Ainda sinto a crepitar na boca a sensação picante, entre o violento e o deleite, mas definitivamente a precisar de água. Ou leite, segundo dizem os médicos, como melhor remédio para eliminar o problema. Não dói, mas mói. No entanto, o raio dos camarões até eram bons e nessa raridade que tem sido encontrar comida chinesa que me saiba apetitosa, tratei de aproveitar. O almoço seguiu essa regra da minhda vida que é o erro na sofreguidão, a procura do que me sabe bem, mas mal sei no mal que me trará. Quer dizer, até sei; mas ignoro, finjo ignorar pelo menos, porque a realidade batendo de frente é demasiado desconfortável. E rouba o prazer. Importante isso. Os monges no mosteiro à minha frente bem falam do quanto expectativas e hedonismo são na verdade inimigos da felicidade. Mas camarões são camarões. E a dor é o que acontece quando transgredimos a felicidade; ou pelo contrário, queremos encontrá-la. Seja de que maneira for. O que pode explicar porque é que estão a chegar, enquanto reentro no espaço do mosteiro de Labrang, centenas de pessoas aos poucos, cansadas, algumas arrastando-se, outras com a vtitalidade de quem cumpre uma missão de vida. São peregrinos. Como local de extrema sacralidade no mundo budista, Labrang é o foco de várias peregrinações. Aliás, a zona à volta da cidade de Xiahe destila uma atmosfera religiosa tão difusa quanto uma lanterna de incenso fumegante. Há aqui perto fortes comunidades muçulmanas, e adoradores de Confúcio. Mesquitas e mosteiros convivem a pouca distância, fiéis encaminham-se à sua casa devota de preferência pessoal. A maior celebração decorre durante o primeiro mês lunar do ano, invariavelmente Fevereiro: inclui actividades com nome tão pitoresco quanto a Festival dos Animais Livres ou Festa do Buda apanhando Sol; mas o que salta mais à vista, e atrai muitos visitantes, é o culminar deste último ritual. Uma longa thangka, um pano colorido, pintado, desenhado, medindo trinta por vinte metros é transportado até ao topo de uma elevação sobranceira do mosteiro, tapando-a por completo. Uma longa procissão de fiéis segue-o, cantando e orando, sofrendo também - carregar aquilo não deve ser uma tarefa agradável. Das estepes distantes e próximas, nómadas budistas chegam com roupas coloridas, os sues melhores fatos, para participarem deste momento solene. Deste apelo a Buda. Tudo isto decorre em vários dias. No segundo, uma dança com trinta e cinco mascarados é protagonizada por Yama, entidade que simboliza a Morte, como um exorcismo do agouro defunto. É um momento alto em Xiahe e para toda a comunidade budista. No entanto, não é Fevereiro, mas sim Agosto. Estes que aqui chegam não esperam espectáculos ou panos gigantes. Em algo que nos é familiar no Ocidente, vêm simplesmente cumprir promessas ou colocar à prova a sua fé nas palmas dos pés. A dor como promessa a Deus.
Uma coisa que explico sempre aos meus alunos, quando dou Mitologias pela primeira vez, é a razão pela qual o ser humano abraçou a espiritualidade. Não a Religião em si. Uma Religião não tem de ser espiritual, pois é simplesmente um conjunto de valores, ideias, teorias e crenças reunidas num corpo de saber que pretende explicar o mundo e encontrar um sentido final na vida. A Ciência, por exemplo, é em si uma Religião, embora explicar este conceito a ateus empedrenidos e orgulhosos seja complicado pelo facto simples de a palavra ter adquirido uma conotação tão negativa ao longo dos séculos que, numa ironia incrível, os mais anti-religiosos têm comportamentos muito semelhantes ao dos prosélitos mais potentes: ambos crêem numa verdade imutável; ambos ridicularizam o lado contrário; ambos descartam factos que mudam o mínimo do seu evangelho; ambos têm gosto em espezinhar e perseguir aqueles com ideias diferentes. A crença em algo de transcendente surge, ainda assim, de um outro princípio que ambos partilham: a ilusão do controlo. Num mundo infestado de fantasmas sob a forma de fenómenos naturais inexplicáveis e uma sucessão de dias e noites que não obedecia a uma lógica ou explicação, o ser humano na sua infância viu-se na necessidade de pensar no que, afinal, se passava. A resposta foi simples. Algures num local qualquer, desconhecido e tapado, uma ou mais entidades super poderosas e sobrenaturais possuíam as rédeas deste planeta na mão. Caprichosos, punham e dispunham destes inferiores bípedes que se sujeitavam aos acasos e humores dos gigantes ou, como lhes chamaram, deuses. Num instinto básico, de quem pretende dominar o indominável, o ser