quinta-feira, maio 09, 2019
Perugrinação 20: O apelo constante da altura
É um azul claro limpo, fresco. A manhã é fria, mas queima de uma forma que não sei explicar. Talvez seja do sol batendo na diagonal ou dos picos nevados que defronte de mim sustentam esta casa que é a montanha. Num desafio ao céu, não murcham nem fraquejam. Ontem, a noite protegia-os, mas agora, na luz clara e desanuviada, apresentam-se sem pejo. Se olhar para o horizonte, estendem-se, sempre altivos, sempre enormes. É como um sonho directamente saído dos meus desejos maiores, que na neve ardem. Cobrem-se de branco, mas vejo-os de todas as cores. O Pedro chama-me a atenção com um toque no ombro, "Pequeno-almoço, bora", e sigo-o até uma casa larga, mas baixa. Quando entro, saúdam-me em castelhano, três homens que vão fazendo o pequeno-almoço. à mesa, copos e pratos estão servidos. No centro, recipientes com chá fumegante, é de coca. Subiremos hoje aos cinco mil metros de altitude, não é brinquedo. Melhor prevenir. Beberrico um pouco, mas não costumo ser de chás. Neste Hostal, no entanto, tratam-nos bem; e noto que neste fim de mundo,as convenções sociais são diferentes. Aqui, os homens cozinham. Não encaram isso como algo degradante ou menor: fazem questão. É uma experiência de camaradagem, um prazer em dar algo de seu a estrangeiros. As mulheres tratam de outras lides, criam os filhos e tecem ponchos e panos e cobertas e roupa para vestirem e venderem. Uma outra divisão de tarefas. O pão é bom, pelo menos, não sei se são eles a fazê-lo. Vou observando fotos que tirei até agora, enquanto como. Hábitos antigos, não consigo tomar o pequeno-almoço sem estar a ler. À falta de Internet e de livros, sobra-me o espólio fotográfico que tenho acumulado. Só consigo reunir algum orgulho acerca deste lado das minhas viagens quando, chegado a casa, percorro memórias em imagens. Um orgulho fugidio e não tão habitual, exijo de mim uma bitola que nem a máquina, nem o meu talento reduzido me podem dar. A quantidade de locais que visitei nestas duas semanas é tão variada que não acredito. Alguns já me parecem fumo, necessito de olhar as fotos de maneira a acreditar que os visitei, que estive lá. Na recta final de cada viagem que faço, o que vejo ganha a semelhança crónica de uma alucinação vívida.
Mochila arrumada, combinámos encontrar-nos no parque de estacionamento. Enquanto caminho, vejo melhor o que a noite me ocultou quando cheguei. Um límpido riacho atravessa o espaço do resort, amparado pela beleza da altitude e a vegetação rasteira e verde cansada do planalto. A electricidade dá-se aqui por meio de postes bêbados, que garantem os fios, mas por pouco. Chegam aqui quase por favor. Um cão negro, listado a mel, roça-se nas minhas pernas e merece uma festa. No parque, cavalos esperam em descanso. São uns dez. Dá quase um por cada turista luso, mas nenhum deles é puro sangue lusitano. O tamanho é mesmo a jeito para tótós como eu, que nunca montaram a cavalo. Já sabia previamente que este seria o meu dia de estreia nestas lides. É impossível não recordar o senhor Nuno, o homem velho mais novo que conheço. Não por ter o espírito jovial usar o português de maneira atroz. Simplesmente, não envelheceu um dia desde que eu era criança, e ele já era antigo nessa altura. O senhor Nuno era dono de um picadeiro ao cimo da minha rua. De quando em vez, subia para visitar os cavalos. Simpático, deixava que os acarinhássemos, déssemos comida e de quando em vez, aos mais corajosos ou aqueles com quem simpatizava, uma voltinha no Alegria, um cavalo branco manso, era prémio. Nunca o mereci, mas olhava sempre com curiosidade, inveja e aquele fascínio pelos animais que só as crianças que passam o tempo todo a ler fechadas num quarto podem conjurar. Estes anos depois, do outro lado do mundo, e finalmente vou fazer-me de cavaleiro. Calha-me em sorte um cabisbaixo equino cujo nome não fixei, o que é ingrato visto alombar nos próximos quilómetros com os meus quase noventa quilos. Vou chamar-lhe "Desorientado", por motivos que se tornarão claros mais abaixo. Um dos cuidadores, que nos acompanhará nesta viagem, incentiva-me. Por muito que eu saiba que o cavalo é bastante mais denso e musculado do que eu, parece que tenho medo de parti-lo se subir demasiado depressa, com ímpeto em excesso. Máximo cuidado da minha parte, até porque me passa pela cabeça a imagem do Christopher Reeves menos super e mais cadeira de rodas. É um jogo de confiança, porque ainda que estejamos no solo, o controlo não é nosso. Aquele bicho tem vontade própria, por muito que insistam que foi domesticado. É como se caminhasse não caminhando, uma experiência fora do corpo. Existir por interposto organismo. Mas quando começa a andar de um lado para o outro, sempre pela mão de quem o conhece e educou, não consigo ter a verdadeira noção de ser eu a fazer o caminho. Mas vendo aquela paisagem à minha frente, montanhas atrás de montanhas, sei que esta é a única maneira e tento habituar-me à flutuação.
