lhe teriam tratado da saúde para criar um Alojamento Local. Por aqui, felizmente, ainda há quem permita que a cidade mantenha um charme próprio. De tal forma é importante que foi declarado, em 2005, património nacional.Os empregados respeitam um pouco estas raízes, não apenas no uniforme, mas também na atitude. Fotografias encarquilhadas nas paredes lembram-me orgulhos pessoais de dono, a alegria de receber gente ilustre numa casa que é mais do que quatro paredes, o prazer de ser anfitrião e assistir a vida que se desenrola em torno de mesas. Cheira a filme antigo e olhando em redor, ouço jazz, com tons de tango, vejo homens de chapéu de aba, cigarrinho ao canto da boca, num lanço de escadas rumo ao coração de alguma moça mais desprevenida e capaz de cair na esparrela de um copo. Este segundo dia em Lima desperta-me mais evocações do que o primeiro, ou se calhar estou mais disponível para recebê-las. Talvez a deriva pela minha paisagem, a montanha, tenha finalmente despertado a sensibilidade que adormecida, me esquivava da realidade. Na praça central da cidade, o sentimento de caos volta, mas justificado: muitas pessoas, trânsito acumulado, luzes abananadas. Oportunidade para ver mais de perto uma das curiosidades arquitectónicas desta urbe, os Balcones de Lima. Quase todos são dos período colonial dos séculos XVII e XVIII, e são hoje Património da Humanidade. Sendo Lima uma fundação original dos colonizadores espanhóis, os seus pormenores e pormaiores devem muito à Europa, a influências mouriscas e nestes balcões, claramente, ao sul do nosso país vizinho. Juntam-se aqui o Barroco e o Árabe, esculturas de madeira de vasto pormenor rendilhado. Ainda hoje continuam a ser símbolos do poder colonial. Serviam para o Vice-Rei local, representante máximo do poder imperial espanhol, se dirigir às multidões e o seu intrincado desenho, escondendo que está do outro lado da janela, permite a qualquer um ver as grandes cerimónias públicas sem ser notado. Este Balcões localizam-se em edifícios de poder e religiosos importantes e são, claro, imagens de diferenças de classe, para colocar os plebeus no seu devido espaço.

A noite volta a acabar num jantar no centro comercial onde na nossa primeira noite a sério no Peru, tomámos finalmente consciência de que estávamos noutro ponto, noutra realidade. Escolhemos com mais gosto desta vez e evitamos fast food. Um restaurante que observa a escuridão do Pacífico, onde nos tratamos de forma diferente, desta vez não como estranhos completos, mas apenas semi-estranhos. Acho que é o máximo que qualquer pode almejar nestas viagens de curta duração. As pessoas vão sendo amigas, com a noção de que o contrato acaba normalmente quando se regressa ao aeroporto. Conhecemo-nos, mas noutras viagens, arranjaremos outros amigos temporários, de lugar em lugar, uma colecção deles. Mas aqui, não pensamos nisso. Rimos e relembramos, comemos bem, sonhamos com a noite imbuída de sal marinho e luzes foscas. Lima, amanhã, não é, foi porque está para trás. Hoje é verbo ser; amanhã é verbo estar. Ainda estou meio abanando da violência sensorial da América do Sul e quando regressar, sei que sentirei falta. Ainda não percebo é do quê. Mas isso fica para outra reflexão, outro local. Hoje, como um belo bife com vegetais e ainda não voltei. Quero pensar que amanhã acordo, saio do hotel rumo à Casa da Literatura e tirando um livro das estantes da antiga estação, sou personagem de filme antigo, tão melancólico e nostálgico quanto o meu aparelho de sentir.