humano chegou à epifania esperada: se não posso mandar, ao menos negoceio; e assim nasceu a necessidade de aplacar o desconhecido que ruge em nós mesmo que nos achemos racionais e materialistas. Pensou o ser humano que oferecendo sacrifícios, talvez os deuses, enfim, encaminhassem o controlo da grande máquina terrestre para o caminho do benefício humano. Quando pequenos sacrifícios não chegavam, faziam-se grandes; e no sentido comunitário, não bastava que um ou dois cumprissem as regras. As divindades exigiam um espírito comum e portanto, a escolha pessoal não é tida nem achada. Todos obedecem aos mesmos princípios e comportamentos. As diferenças não serão toleradas, porque os deuses não têm sentido de humor, ou então sentido de humor a mais, negro, daquele que castiga ao desvio mais pequeno. Quando tudo o mais falhava, dava-se o que de mais importante cada um tinha - a própria vida, o próprio bem estar. Contavam-se histórias de dores de cada deus, de cada profeta; e o bípede humano sentia-se na necessidade de entregar também a dor como homenagem, como justa troca. Várias civilizações na História fizeram dos sacrifícios humanos peça central das suas devoções (os Aztecas serão, talvez, o caso mais conhecido, e quantas guerras foram cometidas em nomes de religiões, num secreto desejo de que cada morto fosse uma oferta alvejando a benevolência superior) e hoje em dia, onde a degradação da vida humana é muito mais subtil e menos óbvia, sobra a dor do corpo, o sofrimento como pagamento, como MB Way entre o que não se vê mas tudo sabe e aquele que está visto, sabe tudo, menos aquilo que devia conhecer.
As peregrinações são um exercício deste princípio. Um pouco como muitas das guerras militares passaram para campos desportivos, a nossa morte em nome de deuses oferece o seu lugar sentado à aceitação de doer é bom. Fortifica e frutifica; ajuda e lá em cima gostam e apreciam o esforço. Por isso há quem faça Fátima de joelhos. Nossa Senhora adora rótulas escanzeladas. Eu consigo entender racionalmente esta associação de ideias, porque a estudei. O que não me cabe é que numa sociedade moderna e tecnológica ainda persistam estes hábitos de um tempo em que nem sequer concebíamos a roda. Depois de uma adolescência bastante irreverente na minha relação com a religião, ainda que tenha estado perfeitamente inserido num grupo de escuteiros - quero dizer, tão inserido quanto eu, uma criatura estranha, pode estar - os meus anos seguintes passaram-se a tentar entender porque é que se acredita em algo que está fora de ser compreendido. Talvez seja esse apelo, o de tomar nos braços da incerteza e deixarmo-nos ir. Vários amigos meus, pessoas que respeitam, encontram um consolo e um sentido em religião. Com o tempo, e também conhecendo as pessoas certas que não fazem da sua fé uma cruzada contra ideias que todos devíamos encontrar com normais e evidentes, o meu respeito foi surgindo. Também a aceitação de que aparte uma franja que quer fazer de Deus uma projecção dos seus desejos tacanhos de submeter os outros à sua vontade e de não confrontar o seu desconforto com um mundo em mudança. Por isso, ao ver toda esta gente em chegada de uma longa peregrinação, procedendo a ritos milenares individuais, hesito em rir e escarnecer. Sigo apenas. Independentemente da origem, cada peregrino partilha o percurso final, uma volta de quase cinco quilómetros em torno do mosteiro. Essa volta inclui pontos de passagem obrigatórios, incluindo alguns pequenos templos e corredores de kora, placas giratórias com um paralelípedo no meio. São coloridas, com figuras estilizadas de paraísos budistas e lamas em poses meditativas. Cada peregrino, ao passar, faz girá-las, todas, obrigatoriamente. Na outra mão, segura um colar de contas chamado malas, que aperta e conta a cada kora que faz mover. É uma tarefa longa. Cada corredor deste género tem seguramente umas cem maquinetas pelo menos, e existem vários espaços deste género ao longo do percurso marcado. Uma pessoa deve chegar ao fim com calos manuais do tamanho de bolas de futebol. Mas todos cumprem, religiosamente - em mais do que um sentido. Tiram os chapéus e ajeitam as túnicas coloridas com que vieram protegendo do vento. E seguem. Mulheres de longas tranças e faces encovadas da inundação da longa vida que trazem por arrasto maquinam mantras para si enquanto percorrem uma via que é sacra também. Os sapatos estão gastos, poeirentos, mas nada os detém. Vejo gente muito desgastada, até de existir. Mas insistem e continuam a percorrer.