Os cavalos seguem em fila. O Desorientado é o penúltimo, e eu por arrasto. Significa que qualquer foto que tire virado para a frente terá um comboio de dança em quatro patas. Mas o cenário vai-se desvelando à medida que subimos o trilho rochoso e é tudo aquilo que esperava: altitudes com gorro branco, as neves do final de Inverno aqui no hemisfério sul ainda bem visíveis e espessas nos topos das montanhas, mas em gradual sarapinto à medida que a altura se perde. Centímetros de vista, mas metros de rocha, são adicionados à medida que o trilho sobre e em segundo plano, dois irmãos montanhosos dormem, descansam, exibem-se. O caminho afunilado vai-se alargando e ao nosso lado esquerdo, corre um riacho que desce até ao nosso "resort". Mas são aquelas duas montanhas que nos dominam. É o Nevado de Ausangate, que com quase seis mil e quatrocentos metros vigia a nossa lenta cavalgada. Na mitologia Inca, era tão reverenciado que existe um festival anual que se desenrola aos seus pés, com o nome de Quyllur Ryti'i - na nossa língua portuguesa, a neve das estrelas. Como se todo este cobertor esbranquiçado fosse uma dádiva do céu, do mesmo Cosmos que ontem admirei em atenção e admiração suspensa. É ainda um centro do que sobra da original cultura desse grande império que englobou o Peru. É em Ausangate que funciona ainda uma vida de pastoreio única no mundo, que centra todo o esforço de uma sociedade inteira no seu sucesso. O trilho que fazemos serve essa economia, de aldeias espalhadas por estas montanhas, ligadas entre si por estradas apenas percorridas a pé. Pastores levam llamas e produtos associados para vender nestes locais desterrados. Olhando em meu redor, torna-se quase impossível conceber que alguém possa sequer viver para lá da linha do meu horizonte. Mas vivem. O Desorientado alheia-se a isto e faz por merecer o nome que lhe coloquei: no chão, o trilho está perfeitamente marcado, visível definido; mas o meu anexo de patas ignora convenções, julga-se um Guevara que relincha. Ziguezagues aleatórios, a escolha da versão mais difícil de dar as curvas, subir e descer quando pode perfeitamente ir a direito: este não é o fiel e equilibrado Brego do Aragorn. A certa altura, sinto o meu rabo a ficar dormente e as minhas pernas abertas num ângulo permanente que não é simpático. Penso nos filmes de faroeste, entendo bem porque é que os cowboys caminhavam como se tivessem ganho um assento num cacto.
Olhando para trás, já nem vejo o "resort", mas o que conta, de momento, é aquilo que está para aparecer à minha frente. O mais velho dos guias passa por nós a correr, com um saco às costas. O que levará? Aquelas altas montanhas vão-se aproximando, o trilho dá uma grande e larga curva para a esquerda, para me dar a conhecer um lago de água cinzenta, margens arenosas cor de barro, com picos nevados em segundo plano. Esqueço-me que estou num cavalo, lembro-me porque quase caio de tão espectacular é a revelação. Um dos nossos guias já está pronto a segurar-nos a montada, chegámos à primeira das lagoas de Ausangate. São sete e vamos percorrê-las a pé. Os bichos têm direito ao descanso, principalmente o meu. Se calhar, a desorientação foi de arcar com o meu peso. Em redor, é impossível não ver montanha e sinto-me regressado a casa. Um cão vem anichar-se aos meus pés, faço-lhe uma festa e de seguida, corre em direcção ao lago para saciar a sede. Em todo o espaço, rebanhos de llamas, espalhados em pequenos grupos. Numa criação artificial, duas pessoas vestem de forma colorida e sentadas, na base da montanha branca, estendem panos e cobertas para vender. Está explicado o mistério da correria e do homem do saco. Mas o meu foco está em absorver tudo isto para já. Todo este misticismo justificado dos Andes, tudo aquilo que vos tenho contado, o meu fascínio por esta região do mundo parece convergir neste momento na minha direcção. Estou para lá do óculo da máquina, há algo que sinto e que sulca as minhas reentrâncias mínimas da pele. Como se absorvesse bem para lá de mim e o oxigénio denso já não me fosse uma dificuldade. Sei que boa parte destas minhas crónicas se focam nesta estranha relação que tenho com as grandes paisagens e os cenários deslumbrantes, dominantes que encontro tão longe no mundo. Torna-se-me cada vez mais complicado transmitir o quanto tudo isto me esmaga e eleva em simultâneo, porque sinto em mim turbilhões que extravasam dicionários e só se explicam numa profundeza qualquer que só o olhar egoísta guarda. Tenho até medo de me afogar nos cenários que vou guardando e esquecê-los. É o paradoxo de quem viaja: estar no momento é em absoluto uma dádiva, bater continência a estar vivo, exuberar-nos; mas quanto mais vejo, mais hipótese há de me esquecer. Por isso, se a fotografia disto das viagens começou como um desafio estético, como procura de beleza, cada vez mais é uma caixa negra do que sinto quando estou aqui, no umbigo do meu mundo. Em casa, dias ou semanas ou meses depois de tudo isto não ser mais um pretexto para palavras que tenho escrito desde Outubro, é a essas imagens que voltarei para dar corda à alma, escutando uma doce melodia visual.