quinta-feira, maio 09, 2019

Perugrinação 20: O apelo constante da altura


É um azul claro limpo, fresco. A manhã é fria, mas queima de uma forma que não sei explicar. Talvez seja do sol batendo na diagonal ou dos picos nevados que defronte de mim sustentam esta casa que é a montanha. Num desafio ao céu, não murcham nem fraquejam. Ontem, a noite protegia-os, mas agora, na luz clara e desanuviada, apresentam-se sem pejo. Se olhar para o horizonte, estendem-se, sempre altivos, sempre enormes. É como um sonho directamente saído dos meus desejos maiores, que na neve ardem. Cobrem-se de branco, mas vejo-os de todas as cores. O Pedro chama-me a atenção com um toque no ombro, "Pequeno-almoço, bora", e sigo-o até uma casa larga, mas baixa. Quando entro, saúdam-me em castelhano, três homens que vão fazendo o pequeno-almoço. à mesa, copos e pratos estão servidos. No centro, recipientes com chá fumegante, é de coca. Subiremos hoje aos cinco mil metros de altitude, não é brinquedo. Melhor prevenir. Beberrico um pouco, mas não costumo ser de chás. Neste Hostal, no entanto, tratam-nos bem; e noto que neste fim de mundo,as convenções sociais são diferentes. Aqui, os homens cozinham. Não encaram isso como algo degradante ou menor: fazem questão. É uma experiência de camaradagem, um prazer em dar algo de seu a estrangeiros. As mulheres tratam de outras lides, criam os filhos e tecem ponchos e panos e cobertas e roupa para vestirem e venderem. Uma outra divisão de tarefas. O pão é bom, pelo menos, não sei se são eles a fazê-lo. Vou observando fotos que tirei até agora, enquanto como. Hábitos antigos, não consigo tomar o pequeno-almoço sem estar a ler. À falta de Internet e de livros, sobra-me o espólio fotográfico que tenho acumulado. Só consigo reunir algum orgulho acerca deste lado das minhas viagens quando, chegado a casa, percorro memórias em imagens. Um orgulho fugidio e não tão habitual, exijo de mim uma bitola que nem a máquina, nem o meu talento reduzido me podem dar. A quantidade de locais que visitei nestas duas semanas é tão variada que não acredito. Alguns já me parecem fumo, necessito de olhar as fotos de maneira a acreditar que os visitei, que estive lá. Na recta final de cada viagem que faço, o que vejo ganha a semelhança crónica de uma alucinação vívida.


Mochila arrumada, combinámos encontrar-nos no parque de estacionamento. Enquanto caminho, vejo melhor o que a noite me ocultou quando cheguei. Um límpido riacho atravessa o espaço do resort, amparado pela beleza da altitude e a vegetação rasteira e verde cansada do planalto. A electricidade dá-se aqui por meio de postes bêbados, que garantem os fios, mas por pouco. Chegam aqui quase por favor. Um cão negro, listado a mel, roça-se nas minhas pernas e merece uma festa. No parque, cavalos esperam em descanso. São uns dez. Dá quase um por cada turista luso, mas nenhum deles é puro sangue lusitano. O tamanho é mesmo a jeito para tótós como eu, que nunca montaram a cavalo. Já sabia previamente que este seria o meu dia de estreia nestas lides. É impossível não recordar o senhor Nuno, o homem velho mais novo que conheço. Não por ter o espírito jovial usar o português de maneira atroz. Simplesmente, não envelheceu um dia desde que eu era criança, e ele já era antigo nessa altura. O senhor Nuno era dono de um picadeiro ao cimo da minha rua. De quando em vez, subia para visitar os cavalos. Simpático, deixava que os acarinhássemos, déssemos comida e de quando em vez, aos mais corajosos ou aqueles com quem simpatizava, uma voltinha no Alegria, um cavalo branco manso, era prémio. Nunca o mereci, mas olhava sempre com curiosidade, inveja e aquele fascínio pelos animais que só as crianças que passam o tempo todo a ler fechadas num quarto podem conjurar. Estes anos depois, do outro lado do mundo, e finalmente vou fazer-me de cavaleiro. Calha-me em sorte um cabisbaixo equino cujo nome não fixei, o que é ingrato visto alombar nos próximos quilómetros com os meus quase noventa quilos. Vou chamar-lhe "Desorientado", por motivos que se tornarão claros mais abaixo. Um dos cuidadores, que nos acompanhará nesta viagem, incentiva-me. Por muito que eu saiba que o cavalo é bastante mais denso e musculado do que eu, parece que tenho medo de parti-lo se subir demasiado depressa, com ímpeto em excesso. Máximo cuidado da minha parte, até porque me passa pela cabeça a imagem do Christopher Reeves menos super e mais cadeira de rodas. É um jogo de confiança, porque ainda que estejamos no solo, o controlo não é nosso. Aquele bicho tem vontade própria, por muito que insistam que foi domesticado. É como se caminhasse não caminhando, uma experiência fora do corpo. Existir por interposto organismo. Mas quando começa a andar de um lado para o outro, sempre pela mão de quem o conhece e educou, não consigo ter a verdadeira noção de ser eu a fazer o caminho. Mas vendo aquela paisagem à minha frente, montanhas atrás de montanhas, sei que esta é a única maneira e tento habituar-me à flutuação.