Esta volta pretende imitar a revolução da Terra em torno do Sol. O templo é vida, o templo é luz. E o templo é também o destino de uma jornada que nalguns casos, encerra um capítulo final doloroso. Por entre corredores, certos peregrinos, selectos, entregam-se a um ritual fascinante de ver, duro de fazer: em vez de caminharem apenas, conduzem-se por uma série de gestos medidos e contados. Dão três passos, erguem os braços, juntam as mãos por sobre a cabeça e ajoelham-se. Sem perder o balanço, prostram-se e estendidos sobre o chão durante alguns segundos, nunca perdem a ligação entre as mãos. Por fim, regressam à posição original revertendo a ordem dos gestos. Repetem. Quase cinco mil metros disto nas próximas horas. A maior parte envolve a face num lenço que me impede de ver as caras; mas não as expressões, uma firmeza inabalável nos olhos, a certeza de que chegarão ao fim por mais que custe. Como se depois de tudo, o plácido e sempre razoável Buda lhes exigisse uma última portagem, um último pagamento. Há tábuas de madeira espalhadas, caso queiras fazer estes movimentos fora do caminho. Fazes alguns parado, mas contam na mesma como se os fizesses em andamento. Ali ao lado, o rio corre e talvez ofusque todos os restantes ruídos neste exercício em masoquismo. A minha tentativa de não julgar cai cedo, mas ainda assim, admiro uma disciplina que nunca terei. Não por ser ocidental, mas por ser eu. Quanto mais viajo, ainda assim, menos julgo o que é diferente. Aprendo também que não tenho ambições em ser uma daquelas pessoas que acha não n
ter preconceitos. Claro que os tenho. Toda a gente tem; mas andar em viagem torna-me honesto em relação aos mesmos, a conviver com eles e a perceber que são normais e que não afectam a minha relação com o mundo. Exceptuando a comida claro, mas aí tenho desculpa. Com camarões ou sem eles. Na minha humildade, faço também a volta dos peregrinos, mas passo a passo e ao meu ritmo de observação curiosa. Fotografo de quando em vez, mas ao longe e tentando não ser um elemento intrusivo e que estraga o momento. A certa altura chego ao chotren, um pilar branco de algum tamanho, encimado por um pináculo dourado e verde, que é ponto fundamental no percurso. Aqui chegados, os peregrinos contornam-no por mais do que uma vez e só depois prosseguem até ao final. É aí que de um ponto mais elevado, observam então os telhados dos vários edifícios do mosteiro, verdes e dourados dominando a paisagem e com as montanhas tibetanas como pano de fundo. Numa delas, vejo o trilho que os monges sobem quando estendem a gigantesca bandeira do festival do mês lunar. Tento imaginar aquelas imensidão verde dominada por várias cores, figuras. Ainda que este misticismo me diga pouco, acredito que ficaria impressionado e siderado com tudo isto. Miudagem passa por mim a correr, a escola de Xiahe fica por aqui e garotos de mochilas garridas às costas correm em direcção a casa. Digo-lhes adeus e retribuem sorrindo. Para eles, não há fiéis nem romeiros: só obstáculos. Recordo-me de quando fui peregrino, há vinte anos, e segui os quilómetros de Santiago. Já me começara a afastar da espiritualidade, mas a experiência marcou-me, talvez porque a essência de Compostela não é o sofrimento, mas a descoberta e a partilha. Algures, nas mensagens das grandes religiões, esta essência existe lá. Mas descoberta e partilha nunca ajudaram a controlar quem quer que seja. Medo e sofrimento, pelo contrário, são instrumentos muito mais contundentes nessa missão. Quando cheguei a Santiago, não senti qualquer realização; mas fui num grupo de amigos e eles sim, sorriam de par em par, orgulhavam-se, abraçavam-se. Como quase sempre, tinha a alma num caco, acho que se partiu quando tinha dezasseis anos e ainda ninguém a colou, nem eu, nem que veio a seguir. Pergunto-me se de facto é isso que me impede de sentir a profundidade desta vivência. Mas de súbito, passo por um velho que urina contra uma parede e percebo que não é mesmo de mim.