A caminhada procede-se em ritmo lento, acho que cada um de nós está maravilhado e compenetrado à sua maneira. As palavras são escassas, seguimos à letra o conselho dos Depeche Mode: apreciar o silêncio. O trilho de Ausangate tem perto de sessenta quilómetros na sua totalidade, mas nós, gente de fraca preparação física, fazemos apenas um giro de quatro em torno das lagoas que fica no sopé das suas montanhas. O degelo, quando se dá, deposita aqui as suas águas e o seu, em gesto de narciso, espreita-se nas água, forçando a paisagem a igual egocentrismo. Nenhuma delas tem tamanho ou profundidades que dêem para contar histórias monstruosas, mas ainda assim, existem para nos maravilhar. É uma oportunidade para fotos de reflexo e de qualquer outro tipo que destaque o estupendo impacto destas montanhas. Os Andes riscam a América do Sul de uma ponta à outra. Atravessam praticamente todos os países (das grandes nações deste sub continente, apenas Brasil, Paraguai e Uruguai não são tocados pela sua graça) e mesmo adormecidos e mudos, escondem uma longa actividade vulcânica que volta e meia agita estas terras. O mais violento sismo de que temos registo aconteceu em 1960, na pequena cidade de Valdivia, Chile. Fica mesmo aos pés dos Andes chilenos e por sorte, não era muito habitada: morreram "apenas" mil pessoas. Se correrem a lista de destaque de violência sísmica, nos vinte primeiros lugares existem sete registados nesta zona, um deles no Peru até, mesmo em Lima. Algumas das capitais mais elevadas do mundo, como La Paz ou Quito, também se localizam na cordilheira, cujo predomínio territorial forçou muitos dos seus cidadãos a habitá-la. Com isso, também a habituar-se à altitude como habitat; e isso torna os Andes num fascínio pessoal, imaginava acordar num ponto habitado desta região e abrindo as janelas com estrépito, dar por mim a devorar com os olhos longas montanhas que não consigo sequer encher com a gula. Esta voltinha pelo trilho das lagoas de Ausangate é um pouco isso, aquela sensação emotiva de calcar e percorrer, mas sem a capacidade de lidar com tudo isto, por mais que viaje, por mais que veja. É sempre de abrir a boca, nunca de dormência perante o encanto, o que é correcto aos sentidos que nos ligam ao mundo. As cores que nos dominam, o espanto que faz ceder o embrutecimento e o refúgio da normalidade que nos impede de ensandecer com as emoções. Apetece mesmo perder a razão e o juízo, sentar e não ir embora. É o que quero e não tenho direito. Vi todas as lagoas, trouxe na máquina as montanhas, mas este ar e esta luz só posso guardá-las durante os segundos em que disfruto. O paradoxo do viajante é este: ir e voltar, mas só estar neste intervalo. Os Andes são um momento. No regresso a casa, voltarão a ser letras num livro que leio e numa crónica que escrevo.
Voltamos aos cavalos. O Desorientado, pachorrento, vai comendo erva do chão. No regresso, não perdeu o gosto pelo perigo e nalgumas vezes, tenho de puxar as rédeas ainda que, como calculam, não saiba a maneira correcta de fazê-lo. Preciso da ilusão de controlo, mas depois de Ausangate, apetece-me apenas ser controlado pelo que deixo para trás e deixar-me levar. Não sei se algumas vez sentiram isto, como se fossem uma corda elástica. É como estou. O cavalo não entende, até porque nunca mergulhou em literatura, nem entende os profundos anseios e abismos da alma humana. Talvez vá assimilando que os donos de duas patas são criaturas complicadas, mas desde que o mantenham numa dose regular de comida, água e descanso, nada o incomoda. Por momentos, a plenitude é atingível, mas nunca acontece. Não é do balanço ou do cansaço: é de mim. Como se sentisse esplendor, mas isso não me chegasse. Como se apenas nos lábios de quem quero pudesse, por fim, recolher o que falta e fazer dos Andes vulcões, de Ausangate o tecto do mundo. Percebo que por muitas voltas que dê ao mundo, algo me faz falta; mas as voltas são minhas e faço-as porque viver é mais do que esperar, é ir em busca e criar caminho. Ainda que as patas que pisam o chão não sejam minhas.
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2 comentários:
É sempre um prazer ler as tuas crónicas. Não queres vir até à Costa Rica?
Obrigado, caríssimo :) Este ano já tenho o meu orçamento de viagens queimado... Mas posso fazer por encomenda ;)
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