Os cavalos seguem em fila. O Desorientado é o penúltimo, e eu por arrasto. Significa que qualquer foto que tire virado para a frente terá um comboio de dança em quatro patas. Mas o cenário vai-se desvelando à medida que subimos o trilho rochoso e é tudo aquilo que esperava: altitudes com gorro branco, as neves do final de Inverno aqui no hemisfério sul ainda bem visíveis e espessas nos topos das montanhas, mas em gradual sarapinto à medida que a altura se perde. Centímetros de vista, mas metros de rocha, são adicionados à medida que o trilho sobre e em segundo plano, dois irmãos montanhosos dormem, descansam, exibem-se. O caminho afunilado vai-se alargando e ao nosso lado esquerdo, corre um riacho que desce até ao nosso "resort". Mas são aquelas duas montanhas que nos dominam. É o Nevado de Ausangate, que com quase seis mil e quatrocentos metros vigia a nossa lenta cavalgada. Na mitologia Inca, era tão reverenciado que existe um festival anual que se desenrola aos seus pés, com o nome de Quyllur Ryti'i - na nossa língua portuguesa, a neve das estrelas. Como se todo este cobertor esbranquiçado fosse uma dádiva do céu, do mesmo Cosmos que ontem admirei em atenção e admiração suspensa. É ainda um centro do que sobra da original cultura desse grande império que englobou o Peru. É em Ausangate que funciona ainda uma vida de pastoreio única no mundo, que centra todo o esforço de uma sociedade inteira no seu sucesso. O trilho que fazemos serve essa economia, de aldeias espalhadas por estas montanhas, ligadas entre si por estradas apenas percorridas a pé. Pastores levam llamas e produtos associados para vender nestes locais desterrados. Olhando em meu redor, torna-se quase impossível conceber que alguém possa sequer viver para lá da linha do meu horizonte. Mas vivem. O Desorientado alheia-se a isto e faz por merecer o nome que lhe coloquei: no chão, o trilho está perfeitamente marcado, visível definido; mas o meu anexo de patas ignora convenções, julga-se um Guevara que relincha. Ziguezagues aleatórios, a escolha da versão mais difícil de dar as curvas, subir e descer quando pode perfeitamente ir a direito: este não é o fiel e equilibrado Brego do Aragorn. A certa altura, sinto o meu rabo a ficar dormente e as minhas pernas abertas num ângulo permanente que não é simpático. Penso nos filmes de faroeste, entendo bem porque é que os cowboys caminhavam como se tivessem ganho um assento num cacto.


Olhando para trás, já nem vejo o "resort", mas o que conta, de momento, é aquilo que está para aparecer à minha frente. O mais velho dos guias passa por nós a correr, com um saco às costas. O que levará? Aquelas altas montanhas vão-se aproximando, o trilho dá uma grande e larga curva para a esquerda, para me dar a conhecer um lago de água cinzenta, margens arenosas cor de barro, com picos nevados em segundo plano. Esqueço-me que estou num cavalo, lembro-me porque quase caio de tão espectacular é a revelação. Um dos nossos guias já está pronto a segurar-nos a montada, chegámos à primeira das lagoas de Ausangate. São sete e vamos percorrê-las a pé. Os bichos têm direito ao descanso, principalmente o meu. Se calhar, a desorientação foi de arcar com o meu peso. Em redor, é impossível não ver montanha e sinto-me regressado a casa. Um cão vem anichar-se aos meus pés, faço-lhe uma festa e de seguida, corre em direcção ao lago para saciar a sede. Em todo o espaço, rebanhos de llamas, espalhados em pequenos grupos. Numa criação artificial, duas pessoas vestem de forma colorida e sentadas, na base da montanha branca, estendem panos e cobertas para vender. Está explicado o mistério da correria e do homem do saco. Mas o meu foco está em absorver tudo isto para já. Todo este misticismo justificado dos Andes, tudo aquilo que vos tenho contado, o meu fascínio por esta região do mundo parece convergir neste momento na minha direcção. Estou para lá do óculo da máquina, há algo que sinto e que sulca as minhas reentrâncias mínimas da pele. Como se absorvesse bem para lá de mim e o oxigénio denso já não me fosse uma dificuldade. Sei que boa parte destas minhas crónicas se focam nesta estranha relação que tenho com as grandes paisagens e os cenários deslumbrantes, dominantes que encontro tão longe no mundo. Torna-se-me cada vez mais complicado transmitir o quanto tudo isto me esmaga e eleva em simultâneo, porque sinto em mim turbilhões que extravasam dicionários e só se explicam numa profundeza qualquer que só o olhar egoísta guarda. Tenho até medo de me afogar nos cenários que vou guardando e esquecê-los. É o paradoxo de quem viaja: estar no momento é em absoluto uma dádiva, bater continência a estar vivo, exuberar-nos; mas quanto mais vejo, mais hipótese há de me esquecer. Por isso, se a fotografia disto das viagens começou como um desafio estético, como procura de beleza, cada vez mais é uma caixa negra do que sinto quando estou aqui, no umbigo do meu mundo. Em casa, dias ou semanas ou meses depois de tudo isto não ser mais um pretexto para palavras que tenho escrito desde Outubro, é a essas imagens que voltarei para dar corda à alma, escutando uma doce melodia visual.