Até ao jantar, temos tempo livre. Com um receio de ser deserdado e de perder os poucos amigos que ainda tenho - não sei bem até quando - dedico-me a correr algumas lojas e bazares, sem qualquer ideia definida do que comprar. As coisas são bastante baratas, estamos afinal na China, e perco algum tempo de volta de lenços, bem suaves para não causar comichão aos pescoços alheios. Têm muitas cores e custam entre 30 e quarenta yuans. Portanto, oito euros no máximo. Não tenho qualquer sentido de estilo, o que aliás acaba sempre por ser inimigo nas minhas viagens. Estou profissionalizado na compra de livros, mas temo que nenhum dos meus amigos pretenda receber algo que nunca poderá ler na vida, a não ser que se dedique à aprendizagem do Mandarim. Tento imaginar o que gostaria eu de ver numa mulher. Erro, porque penso imediatamente na pessoa errada, em alguém que devia estar enterrada num recanto profundo da minha mente e não sair mais de lá. Mas acaba por ser tornar inevitável, visto que não há mito maior sobre mim do que aquele que sopra, baixinho mas bem audível, que sou incapaz de sentir algo, que me escondo, que fujo e me rebolo. Escolho alguns lenços então e pelo caminho, compro uma colorida e animada mochila para a Beatriz, a segunda prenda de que ela se poderá gabar aos amigos: o meu padrinho faltou ao meu aniversário porque estava na outra ponta do mundo; mas ao menos trouxe-me isto. Fixe, não? As lojas ficam todas na rua central de Xiahe, que lhe serve de artéria e espinha dorsal. São pequenas, normalmente, e por vezes, entrando em pátios interiores, encontramos bancas, montras e mercados pequeninos que oferecem uma catadupa de hipóteses de compras. É também um momento bom para observar como os monges de Labrang vivem a sua vida normal e corriqueira aqui, entre os "civis". Passeiam-se com as suas túnicas religiosas, mas nunca como homens de religião: como homens vulgares, os mesmos gestos e instintos, temores e preconceitos. Dois deles passam por mim, mão por cima do ombro, risada cúmplice de quem conta uma piada que apenas ambos entendem; quando lhes tiro uma foto, surge uma tremideira com ligeira homofobia, pois ao repararem, rapidamente desfazem a posse e criam um espaço entre ambos razoavelmente semelhante ao Oceano Pacífico. Decerto me chamaram, entredentes, filho da Buda... Quase no final do meu devaneio consumista, uma surpresa. Enquanto fotografo três garotos a jogar à bola, surge um quarto que, tímido, nem está no enquadramento. Mas anda ali perto, curioso. Não sei se por mim, se pela oportunidade fotográfica; mas esconde-se agarrado a uma porta. Sorrio-lhe e ele derrete um pouco; aponto para a máquina, ele não se mexe. Fotografia tirada e mostro-lha. Ele agarra-me a mão com força e dispara a correr. Não entendi. Mas não é para entender. Vive-se e mais tarde, escrevo sobe isto e continuo a lembrar-me. Muito da vida é isso: não tanto o que lhe fica, mas mais o que a faz.
Como ainda sobra tempo e o dia tem luz que contorna as montanhas a fogo, junto-me a alguns rumo ao topo daquela inclinação que em alturas do primeiro mês lunar se cobre com uma bandeira enorme. Estou curioso para descobrir que ponto de vista se pode ter para o Mosteiro, acho que até agora só o vi no interior. É uma subida curta, mas a pique, obrigando a meter um ritmo lento, mas constante. São alguns os turistas que tiveram a mesma ideia, em selfies, em fotos de grupo. Encontramos lá também monges deitados em magote, usufruindo de algum tempo livre, esquecendo Buda por uns tempos. Saudamo-los e Mário, o já mencionado Comendador de Fronteira, Alter do Chão e territórios adjacentes na Extremadura espanhola, rapidamente cria uma conversa, pede fotos, torna-se embaixador do Nordeste alentejano no Sudoeste chinês. Há gente que não tem lata e imediatamente parte a conseguir o que quer. É um talento que me faltam. Como sempre quando a melancolia me bate como um martelo ferroso que pesa, em castigo, fecho-me e nas engranagens da minha cabeça, rapidamente aparecem pedaços fuscos de coração. A máquina põe-se ao trabalho, mas quase em piloto automático. Sinto-me num fundo, nem sei bem de quê; mas apesar de o sol ainda se mostrar, a escuridão em mim galopa. Estes são momentos em que o contacto com outros é simplesmente proibido, pois torno-me tão vulnerável que a única reacção é explodir para fora. No entanto, convocam-me para uma foto de grupo. O grupo budista cedeu aos encantos do Mário e quer que tiremos todos uma foto juntos. Contrafeito, mas aparentando que sou um camarada que alinha em tudo, junto-me. O sorriso é forçado, mas como sou tão pouco fotogénico, acho que a diferença nem se nota. Lá ao fundo, por trás de dois dentes que são picos, a luz solar lentamente se extermina e como que reflectindo este fim de tarde que me lança em memórias e catadupa de gelo mental, vai-se apagando. Como eu. Embora, pelas minhas contas, ainda tenha uns cinco dias onde não me posso afundar, apenas manter à tona. Sofrer, mas não pelo desconhecido: apenas pelo que se conhece demasiado bem. Uma peregrinação cujo santuário final somos nós.