A caminhada procede-se em ritmo lento, acho que cada um de nós está maravilhado e compenetrado à sua maneira. As palavras são escassas, seguimos à letra o conselho dos Depeche Mode: apreciar o silêncio. O trilho de Ausangate tem perto de sessenta quilómetros na sua totalidade, mas nós, gente de fraca preparação física, fazemos apenas um giro de quatro em torno das lagoas que fica no sopé das suas montanhas. O degelo, quando se dá, deposita aqui as suas águas e o seu, em gesto de narciso, espreita-se nas água, forçando a paisagem a igual egocentrismo. Nenhuma delas tem tamanho ou profundidades que dêem para contar histórias monstruosas, mas ainda assim, existem para nos maravilhar. É uma oportunidade para fotos de reflexo e de qualquer outro tipo que destaque o estupendo impacto destas montanhas. Os Andes riscam a América do Sul de uma ponta à outra. Atravessam praticamente todos os países (das grandes nações deste sub continente, apenas Brasil, Paraguai e Uruguai não são tocados pela sua graça) e mesmo adormecidos e mudos, escondem uma longa actividade vulcânica que volta e meia agita estas terras. O mais violento sismo de que temos registo aconteceu em 1960, na pequena cidade de Valdivia, Chile. Fica mesmo aos pés dos Andes chilenos e por sorte, não era muito habitada: morreram "apenas" mil pessoas. Se correrem a lista de destaque de violência sísmica, nos vinte primeiros lugares existem sete registados nesta zona, um deles no Peru até, mesmo em Lima. Algumas das capitais mais elevadas do mundo, como La Paz ou Quito, também se localizam na cordilheira, cujo predomínio territorial forçou muitos dos seus cidadãos a habitá-la. Com isso, também a habituar-se à altitude como habitat; e isso torna os Andes num fascínio pessoal, imaginava acordar num ponto habitado desta região e abrindo as janelas com estrépito, dar por mim a devorar com os olhos longas montanhas que não consigo sequer encher com a gula. Esta voltinha pelo trilho das lagoas de Ausangate é um pouco isso, aquela sensação emotiva de calcar e percorrer, mas sem a capacidade de lidar com tudo isto, por mais que viaje, por mais que veja. É sempre de abrir a boca, nunca de dormência perante o encanto, o que é correcto aos sentidos que nos ligam ao mundo. As cores que nos dominam, o espanto que faz ceder o embrutecimento e o refúgio da normalidade que nos impede de ensandecer com as emoções. Apetece mesmo perder a razão e o juízo, sentar e não ir embora. É o que quero e não tenho direito. Vi todas as lagoas, trouxe na máquina as montanhas, mas este ar e esta luz só posso guardá-las durante os segundos em que disfruto. O paradoxo do viajante é este: ir e voltar, mas só estar neste intervalo. Os Andes são um momento. No regresso a casa, voltarão a ser letras num livro que leio e numa crónica que escrevo.


Voltamos aos cavalos. O Desorientado, pachorrento, vai comendo erva do chão. No regresso, não perdeu o gosto pelo perigo e nalgumas vezes, tenho de puxar as rédeas ainda que, como calculam, não saiba a maneira correcta de fazê-lo. Preciso da ilusão de controlo, mas depois de Ausangate, apetece-me apenas ser controlado pelo que deixo para trás e deixar-me levar. Não sei se algumas vez sentiram isto, como se fossem uma corda elástica. É como estou. O cavalo não entende, até porque nunca mergulhou em literatura, nem entende os profundos anseios e abismos da alma humana. Talvez vá assimilando que os donos de duas patas são criaturas complicadas, mas desde que o mantenham numa dose regular de comida, água e descanso, nada o incomoda. Por momentos, a plenitude é atingível, mas nunca acontece. Não é do balanço ou do cansaço: é de mim. Como se sentisse esplendor, mas isso não me chegasse. Como se apenas nos lábios de quem quero pudesse, por fim, recolher o que falta e fazer dos Andes vulcões, de Ausangate o tecto do mundo. Percebo que por muitas voltas que dê ao mundo, algo me faz falta; mas as voltas são minhas e faço-as porque viver é mais do que esperar, é ir em busca e criar caminho. Ainda que as patas que pisam o chão não sejam minhas.